domingo, 12 de outubro de 2014

O MONUMENTO QUE TARDA

No Norte do País, particularmente nos concelhos do interior mais pobres e remotos, deveria ser erigido um monumento ao porco (quiçá também à batata, às couves e ao feijão), porque tanto a economia quanto a sobrevivência das famílias assentou milenarmente sobre a sua criação e abate. Até há algumas décadas atrás, cada família rural criava anualmente dois porcos (bísaros): um para venda e outro destinado ao sustento da família. Depois de abatidos, limpos e arranjados, os animais eram conservados nas “salgadeiras”, locais muito cobiçados pela garotada, cuja barriga andava sempre às voltas, ávida de gordura e proteína animal. Aproveitava-se quase tudo do porco: carne, ossos, gordura, tripas e até os couratos, nada era desprezado e tudo servia para enriquecer as sopas, os guisados, as frituras e as feijoadas, para já não se falar na excelência dos enchidos. Apesar de há muito o merecer, o monumento que reclamamos não é para o porco, mas sim para homenagear o cão rafeiro, hoje tratado como de raça indefinida e eterno companheiro dos pobres, das suas lides e desventuras, um auxiliar multifacetado e pouco exigente, ainda que nalguns locais fosse indesejado, por ser mais uma boca para alimentar. Se o porco foi objecto de veneração pelos celtas, o cão bem depressa foi associado à fome à miséria, por força da nossa herança semito-cristã.
Ninguém duvida que o número dos cães de companhia é bastante superior ao dos cães pastores, desportivos e de utilidade e que a maioria deles não tem raça definida, verdade fácil de comprovar pelas licenças emitidas pelas autarquias, ainda que muitos deles, porque raramente saem de casa e não são vistos, não tenham qualquer registo camarário, o que impossibilita o cálculo exacto do seu número. A disparidade entre o número de rafeiros e o número de cães com pedigree já foi maior, não tanto por causa das campanhas de castração que se abateram sobre os primeiros, mas porque os cães ditos “puros” são hoje oferecidos ou quase oferecidos. Ainda que a razão económica muito tenha influenciado nesta escolha ao longo dos tempos, uma outra se levanta e de suma importância: rarissimamente um rafeiro morde o dono, alguém do seu agregado familiar, uma criança ou um estranho, característica que, ontem como hoje, muito tem contribuído para o seu bom-nome, aceitação, preferência e adopção.
Se o interior do País deve ao porco grande parte da sua sobrevivência, as populações urbanas e do litoral devem ao comum rafeiro muito do seu bem-estar psicossocial, enquanto companheiro sempre presente, submisso, amigo, pouco dispendioso e terapeuta. A travessia do campo para a cidade foi sem dúvida suavizada pela companhia dos cães, o equilíbrio de muitos jovens foi também tarefa sua e os mais idosos têm-se valido deles para combater a depressão, a demência e o isolamento, assim como aqueles que se encontram sós ou têm sido vítimas de algum tipo de ostracismo. Por tudo isto, e já não somando os cães de auxílio específico, bem que o cão de companhia deveria ter uma estátua em cada cidade e merecer mais respeito da população em geral. Infelizmente, com muito mais facilidade se erigirá um monumento a um político em vida, mesmo que se venha a descobrir que foi um crápula e um corrupto antes da sua morte. Não será no mínimo estranho maltratar quem tanto nos ama e render homenagem a quem nos maltrata? Pelo que temos visto e observado, os homens são por norma mais ingratos do que os cães, mais dados a conveniências e subornos do que aqueles que se prestam a todos os seus desejos. Agora já temos em Lisboa parques caninos, pode ser que algum monumento esteja para breve, porque merecido é ele e o auxílio canino tarda em ser reconhecido.

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