No Norte do País, particularmente nos concelhos do interior mais pobres
e remotos, deveria ser erigido um monumento ao porco (quiçá também à batata, às
couves e ao feijão), porque tanto a economia quanto a sobrevivência das
famílias assentou milenarmente sobre a sua criação e abate. Até há algumas
décadas atrás, cada família rural criava anualmente dois porcos (bísaros): um
para venda e outro destinado ao sustento da família. Depois de abatidos, limpos
e arranjados, os animais eram conservados nas “salgadeiras”, locais muito
cobiçados pela garotada, cuja barriga andava sempre às voltas, ávida de gordura
e proteína animal. Aproveitava-se quase tudo do porco: carne, ossos, gordura,
tripas e até os couratos, nada era desprezado e tudo servia para enriquecer as
sopas, os guisados, as frituras e as feijoadas, para já não se falar na
excelência dos enchidos. Apesar de há muito o merecer, o monumento que
reclamamos não é para o porco, mas sim para homenagear o cão rafeiro, hoje
tratado como de raça indefinida e eterno companheiro dos pobres, das suas lides
e desventuras, um auxiliar multifacetado e pouco exigente, ainda que nalguns locais
fosse indesejado, por ser mais uma boca para alimentar. Se o porco foi objecto
de veneração pelos celtas, o cão bem depressa foi associado à fome à miséria,
por força da nossa herança semito-cristã.
Ninguém duvida que o número dos cães de companhia é bastante superior ao
dos cães pastores, desportivos e de utilidade e que a maioria deles não tem
raça definida, verdade fácil de comprovar pelas licenças emitidas pelas
autarquias, ainda que muitos deles, porque raramente saem de casa e não são
vistos, não tenham qualquer registo camarário, o que impossibilita o cálculo
exacto do seu número. A disparidade entre o número de rafeiros e o número de
cães com pedigree já foi maior, não tanto por causa das campanhas de castração
que se abateram sobre os primeiros, mas porque os cães ditos “puros” são hoje oferecidos
ou quase oferecidos. Ainda que a razão económica muito tenha influenciado nesta
escolha ao longo dos tempos, uma outra se levanta e de suma importância: rarissimamente
um rafeiro morde o dono, alguém do seu agregado familiar, uma criança ou um
estranho, característica que, ontem como hoje, muito tem contribuído para o seu
bom-nome, aceitação, preferência e adopção.
Se o interior do País deve ao porco grande parte da sua sobrevivência,
as populações urbanas e do litoral devem ao comum rafeiro muito do seu
bem-estar psicossocial, enquanto companheiro sempre presente, submisso, amigo,
pouco dispendioso e terapeuta. A travessia do campo para a cidade foi sem
dúvida suavizada pela companhia dos cães, o equilíbrio de muitos jovens foi
também tarefa sua e os mais idosos têm-se valido deles para combater a
depressão, a demência e o isolamento, assim como aqueles que se encontram sós
ou têm sido vítimas de algum tipo de ostracismo. Por tudo isto, e já não
somando os cães de auxílio específico, bem que o cão de companhia deveria ter
uma estátua em cada cidade e merecer mais respeito da população em geral. Infelizmente ,
com muito mais facilidade se erigirá um monumento a um político em vida, mesmo
que se venha a descobrir que foi um crápula e um corrupto antes da sua morte.
Não será no mínimo estranho maltratar quem tanto nos ama e render homenagem a
quem nos maltrata? Pelo que temos visto e observado, os homens são por norma
mais ingratos do que os cães, mais dados a conveniências e subornos do que
aqueles que se prestam a todos os seus desejos. Agora já temos em Lisboa
parques caninos, pode ser que algum monumento esteja para breve, porque
merecido é ele e o auxílio canino tarda em ser reconhecido.
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