sábado, 8 de maio de 2010

O deus das entranhas, o rei na barriga, o que se leva desta vida e os cães

O saloio, o habitante dos arrabaldes que ao longo dos séculos tem sobrevivido nos arredores de Lisboa, preserva envergonhadamente a sua cultura e é em simultâneo um campeão da adaptação. O espaço que hoje ocupa, constantemente fustigado pela chegada de novas etnias bastante numerosas, tanto nacionais como estrangeiras, será daqui a vinte ou trinta anos ocupado por novas gentes e outros costumes, hoje seus vizinhos e em franca ascensão. Todavia os seus valores não desaparecerão, serão enxertados nos vindouros e sobreviverão como até aqui, devido à universalidade da sua cultura mestiça, fortemente enraizada nos confins da história e alicerçada em princípios neo-testamentários, ainda que adulterados e produto da convivência apressada entre cristãos, árabes e judeus pela fúria inquisitorial. Apesar de lhe terem roubado quase tudo, o saloio abraçou a língua mais universal de todas: a dos números, porque a matemática dispensa intérpretes, é exacta e induz ao pragmatismo. Não temos dúvidas ao olhar para o romance mais célebre de Cervantes e para as suas personagens centrais, a haver ali um saloio, ele seria certamente Sancho Pança. Será que não era mesmo? Que fado o levou a seguir o seu amo, ele que nunca frequentou a universidade de Alcalá de Henares e que ignorava os códices da cavalaria?

Quando foi inaugurado o Hotel de Turismo da Ericeira, dizia-se que a qualidade da sua cozinha era sofrível, exactamente a mesma da gastronomia regional ao tempo, austera, advinda das hortas, farta em aproveitamentos e adornada pelas ervas aromáticas que ondulavam pelos outeiros e cabeços. Com o andar dos tempos e a debanda das populações nortenhas rumo ao Sul e para o litoral, a situação alterou-se, a cultura do porco generalizou-se e a gastronomia tradicional sofreu alteração. Essa aculturação ultrapassou em muito a gastronomia, criou novas famílias e fundiu conceitos, godos e árabes descobriram que era mais o que os unia do que aquilo que os separava e criaram a síntese do saloio que chegou até nós: moçárabe de raiz e godo quanto baste. Contudo, a concepção divina velho testamentária não desapareceu, o Deus que habitava nas entranhas não foi desalojado e generalizou uma fé subjectiva, fortemente individualizada, arredada do préstimo eclesial e esporadicamente complementada por algumas doutrinas cristãs, mercê do arianismo intrínseco de uns e do particular histórico-religioso de outros. A crendice saloia, fortemente genética e cardíaca, aceita todos os profetas, respeita e procura adivinhos, teme toda a casta de demónios, concorre aos exorcistas, solicita os bons ofícios dos bruxos e não aboliu o culto à filha de Maomé, a senhora da luz, ainda que o faça inconscientemente em direcção a Maria, à Nossa Senhora e mãe de Jesus. E se o “grande andaluz” voltar, não apanhará o saloio desprevenido, porque ele abraça, absorve e adapta toda e qualquer doutrina, sobrevive em qualquer modelo social e emerge em qualquer regime (a República foi proclamada um dia antes em Loures), preservando ainda assim incómule a sua identidade própria, metafísica, paradoxal, conformada e profundamente fatalista. Para melhor conhecer a sua essência, convém também ler o episódio histórico relativo ao “Rei da Ericeira”.

Herdou de árabes e judeus a actividade mercantil, da fidalguia goda a barriga cheia e a borracheira, a curta passagem dos franceses reforçou essa tendência, a inveja levou-o à usurpação, o improviso ao aumento da riqueza e abraçou a ostentação, sem contudo abandonar a ancestral concepção de nómada e desconsiderar a brevidade da sua passagem por aqui. O saloio rico é avarento e desfila com o rei na barriga, o remediado é queixoso e invejoso e o pobre é dado a “filosofias”. Apesar das diferenças, diante do infortúnio ou perante estados de exaltação, subsiste entre eles uma máxima: “o que de melhor se leva desta vida é o comer, o beber, o borrar e o “coisar”, sentença de que fazem gáudio à guisa de conselho. E porque usámos a expressão “o rei na barriga”, também porque a Feira do Livro está a acontecer em Lisboa, importa realçar um dos contos do transmontano Alexandre Parafita, com o mesmo nome e editado pela Âmbar, já que a expressão vem de tempos longínquos e é original de um conto popular em vias de se extinguir da memória oral. Esta obra encontra-se catalogada como literatura infanto-juvenil e porque já a lemos, aconselhamos a sua compra aos pais extremosos, em prol dos benefícios oferecidos pela nossa riqueza patrimonial.

