Há uns anos atrás, numa cidade
industrial dos arredores de Lisboa, terra de gente vaidosa, boa pinga e
conhecida pelo seu Carnaval, desloquei-me a uma clínica veterinária, que já naquele
tempo tinha separado o consultório da loja da venda de acessórios, como hoje a
lei exige, no intuito de comprar um termóstato para um aquário. Deparei-me na
entrada da clínica com binómio constituído por um jovem e um pastor alemão,
ambos com boa apresentação e exalar algo de marcial, o que de imediato me
chamou à atenção. À distância vi que o cão obedecia pronta e irrepreensivelmente
às ordens do seu líder, o que muito me agradou e levou-me a interpelá-lo.
Disse-me que o cão era seu e quando lhe perguntei onde tinha aprendido a
ensinar cães, adiantou ter sido na Polícia Aérea. Contente com o que vi,
abandonei-os e de imediato dirigi-me à loja de acessórios.
Ainda não tinham decorrido cinco minutos, o
veterinário entra-me pela porta dentro com um ar extasiado e a pedir auxílio,
porque o dito cão, necessitado de ser vacinado, resistia a entrar no
consultório, virando-se contra o dono e intentando carregar sobre o clínico.
Não queria acreditar no que ouvia por duvidar tratar-se do mesmo cão. Estupefacto,
inquiri junto do dono a razão daquele fenómeno e comportamento, ao que ele me
respondeu: “consigo fazer tudo menos isto, cada vez que tenho de ir ao
veterinário é uma tourada”, justificação que não me convenceu e que me fez
pensar estar na presença de um “anjinho”. Mandei o veterinário e o rapazola
para dentro do consultório e peguei no cão com a trela curta, porque intentava
morder-me e amarinhar por mim, persistindo decididamente nos comandos direccionais perante as suas tentativas de recuo. Em segundos entrámos no
consultório e perante a resistência oferecida, vi-me obrigado a imobilizá-lo e a
deitá-lo de lado no chão, porque doutro modo a marquesa ia pelos ares.
O veterinário perguntou ao jovem
quais as vacinas que o animal tinha em atraso, ao que ele lhe respondeu serem
as anuais e a anti-rábica. Aquele clínico não tinha por hábito e com razão, dá-las todas em simultâneo mas atendendo às dificuldades e à minha esporádica presença não lhe sobrou outro remédio. Enquanto eu mantinha o joelho esquerdo sobre o flanco do cão e a mão direita a
imobilizar-lhe a cabeça, disse para o dono: “há que aproveitar a ocasião, a
coisa não está fácil e como tal, vai levá-las todas de uma vez”. Resta dizer que
o animal nem tugiu nem mugiu e saiu da clínica como se nunca houvesse lá
estado. O veterinário agradeceu-me o favor e sentiu-se na obrigação de me
alertar para a marosca que um aluno me estava a fazer, um sujeito franzino, de
bigode ralo e ares de grandeza, mais ambicioso do que técnico, cuja teoria
estava longe da prática, apostado em me fazer concorrência, em abrir uma escola
canina e dizendo-se meu “colaborador”, apesar de nunca ter sido prestável e ser imprestável
para o ofício (hoje está na berra e continua a ter medo dos cãozinhos, fazendo
jus ao aforismo que diz: “em terra de cegos, quem tem um olho é rei”.
Desejo-lhe sorte).
Decidi contar-vos esta história
verídica por causa da obediência canina, já que nenhum cão tem mais ou menos
obediência, ou tem-na ou não a tem, porque precisamos dela não nas
circunstâncias ideais mas nas extraordinárias, quando é imperativo que ela aconteça para a salvaguarda binomial. E como a maioria dos binómios
actuais merece justamente a designação de “equipa”, havendo por aí muita gente
que confunde ambos os termos, alguma até fardada que usa o primeiro
e demonstra a adopção do segundo, estou a lembrar-me de um bate-boca que me
causou alguma estranheza e no qual não quero acreditar. Segundo ele, em determinada força
policial, quando um cão rosna para o seu tratador, este fica automaticamente
dispensado do concurso do animal, ficando o cão a aguardar dias melhores, por
vezes por tempo infindo na solidão do canil, não vá o homem requerer os bons
préstimos de um assistente social, devido à tensão que obsta ao seu bem-estar e
o induz à depressão. Não posso acreditar nisto, pois creio no domínio do
inteligente sobre o irracional e porque sei que neste mundo não subsistem
problemas que não possamos resolver, apesar de também saber que tanto o engenho como a
capacidade de sacrifício diferem de homem para homem. Sobre isto vêm-me à
memória duas frases já batidas: “quem tem calos, não se mete em apertos” e “quem não quer ser diabo, não lhe veste a pele”.
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