segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A BRINCAR, A BRINCAR...


Diga-se em abono da verdade que os etólogos preferem estudar os impolutos lobos silvestres aos lobos familiares (cães), porque nos últimos a sua carga instintiva é substancialmente menor e é por vezes ténue a fronteira entre os hábitos inatos e os adquiridos, mercê dos milhares de anos que leva a sua selecção e a domesticação. Como o lobo é o ancestral maioritário das actuais raças caninas, do seu estudo tiram-se elações para a melhor compreensão dos cães, como se entre eles não sobracem profundas diferenças comportamentais, apesar de em cada cão se encontrar um lobo oculto, ainda que distante das serras, florestas, desertos, estepes e pradarias de outrora. Contrariamente ao silvestre, o lobo doméstico tornou-se dependente e essa dependência levou-o a ser criado para o auxílio dos homens, um animal seleccionado sob os auspícios e expectativas humanas, ainda que por vezes lhe sejam visíveis características atávicas que, consoante os casos, poderão ser aproveitadas ou não, constituir-se em mais-valias ou em sérios entraves para o seu uso. Do lobo herdou, entre outras coisas, o instinto caçador e o de presa e nisso teima em exercitar-se entre iguais, movido pelos impulsos herdados que sustentam a luta e procuram o poder, brincadeiras aparentemente inofensivas que fazem o gáudio dos seus ingénuos proprietários e que podem reverter-se em sérias ameaças e em ataques de grave consequência.


Tal qual os lobos e nisto não diferem, segundo o que atrás dissemos, os cães desde cachorros brincam à dentada e fá-lo-ão ao longo da vida com outros cães seus conhecidos, até que a sua saúde lhes permita, apesar de não se compadecerem dos fracos e de poderem vir a ser vítimas dos fortes. Diante disto uma pergunta se levanta:deverei ou não consentir que o meu cão brinque dessa maneira com os outros cães? Há quem diga que eles se entendem, muito embora esse entendimento passe pelo domínio de uns e pela subordinação de outros, já que o cão é um animal social e não cede gratuitamente o seu lugar hierárquico. Disseram-nos que na "Velha Albion" os cães passam os dias a brincar uns com outros, enquanto os seus donos lêem o jornal, se espraiam pelos jardins ou se dedicam a amena cavaqueira, o que não é de espantar atendendo ao facto de se encontrarem castrados na sua esmagadora maioria. E como essa castração acontece cada vez mais cedo, a moda agora é castrá-los antes da maturidade sexual, os impulsos que subsidiariam o seu belicismo acabam por ser niilizados. Outro desfecho atingem aqueles adestradores que soltam "à molhada" os cães das suas classes, não olhando aos diferentes grupos somáticos, perfil psicológico, grau de sociabilização, quadro clínico, porte, envergadura, condição física, sexo e idade, plebe que confia na sorte e que normalmente não intervém na eventualidade de uma peleja mais encarniçada., quiçá por temerem pela sua própria integridade.




A sociabilização "inter pares" é um dos requisitos obrigatórios para um cão treinado, independentemente do uso que lhe queiramos dar. Contudo, essa sociabilização deverá ser gradativa e de acordo com as respostas afirmativas que forem alcançadas, que uma vez constituídas em metas servem esse propósito, podendo não dispensar o uso da trela e o reparo dos donos. Como o cão continua a ser criado à imagem e semelhança do homem, para tudo tem uma idade e a esta pode também contribuir para uma reversão na sociabilização, mediante ausência de recapitulação, particular do treino, desejo de dominância e maior apetência sexual. Que ninguém se iluda: um cão castrado quando integrado numa matilha animal pode também constituir-se parte num ataque letal, particularmente diante de intrusos no seu território ou quando atrelado ao dono. Sucede com alguma frequência que dois cães de raça igual e acostumados a treinarem juntos, possam aliar-se contra o companheiro de residência dum deles, o que não augura nada de bom. Estes ataques de cariz social acontecem com maior frequência entre grupos somáticos diferentes e particularmente com os cães-lobo, para já não se falar dos criados para as lutas de ringue quando estimulados para isso (acirrados).





 Não nos parecem inocentes e isentas de repercussão as brincadeiras perpetradas pelos cães quando se mordem reciprocamente, desferindo pequenas dentadas sem qualquer gravidade, porque as entendemos como preparação e simulacro para acções mais graves que poderão ou não ser despoletadas em determinadas condições e circunstâncias, nomeadamente diante de necessidade de defesa ou ataque, por indução colectiva ou necessidade de afirmação social, exactamente como acontece com os filhotes de lobo que primeiro lutam entre si e depois partem para a predação. Graças a essas lutas, aparentemente inofensivas e com o decorrer do tempo, acontecerá o escalonamento social tanto dos lobos como dos cães, hierarquização que acontece de modo natural e sem qualquer esforço ou intromissão humana, o que se constituirá num grave entrave para os cães de terapia, para os cães-guia e para outros inseridos numa matilha funcional, quer ela seja de guarda, destinada à tracção ou seleccionada para o mundo do espectáculo. Só a liderança humana poderá demovê-los desses propósitos e só a sua ausência levá-los-á a escalonar-se por si mesmos. Como poderemos recuperar um cão deveras submisso se sempre acaba debaixo dos outros? Não é verdade que os proprietários de cães de luta raptam cães para treinarem os seus cachorros? Não é comum assistir-se à luta entre dois cães que brincavam afincadamente em cachorros?