E como falar de cães é falar de homens, por força da coabitação forçada e face ao reflexo animal (vale a pena analisar a obra “Cão como nós”, da autoria de Manuel Alegre e publicada pela D.Quixote, onde o cão familiar vira poeta por força do antropomorfismo), importa ver como são tratados os cães entre os saloios, quais os da sua preferência e que uso lhe dão. Tanto saloios quanto alentejanos são matilheiros de eleição, quiçá pelo seu histórico étnico-social ligado ao servilismo e à sobrevivência. Longe vão os tempos da exclusividade dos perdigueiros, podengos e galgos, muito embora as matilhas de el-rei D. Carlos estejam agora a ser reinventadas, à imagem do que se passa em Espanha, para o lazer dos novos-ricos e segundo prazeres há muito antigos, já que na Estremadura proliferam matilhas para a caça grossa, equipadas com diferentes molossos e compostas por cães de toda a casta. Como já tratámos deste assunto e à face à inevitabilidade dos acidentes, remetemo-lo a uma simples questão: agora que acabámos com os cães de guerra, vamos abatê-los com fogo amigo?

Na região saloia perpetua-se uma verdade insofismável: quanto mais pobres são os indivíduos, maior é o número de cães que possuem. Esta incongruência, porventura ligada ao isolamento social a que as classes mais desfavorecidas se encontravam votadas, tem sido responsável pelo abandono e pela excessiva proliferação de cães, sendo fácil vê-los a vaguear pelas estradas ou estendidos mortalmente nas suas bermas. Apesar dos esforços de algumas câmaras, louváveis campanhas de esclarecimento e dos sucessivos apelos à adopção, os canis municipais continuam a funcionar como autênticos matadouros, com calendário pré-estabelecido para o dia semanal da matança. Infelizmente, as suas boxes raramente estão vazias e na época estival encontram-se superlotadas. Como o assunto tem barbas e perante a ineficácia das soluções encontradas, apraz-nos perguntar: não valeria a pena tratar dos indivíduos primeiro e reconciliá-los com a sociedade?

Antes de avaliarmos o cão nos diferentes substratos sociais saloios, porque o termo “saloio” tem sido mal compreendido, entendido como sinónimo de provinciano e porque nem todos os provincianos são saloios, urge explicar donde veio, quem é e onde vive. O termo é de origem árabe e resultou imediatamente da divisão social moura aquando da invasão peninsular e designava os habitantes fora de portas, os próprios dos arrabaldes, sujeitos a vários tipos de impostos e obrigações diante dos seus senhores. A sua actividade remetia-se quase em exclusivo à agricultura e a transumância. Com a reconquista cristã e a consequente conquista de Lisboa, essa gente passou a pagar ao rei de Portugal o mesmo que pagava aos reis mouros. O seu genocídio não aconteceu por conveniências ligadas ao povoamento do território e à sobrevivência do reino. Na sua origem o saloio é mouro e com o andar dos tempos foi assimilado, mesclou-se com os cristãos e tornou-se português, apesar de vãs restrições reiteradas e por fim abandonadas, coisa que aconteceu um pouco por todo o País (nuns lugares mais do que outros). Tem vivido ao longo dos séculos ao redor de Lisboa, nos concelhos que confinam com ela e desde aí vem garantindo o aprovisionamento da Capital. Saloio era todo aquele que vivia para além da cidade, para lá dos muros da muralha fernandina, tal qual habitante do deserto e entregue às lides do campo. Não lhe sobreviveu nenhum dialecto próprio, somente um linguajar cantado hoje em desuso. Não obstante, tanto na cidade como nos campos, porque a invasão bárbara antecedeu as hordas muçulmanas, gente doutras etnias já ali vivia, fruto da tolerância moura que os alcunhou de moçárabes. Nos finais do séc. XIX e na 1ª metade do séc. XX, os saloios viram-se a braços com a corrente do eugenismo, tornando-se motivo de chacota, alvo preferencial e gente a encobrir para alguns. Os concelhos de origem moura ainda conservam na sua heráldica uma ou duas luas. Actualmente os habitantes da região saloia são provenientes de outras áreas geográficas e de diferentes etnias, quer nacionais quer intercontinentais. Todavia e por estranho que pareça, os valores e a cultura saloios são assimilados por ali como o ar que se respira, lembrando o retorno do cavalo árabe ao berbere.

