Sempre ouvi dizer que se perdoa o mal que faz pelo bem que sabe,
aforismo que explica duma forma simplista os maus hábitos, a dependência, as
paixões e os vícios que nos comprometem, alguns deles responsáveis pelo
encurtamento dos nossos dias e pelo mal que causamos aos outros, na ânsia da
felicidade que não olha a meios e que se pode reduzir a breves momentos. Sem
grande dificuldade, poderemos enquadrar neste grupo de indivíduos os “tontinhos
dos cães”, gente que deles abusa para a sua realização pessoal, que apaixonada
por uma modalidade ou outra, acaba por desconsiderar o que é devido aos
animais, dominada por uma cegueira que não controla e embalada pelo especicismo
que não vê, o que tem levado muitos aos desprezo pela preparação geral e ao
abuso da específica, enraizando vícios nos cães e desaproveitando as suas
mais-valias. Tal é caso que vamos aqui tratar, o de uma jovem border collie
destinada ao agility, nascida submissa e tornada beligerante, que raramente
olha para o dono, persegue os outros cães quando se encontra solta e que não se
cala quando atrelada, separada ou imobilizada, comprometendo a sua prestação
por lá chegar já estoirada.
Para uma melhor compreensão do problema e das suas causas, adiantaremos seguidamente
uma breve resenha do seu histórico pessoal e processo pedagógico. Adquirida a
tarde e más horas (depois dos 4 meses), carente de peso, robustez e
apresentação, bem cedo mostrou um conjunto de medos de difícil solução,
reforçados pela transição do campo para a cidade. Máquinas em movimento,
bicicletas, skates e pessoas a correr provocavam-lhe um pânico incontido,
obrigando-a a refugiar-se atrás do dono ou a pôr-se em fuga quando solta. Esporadicamente
atrelada, de modo desregrado e entregue aos seus receios, sempre apresentou dificuldades
no “junto” (que ainda mantém), porque evoluía desconfiada, com a cabeça em
cata-vento e desinteressada pelos brinquedos, evitando o contacto visual com o
dono e atrasando-se ou adiantando-se de acordo com o particular das
circunstâncias. Sobre o dono importa dizer que é novato nestas andanças e que a
cadela é o seu primeiro cão, sendo um indivíduo introvertido e pouco
expressivo, mais dado ao sonho do que à confiança no trabalho, um típico adepto
do “laissez faire” e por conseguinte pouco ambicioso, que despreza o princípio
pedagógico da sobrecarga e abomina o trabalho sistemático. Cansado dos arrufos
da cadela, que julga resultantes das suas características pastoris, o que faz sentido
mas não encobre outras razões, pensa agora enjaulá-la durante as aulas, para
que ela não se estoire e os outros possam evoluir em paz.
E porque o homem dividiu as suas preocupações connosco e não é caso
único, vamos adiantar aqui as soluções que julgamos válidas para os seus
problemas, já que eles excedem a responsabilidade exclusiva da cadela e só
serão vencidos pelo empenho do dono. A primeira solução que adiantamos é a
prática diária do “junto” atrelado e reforçado pela recompensa, durante 1 hora,
num local conhecido da cadela e menos propenso a distracções, numa cadência de
marcha de 5km/h, para
cimentar a confiança no dono, evitar a fixação exagerada que induz a
perseguições desnecessárias e operar a melhoria dos seus ritmos vitais,
dotando-a assim de maior resistência, porque importa alcançar a fixação
exclusiva na pessoa do dono, levar de vencida os seus medos, contrariar
mecanicamente as suas tendências e prepará-la para o desgaste produzido pelas
provas ou percursos, já que a marcha é o melhor suporte para o galope e o
andamento que melhor se presta ao controle dos donos, contrariamente ao passo
que leva ao relaxe e ao galope desenfreado que tende a ensurdecer os cães.