Enquanto treinadores de cães não vemos com bons olhos estas brincadeiras, não só por possibilitarem ataques inusitados mas por conjunto de razões que seguidamente adiantaremos, até porque o bem-estar canino pode dispensá-las e ser compensado pela maior cumplicidade com os donos. E não as aprovamos porque contribuem eficazmente para a quebra da liderança humana; são instintivas e podem tornar-se incontroláveis, fruto dum comportamento atávico que não corresponde a qualquer condicionamento, corroendo aqueles de que os cães tenham sido objecto, também porque tendem a ensurdecê-los e a levá-los à rebelião, porque são manifestações do escalonamento animal que entrava o uso e o seu consequente aproveitamento individual e colectivo, enfraquecendo de sobremaneira o carácter dos mais fracos e induzindo os mais fortes à teimosia, porquanto são indutoras à troca de alvos por força da reincidência, podendo gerar traumas, aversões e inimizades entre iguais, porque vulnerabilizam os cães pela quebra de atenção e subsidiam a desobediência canina, para além de poderem comprometer aqueles que se destinam ao ofício cinegético.



Contrapomos a essas brincadeiras adestrá-los para a comunhão de esforços, transformando os tolos beligerantes, pelo condicionamento individual, em protectores um dos outros no intuito de melhor os preparar para o trabalho colectivo, valendo-nos da supercompensação para a abstracção do trabalho útil, dando a cada um deles brinquedos próprios, ensinando-os a respeitar os pertences uns dos outros, não consentindo no seu roubo, porque doutro modo dificilmente abraçarão novas tarefas e será praticamente impossível adestrá-los para o trabalho de equipa. E como o fenómeno sempre decorre duma liderança imprópria ou descuidada, urge que os donos se transformem em "machos-alfa", hierarquizando os cães de acordo com seu potencial e mais-valias sem contudo permitir atropelos ou imiscuição no trabalho dos outros, pois cada um deve reconhecer a sua tarefa e respeitar o trabalho dos demais, exactamente como fazem os cães de pastoreio, que ao invés de se digladiarem e se entreterem uns com os outros, trabalham às ordens do pastor e conduzem os rebanhos segundo a sua orientação. E se porventura o impulso à luta for por demais evidente nalguns cães, melhor será treiná-los para guarda ou para a caça, já que para ambas é muito difícil e só cães raros as conseguirão desempenhar em simultâneo com mestria. Assim, deverão ser os cães convidados para os potenciadores de mordedura e para a captura de cobaias. Se por caso não formos bem-sucedidos, o que é pouco provável, mais vale convidarmos os cães para a procura, transporte e entrega de objectos, tarefas que são do seu agrado e de reconhecida utilidade, do que deixá-los entregues a si próprios como de lobos se tratassem.



Ao falarmos deste assunto, sobre a convivência dos cães, a luta pelo poder e escalonamento social dela corrente, queremos aqui lembrar o caso daqueles proprietários caninos que, tendo um ou mais cães, acabam por comprar ou adoptar um segundo ou terceiro já adulto, manifestamente submisso ou inibido, não pela novidade do grupo mas pelo seu perfil psicológico, o que irá impedir a sua defesa na inclusão perante o ataque inicial dos cães residentes, que o verão como um intruso, o que irá obrigar os donos a rara atenção e a cuidados adicionais. O sexo dos cães (também a idade), tanto o dos residentes como o do recém-chegado, determinará a maior ou menor duração das hostilidades assim como a sua gravidade (as cadelas reagem violentamente à chegada doutra e os cães insurgem-se imediata e deliberadamente contra a inclusão dum novo macho, particularmente quando todos são sexualmente activos). É evidente que quem não tem tempo, não deverá meter-se em tais assados! Nesta situação exige-se uma liderança inquestionável para que a salvaguarda do novo elemento seja garantida, porque doutro modo passará rapidamente de submisso a inibido e daí sem préstimo algum, porquanto foi relegado para o último lugar da escala social, o que mais dificultará a sua recuperação pela experiência havida, podendo ficar irremediavelmente e para sempre traumatizado e sem qualquer hipótese de ser reabilitado.  Nestas circunstâncias é óbvio que a sociabilização torna-se indispensável e as lutas entre iguais interditas. Convém não esquecer que as lutas entre cães, sejam elas encarniçadas ou lúdicas, sempre resultam de dois factores: Do pouco empenho dos donos e da ausência de trabalho dos cães, de quem gosta de ter os cães à molhada ou é avesso à sua responsabilidade pedagógica, descuidando dessa forma a capacitação individual de cada cão.





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