O saloio rico é-o pelo negócio, é geralmente pouco instruído, tende a mandar os filhos para a faculdade e paga a sua adaptação pelos serviços de outrem. Manda fazer habitações palacianas, fortifica-as e compra um ou dois cães para evitar a cobiça e o mau-olhado, não dispensa grande cuidado aos animais e paga para que mordam nas estrelas. Em virtude disso, o comércio de cães já ensinados tem vindo a aumentar. Apesar de não ser um consumista puro, porque alguns deles não esqueceram a casa onde nasceram e que tinha como soalho terra varrida, gosta de andar montado num automóvel topo de gama e pode adquirir um dispendioso cão importado, vulgarmente mal afamado e temido pela sua ferocidade, obsequiando em simultâneo a esposa com um cão miniatura, sedento de cuidados, exótico, irritante e mal disposto. Come na cozinha e vive geralmente num anexo, fazendo da habitação museu e pronta para revista. É naturalmente infiel e desconfiado, absorve outros valores e despreza os seus patrícios, não é benemérito e procura o reconhecimento público e o galarim. Paga contrafeito as despesas no veterinário, que acha exorbitantes e compra ração nas grandes superfícies. É um especicista inato, pode ser caçador e sujeita os cães à austeridade que lhe deu a fortuna. Os canis são geralmente exíguos, arredados e lembram coelheiras. Não interage com os animais, raramente procede à sua higiene diária, nunca tem tempo para a excursão canina e não quer ver os bichos dentro de casa. Vai de férias para as Caraíbas ou para a Serra Nevada e entrega os cães ao cuidado dos poucos empregados, a quem resiste aos aumentos salariais e de quem sempre reclama pela precariedade dos serviços. Tem geralmente uma horta e adora andar com uma cachola às costas, tem uma piscina, raramente sabe nadar e dificilmente lá mete os pés. Não queremos induzir ninguém em erro, porque são várias as excepções, mas este é o tipo mais fácil de se encontrar.

O saloio da classe média, que ainda vive do salário, acaba por comprar uma moradia, por reconstruir o casebre que o viu nascer ou aproveitar-se de um extenso terreno agrícola, mercê da ocasião, dos bons ofícios da banca e a pensar nos filhos. Tem geralmente um cão familiar, que pode ter raça ou não, que adora passear e ao qual dispensa o maior dos cuidados: o animal faz parte da família. É de média instrução, dedica-se ao exercício físico, concorre aos hotéis caninos e inscreve-se nas classes de adestramento. Procura nas rações a relação preço-qualidade, leva o cão regularmente ao veterinário, mantêm-no invariavelmente à solta e livre pela casa. Tende a comprar alguns livros sobre cães e busca conhecimentos complementares. É solidário em situações extremas, usufrui da casa e nela acaba por construir uma churrasqueira. Dependendo do trajecto de vida, actividade profissional e do local onde nasceu, pode também ter nas traseiras uma horta ou pomar. Sabe utilizar o computador e tem Internet. É liberal, normalmente fiel e detesta o peso dos compromissos, é vulnerável à novidade dos conceitos e anseia pela liberdade individual. Quando opta por um canil, procura opinião e visita alguns antes de dar início à sua construção. Faz jus ao conforto, dispensa maiores luxos e procura a ascensão. Come usualmente em casa, quando necessário concorre a refeições económicas ou a cantinas, indo esporadicamente aos restaurantes. Tem geralmente um carro de gama baixa, baixo consumo e a diesel (francês, italiano, alemão ou japonês), ou uma carrinha a gasóleo se tiver filhos. Compra brinquedos e guloseimas para o cão e revive momentos até então proibidos.