Enquanto
durar este redireccionamento, tanto a frequência quanto a intensidade dos
percursos a galope deverão ser diminuídas, nunca ultrapassando as duas sessões
semanais, cada uma com uma duração máxima de 15 minutos, para não se deitar por
terra o que porventura se alcançou. Visando a recuperação plena dos animais e a
sua motivação, entre o trabalho da marcha e a sua prestação nos obstáculos,
deverá ser guardado um intervalo mínimo de 8 horas. Como complemento ao que
atrás se disse e a título de esclarecimento, também os galgos destinados à
corrida à pele ou à lebre natural necessitam, como preparação, de percursos
diários de marcha. E quando tal não acontece, a maioria deles lesiona-se e não
aguenta o calendário regular das provas, independentemente da sua procedência ou
gabarito, particularmente os mais empenhados, que poderão ficar incapacitados definitivamente.
Voltemo-nos para o caso da Border. Depois de alcançados os objectivos no 1º
percurso indicado, é altura de procurar outro num ecossistema diverso e mais
propício a distracções, agora numa toada de marcha de 7,8Km/h, transitando desse para outros até ao
alcance total das soluções, prémio geralmente ganho antes dos 21 dias de
trabalho.
Em simultâneo e
respeitando-se o intervalo de recuperação já mencionado, a cadela deverá ser
convidada para distintas manobras de sociabilização inter pares, para a
instalação dos diferentes subsídios de imobilização e ser objecto de travamento
específico nas situações onde por norma desobedece, já que as suas arremetidas
são instintivas e despoletadas pelo medo, sendo também convidada para ser
conduzida por terceiros (depois de mais confiante em si própria), no intuito de
estabelecer a supremacia dos comandos perante a exagerada territorialidade, já
que se torna mais agressiva junto aos donos. As manobras de sociabilização
animal deverão ser desenvolvidas primeiro em marcha e depois a galope,
iniciadas à trela e depois desenvolvidas em liberdade. A manobra
mais conclusiva acerca do grau de obediência e sociabilização alcançados
acontece na “corrida de estafetas”, quando se divide a escola em duas equipas e
cada binómio é obrigado a entregar “o testemunho” ao binómio na sua frente, o
que a acontecer sem qualquer tipo de treino, facilmente se tornará numa
balbúrdia ou numa batalha campal.
Os
subsídios de imobilização formados pelos comandos de alto, senta, deita e
quieto, deverão primeiro ser tirados isoladamente e depois entre os restantes
cães escolares, com estes primeiro imóveis e depois embalados nos diversos
andamentos naturais, permanecendo a cadela imóvel e debaixo de ordem em
qualquer dos casos, inicialmente com o dono ao lado e depois perante o seu
desaparecimento. A ênfase maior deverá ocorrer sobre o “quieto à distância”, que
deverá atingir os 100m num período até aos 20 minutos. Todas as situações
passíveis de accionar o instinto de presa na cadela, deverão ser testadas e se
necessário contrariadas, usando-se para o efeito uma trela extensível ou uma
guia de 6m, travamento que evoluirá da frente para a retaguarda do animal. O
grosso deste trabalho intensivo surte os seus efeitos ao cabo de 30 dias, muito
embora não dispense, na maioria dos casos, o seu reavivamento, particularmente
na presença de donos pouco disponíveis e cães super activos.
Como se depreende, os
procedimentos não se esgotam aqui, e se não os manifestamos todos, é porque não
queremos tornar-nos enfadonhos. Contudo, os que manifestámos bastam para a
solução dos problemas apresentados, intimamente ligados ao perfil psicológico
da cadela, à inexperiência do dono e ao consequente desprezo pela idade da
cópia do animal, porque quando ela necessitou de apoio, direcção,
esclarecimento e regra, o seu líder não sabia o que fazer e optou por soltá-la
pelos espaços, na esperança que os problemas fossem transitórios e que o tempo
tudo resolvesse. Ainda há tempo para a cadela, há que abraçar o trabalho!
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