À
porta de um Convento levado a cabo pelo mesmo arquitecto do Mosteiro dos
Jerónimos, ouvi uma conversa entre amigos que divido agora com os nossos
leitores. Determinado pároco, destacado para várias paróquias no Sul do País,
organizou em determinada ocasião uma viagem à Serra da Estrela, no intuito de
satisfazer o desejo dos seus paroquianos em ver neve. A viagem correu sem
problemas, não fora o vigário no seu comando, todos levaram farnel e roupa para
o frio, dormitando alguns no seu trajecto enquanto outros cantavam hinos de
louvor ao Senhor. Tudo corria dentro da mais pura e santa paz, ainda que um ou
outro se sentissem enjoados ou acossados de dores nos ossos pela demora da
viagem.
Chegados
ao sopé da Serra, foram-na subindo gradualmente, porque a cada 100 metros que
subiam a temperatura diminuía 1 grau celsius. Ao pararem em determinada
localidade, cujo nome já não lembram (coisas da idade), avistaram numa encosta
um pastor com o seu rebanho e dois cães Serra da Estrela. Como a maioria
daqueles viajantes era de origem rural, aquele quadro cativou alguns deles que
de imediato se aproximaram de máquina fotográfica em punho. Sem que eles
contassem, malogrados os esforços do pastor, um dos cães enfureceu-se e correu
vertiginosamente na sua direcção. Sem saber o que fazer, entregaram prontamente
as almas ao Altíssimo na esperança de que o malvado cão não lhes causasse
grande dolo, tremendo que nem varas verdes à medida que o molosso se
aproximava.
Quando
tudo parecia perdido, eis que o cão estanca junto a um ribeiro que os separava,
que não tinha mais de 6 metros de largo, rosnando dali e retornando minutos
depois ao rebanho. Segundo o relato, aquela gente ainda não sabe hoje por que
razão o cão não se fez à água, havendo na altura alguns que atribuíram o facto
à intercessão da Virgem dos Aflitos, considerando ter ali havido um milagre. Ao ouvir
tal relato não me contive e adiantei-lhes por que razão o cão não atacou aqueles
viajantes: simplesmente porque era um Serra da Estrela e a maioria deles não
sabe nadar e tem pavor à água, facto que comprovei ao longo dos anos em que
criei e treinei estes cães portugueses de montanha, que em terra firme são
leões e dentro de água uns cordeiros pingados e desesperados.
Para
além do pitoresco da história, ela encerra uma verdade absoluta e urgente:
todos os Serra da Estrela necessitam de aprender a nadar, porque doutro modo acabarão
afogados, já que apenas esbracejam, desusam os membros posteriores, acabando
por rodopiar sobre si mesmos até que a exaustão os condene ao afogamento (mesmo
depois de aprenderem, raro é aquele que se sente cómodo dentro de água). E
nisto o Serra da Estrela não é único, pois a maioria das raças pertencente ao
seu grupo somático apresenta a mesma aversão e dificuldade. A maneira mais
fácil para ensinar um Serra da Estrela a nadar é entrar dentro de água com ele
atrelado, em águas onde o dono tenha pé para melhor poder valer ao animal. Quando
o cão começar a esbracejar, por se encontrar fora de pé, o dono deverá puxá-lo
pela trela para a frente, o que o fará transitar da posição vertical para a
horizontal, induzindo-o assim ao uso dos membros posteriores. O exercício está
ganho quando o cão já consegue nadar sem o auxílio da trela, o que não é fácil
e sempre carece de recapitulação. Em Portugal e noutras latitudes, a ocorrência
de milagres é directamente proporcional ao grau de ignorância.
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