O saloio remediado (funcionário camarário, açougueiro de supermercado, operário da construção civil, empregado de comércio, contínuo escolar, auxiliar de limpeza, condutor de autocarro, etc.), vive em casa alugada ou naquela que sempre conheceu, é briguento e de fácil trato, rudimentar de ambições e pouco instruído, profundamente emocional e beberrão, passional e mulherengo, invejoso e maldizente, anticlerical, desconfiado e supersticioso. É solidário, adianta soluções para os problemas alheios e evita falar dos seus, vai à bola para maltratar o árbitro, é um adepto tribal e dado a rivalidades. Apesar de tudo é fácil de encarreirar, teme a autoridade e é submisso ao patrão. Tem como hobbies preferenciais a ida ao futebol, a columbofilia e a actividade cinegética. Geralmente opta por uma economia paralela, podendo ter um pequeno rebanho de ovelhas, uma oficina para os biscates, ser proprietário duma capoeira ou explorar uma pequena horta. Quando é caçador tem matilhas numerosas, mestiças e subnutridas, constituídas por cães de pequeno ou médio porte. Envereda por mezinhas, concorre somente às vacinas camarárias e apenas vai ao veterinário em último caso. Tem geralmente os cães presos à barraca e alimenta-os precariamente, com rações de gama baixa, restos de comida ou com tachadas de arroz trinca salpicadas com as aparas vindas do talho. É especicista sem dar conta, fanfarrão e invariavelmente os seus cães são para ele os melhores do mundo: “quem o ouvir não o leva preso!” Algumas das características indicadas para cada um dos três grupos podem transitar entre eles, por razões sócio-culturais, modo de ascensão e particular dos indivíduos. Para o saloio rico o de classe média peca por falta de iniciativa ou de ambição e o remediado pouco préstimo tem. Tanto o da classe média como o remediado vêem o rico como um ladrão, ainda que lhe dispensem os maiores salamaleques. O de médio rendimento é tido com esperto por parte do remediado e este é entendido pelo outro como elo mais fraco, um sobrevivente do período da pedra lascada. As relações entre os indivíduos do mesmo extracto social são de conveniência, distantes e cautelosas. A união automática face às calamidades não esconde a dificuldade colectiva saloia, porque são mais abertos para os de fora e vivem de costas voltadas para os vizinhos. Os jovens desta região não foram objecto de qualquer avaliação porque são iguais, tanto no modo de vida como nas preferências, aos de todo o mundo.

A simbiose germano-árabe condimentada aqui e ali com sangue hebraico transformou o saloio num sobrevivente, conciliando no passado aquilo que no presente parece não ter solução. Em poucos sítios do globo podemos ver nos vértices das casas tradicionais os símbolos islâmicos e hebraicos como adorno, sobre paredes caiadas de branco e rematadas a barras azuis, sem que ninguém aperte o passo ou cuspa de raiva pela afronta. A assimilação do saloio tornou possível o Portugal pluri-racial e pluricontinental, enquanto fase embrionária de sucesso e génese da globalização autêntica. E neste sentido todo o português tem um pouco de saloio, quer genética quer culturalmente, desde os confins da memória até aos horizontes doravante. Apesar de nas colónias não ter criado muitas faculdades, ele conseguiu estabelecer por todo o lado uma cultural popular, oriunda de valores ancestrais e alicerçada na novidade das famílias. A cultura saloia durará tanto quanto o mundo, porque espelha a humanidade e procura a coabitação de todos os povos, para além das diferenças e na senda do trajecto comum. Neste extremo ocidental da Europa Ismail reencontrou Isaac, uniram esforços e partiram com outros à descoberta.

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