domingo, 12 de outubro de 2014

UM FINLANDÊS POUCO CONHECIDO: O CÃO DE URSOS DA CARÉLIA

O Cão de Ursos da Carélia (em finlandês Karjalankarhukoira) é um spitz usado para caçar animais de grande porte (alces, ursos, glutões, etc.), tanto na Finlândia quanto na vizinha Rússia, nas regiões fronteiriças da Carélia Lagoda, Olonetas e Carélia Russa, proximidade geográfica que justifica para alguns a mesma origem do Laika Russo. A criação objectiva da raça iniciou-se por volta de 1936, muito embora os primeiros registos individuais só venham a acontecer 10 anos mais tarde (1946). Durante o conflito russo-finlandês, ocorrido entre 30 de Novembro de 1939 e 12 de Março de 1940, que ficou para a história como a “Guerra de Inverno”, a raça quase desapareceu e em 1960 a sua criação encontrava-se seriamente comprometida. Apesar das contrariedades, os seus criadores conseguiram recuperá-la outra vez e perpetuá-la até aos dias de hoje, mantendo-lhe as características originais e seguindo o mesmo propósito de sempre: o de produzir um caçador de grandes animais.
O Cão de Ursos da Carélia, que é um ilustre desconhecido em Portugal, é extremamente atento, ágil, resistente e forte, tem um temperamento independente, manifesta altíssima agressividade, é territorial, muito autoconfiante, reservado, equilibrado e inteligente, é corajoso, rústico e persistente, estabelece fortes vínculos com o dono, sendo-lhe fiel e leal, evidencia um forte impulso à luta e um extraordinário instinto de caça, para além de ser um bom guardião, características que o obrigarão à sociabilização e a um adestramento firme, porque é pouco sociável com outros cães e tende à desobediência, ainda que extremamente amistoso com as crianças. Temendo a precariedade da liderança face à sua persistência e autonomia, muito desaconselham-lhe o treino de ataque. Ao mesmo tempo e pelas mesmas razões, existe consenso quanto à sua condução atrelada nos espaços públicos. Diga-se em abono da verdade que estamos na presença de um lobo com a confiança dum cão e não perante um cão com as tibiezas dum lobo.
Quanto à morfologia e ao aspecto geral, o Cão de Ursos da Carélia é um canídeo de porte médio, de conformação robusta e sólida, ligeiramente rectangular, de olhos expressivos e pequenos, orelhas erectas e pelagem densa. A sua cabeça vista de frente apresenta-se triangular, o crânio é largo, visível de frente, e de perfil ligeiramente convexo, sendo mais largo entre as orelhas. O sulco sagital é visível e as arcadas superciliares são ligeiramente desenvolvidas. O stop é pouco pronunciado, longo de preferência e arqueado para o crânio. O focinho é profundo e adelgaça-se subtilmente em direcção ao nariz. A cana nasal é recta e o nariz é grande e de cor preta. Os lábios esperam-se finos e bem ajustados e os arcos zigomáticos são fortes. A sua dentição é completa e os dentes apresentam-se simétricos e bem desenvolvidos. A sua mordedura é em forma de tesoura. Os seus olhos são pequenos e ligeiramente ovais, de expressão curiosa e ardente. As suas orelhas são erectas, de alta implantação, de tamanho médio e arredondadas nas pontas. O seu pescoço é de comprimento médio, arqueado, bem musculado e revestido de farta pelagem, não apresentando barbelas. Apresenta a cernelha claramente definida (nas fêmeas essa definição é menor), dorso paralelo ao solo e musculado, lombo curto e também musculado, o peito é largo mas não em demasia e nivelado pela linha dos cotovelos, o antepeito é bem visível e não muito largo. Possui costelas arqueadas e o ventre ligeiramente esgalgado, a garupa é ligeiramente inclinada, larga e forte. A cauda é de inserção alta, de comprimento médio, curvada sobre o dorso e a sua ponta toca-o em qualquer dos seus lados.
Os seus membros anteriores são de ossatura forte, rectos e paralelos quando vistos de frente. O braço e o ombro apresentam o mesmo comprimento e o antebraço é ligeiramente mais longo. Os ombros são relativamente oblíquos e musculados, o mesmo sucedendo com os braços, não manifestando qualquer descodilhamento quando imóvel ou em marcha. Os seus metacarpos são de comprimento médio e ligeiramente oblíquos, as suas patas são compactas, bem arqueadas, arredondadas (pé de gato) e correctamente direccionadas para a frente. As almofadas são elásticas e revestidas lateralmente por densa pelagem. Os seus membros posteriores são igualmente fortes e musculados, rectos e paralelos quando