Eu nunca temi a morte e nunca a entendi como um castigo, talvez porque
bem cedo me acostumei à morte de outros bem próximos e porque sempre acreditei
que há vida para além dela, mesmo antes que alguém mo inculcasse ou pudesse
entender significados abstractos como “metafísica”, “ressurreição”, “vida
eterna” e por aí adiante, o que me parece Obra alheia e jamais predestinação.
Quando era jovem não pensava nela, apesar de sempre me acompanhar, porque fui
saudável e os seus indícios eram pouco perceptíveis. Sem doenças de fabrico
para me atormentar e liberto da maioria dos maus hábitos que comprometem a
saúde, vejo-me agora atormentado pelos achaques do desgaste, presságios da
proximidade da morte com os quais não me preocupo. Certo dia, depois de um
grave acidente que me deixou acamado e extremamente debilitado, com problemas
de tensão, equilíbrio, visão e audição, quando parecia adormecer, começo a
sentir-me arrebatado sem saber para onde e a ver toda a minha vida em flashes,
daquele momento até à minha infância, memórias que havia esquecido e que se
tornaram familiares, de pessoas e episódios que já não recordava, com pouca
relevância até então, disparados ao longo dum túnel branco e acolhedor por onde
me deslocava rapidamente. Surpreso e sentindo-me a atravessar da morte para a
vida, gritei desesperado por socorro e aqui estou a contar-vos o sucedido,
trinta anos volvidos. Resta dizer que naquele tempo, ainda não me havia
dedicado inteiramente aos cães.
Hoje, mercê
do sucesso publicitário que foi “o encantador de cães” e conhecida que é a
predilecção dos portugueses pelos animais de companhia, também porque importa não
perder o “comboio”, não há pé-rapado ou erudito desprezado que não fale ou
escreva sobre de cães, uma amálgama de gente bastante diversificada que junta
gananciosos de todo o tipo e oportunistas de eleição, desde políticos
esquecidos a indivíduos carenciados de ascensão, apesar da maioria deles ser
alheia aos cães e à canicultura. Alguns mais astutos e conhecedores do carácter
metafísico das nossas gentes, juntam o útil ao agradável e vão mais longe,
alvitrando a eternidade e um paraíso celestial para os lobos familiares, que esperando
os seus donos às portas do Céu, ali viveriam com eles felizes, lado a lado e
para sempre. Perante tamanha imaginação, ao lado de S. Pedro com as chaves,
provavelmente acompanhado por um pastor alemão, já estamos a ver S. João
Baptista com um border collie por perto, não vá o cordeiro fugir! E no inferno o
panorama não seria muito diferente, aparecendo Satanás ladeado por um valente
cane corso à sua direita e um decidido presa canário à sua esquerda, como
auxiliares da sua falta de pontaria com a forquilha! Estranhamente, patranhas
destas não faltam e todas elas se vendem. Estará o animismo celta de volta ou
será que nunca nos libertámos dele?
Sem a imaginação dessa gente e do seu carácter visionário, provenientes
da tramóia que busca o lucro ou dalguma patologia, considerando a experiência
que manifestei no primeiro parágrafo, cada vez mais me convenço que os meus
cães me acompanharão na rápida passagem da vida para a morte, que estarão
presentes nos flashes da minha despedida, porque os amei, levo muitos anos ao
lado deles e sempre fizeram parte da minha vida, muito embora não tenha a
certeza, porque não fui e não serei eu, pelo menos de modo consciente, a
escolher tais imagens e a sua sequência. De qualquer maneira a ideia agrada-me
e ao falar disto lembro-me do barco de Anúbis, o Deus-Chacal do Antigo Egipto,
a quem cabia a tarefa de transportar os mortos para a eternidade, apesar de não
ser um egiptólogo e de não me embeiçar por esses deuses, deidades que alguns
afirmam agora terem ou serem de origem alienígena. Se os cães vieram a este
mundo para suavizar a nossa caminhada, então não iremos precisar mais deles na
bem-aventurada eternidade, porque já cumpriram o seu papel. Mais importante que
atribuir-lhes um céu, é recompensá-los aqui pelo muito que nos têm dado, porque
desconhecem a Redenção e agradecem que os tratem bem, livrando assim muitos do
inferno em que vivem. Não obstante, chegada a hora, que bom seria rever todos
os meus cães pela última vez, os meus, aqueles que treinei e os que ajudei a
capacitar, até porque atendendo ao seu número – a morte tardaria em chegar!
Desejos.
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