vistos por trás. A linha anterior dos posteriores é uniformemente arqueada. As coxas são largas, longas e fortemente musculadas. Os joelhos são de angulação média e virados para a frente. As pernas são longas e musculados, os metatarsos são curtos, fortes e verticais, os jarretes são baixos e visivelmente angulados. As patas traseiras são ligeiramente maiores e menos arqueadas que as dianteiras, ainda que igualmente elásticas e revestidas lateralmente por densa pelagem. O movimento do Cão de Ursos da Carélia é leve e cobre bastante terreno sem esforço, transita facilmente do trote para o galope e adopta este andamento natural como prática preferencial, o que o torna próprio para rondar propriedades maiores ou mistas, estas últimas constituídas por jardins, pomares, vinhas ou bosques.
A pele do Cão de Ursos da Carélia não apresenta rugas, dobras ou pregas, sendo naturalmente ajustada à carne. A sua pelagem é dupla e o seu subpêlo é denso e macio, contrariamente ao pelo que é áspero, duro e recto, mais longo no pescoço, no dorso e na face posterior das coxas (calções). A cor da sua pelagem é maioritariamente negra, por vezes atenuada com nuances castanhas e quase todos os exemplares apresentam manchas brancas claramente definidas na cabeça, no pescoço, no peito, na barriga e nos membros. O estalão da raça adianta 57cm de altura para os machos e 52cm para as fêmeas, aceitando como tolerância +/- 3cm em ambos os casos. O peso indicado para os machos oscila entre os 25 e os 28kg e para as fêmeas dos 17 aos 20kg. Como o comprimento do Cão de Ursos da Carélia é apenas ligeiramente superior à sua altura e a profundidade do seu peito é cerca de metade dela, ele pode rodopiar, lateralizar, desviar-se ou inverter o sentido de marcha para se desviar dos ataques ou contra-ataques dos animais a quem dá caça. Por outro lado, graças às suas proporções craniofaciais (60/40) e ao facto da medida do seu crânio ser aproximadamente a mesma que a mensurável na sua largura e profundidade, os seus golpes são mais certeiros, duros e eficazes.
Quando o sangue nos corria na guelra e aceitávamos qualquer desafio, pensámos inúmeras vezes em adquirir um Cão de Ursos da Carélia, porque há muito conhecíamos o seu valor e fama, certos de que trocaríamos os seus alvos e reconverteríamos o cão, tornando-o num guardião clássico com excelentes credenciais, animados pela experiência e êxito que tivemos na reeducação. Por força das circunstâncias da vida, nem todas debaixo do nosso controlo ou decorrentes do nosso querer e responsabilidade, tal nunca veio a suceder, o que infelizmente lamentamos. Hoje já nos pesam os ossos para vestir a pele de urso. Caberá aos mais novos fazê-lo e comprovar que estávamos certos. Nunca nos iludimos com as pretensas qualidades dos híbridos do lobo, até porque em 1987, apesar de já o sabermos pela análise do Lobo Checo, do Lobo Italiano e doutros, fizemos várias ninhadas deles e de imediato comprovámos as suas menos valias.
O Cão de Ursos da Carélia é a melhor das opções para quem é disponível e excursionista, gosta de cães duros, rústicos, valentes, atentos e inesgotáveis, para quem nasceu líder, tem experiência, não desarma, é equilibrado e necessita dele, porque é um caçador persistente e um guardião como poucos, apesar da sua leveza e carácter aparentemente tímido. Contudo, ele é um companheiro que exige escovagem diária, aturada sociabilização entre iguais, trabalho sistemático e terreno para bater, tornando-se apático ou stressado quando excessivamente confinado ou inactivo.
Jamais será um cão para brincadeiras, farsas ou para “ver se dá”, porque os seus ataques são potentes, por norma superiores e inesperados, quer se lance do solo ou se empine para enfrentar, hábito que depressa adquire quando contrariado, acossado ou debaixo de alguma vantagem. É evidente que dentro da raça, à imitação do que se passa nas outras, existem cães de todos os perfis psicológicos e que todos eles podem ser transformados por força do treino, quadro experimental e demais peso ambiental.
Com denunciada alegria e emoção, mas não descuidando a análise fria e objectiva, apresentámos aos nossos leitores este finlandês pouco conhecido, um verdadeiro Apolo canino, nascido nas longínquas terras do Norte, entre russos e finlandeses, cujo nome original nem conseguimos soletrar, um valente que nos fez e faz sonhar.

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