domingo, 26 de outubro de 2014

ESTOU CONVENCIDO QUE ELES ATRAVESSARÃO COMIGO

Eu nunca temi a morte e nunca a entendi como um castigo, talvez porque bem cedo me acostumei à morte de outros bem próximos e porque sempre acreditei que há vida para além dela, mesmo antes que alguém mo inculcasse ou pudesse entender significados abstractos como “metafísica”, “ressurreição”, “vida eterna” e por aí adiante, o que me parece Obra alheia e jamais predestinação. Quando era jovem não pensava nela, apesar de sempre me acompanhar, porque fui saudável e os seus indícios eram pouco perceptíveis. Sem doenças de fabrico para me atormentar e liberto da maioria dos maus hábitos que comprometem a saúde, vejo-me agora atormentado pelos achaques do desgaste, presságios da proximidade da morte com os quais não me preocupo. Certo dia, depois de um grave acidente que me deixou acamado e extremamente debilitado, com problemas de tensão, equilíbrio, visão e audição, quando parecia adormecer, começo a sentir-me arrebatado sem saber para onde e a ver toda a minha vida em flashes, daquele momento até à minha infância, memórias que havia esquecido e que se tornaram familiares, de pessoas e episódios que já não recordava, com pouca relevância até então, disparados ao longo dum túnel branco e acolhedor por onde me deslocava rapidamente. Surpreso e sentindo-me a atravessar da morte para a vida, gritei desesperado por socorro e aqui estou a contar-vos o sucedido, trinta anos volvidos. Resta dizer que naquele tempo, ainda não me havia dedicado inteiramente aos cães.
Hoje, mercê do sucesso publicitário que foi “o encantador de cães” e conhecida que é a predilecção dos portugueses pelos animais de companhia, também porque importa não perder o “comboio”, não há pé-rapado ou erudito desprezado que não fale ou escreva sobre de cães, uma amálgama de gente bastante diversificada que junta gananciosos de todo o tipo e oportunistas de eleição, desde políticos esquecidos a indivíduos carenciados de ascensão, apesar da maioria deles ser alheia aos cães e à canicultura. Alguns mais astutos e conhecedores do carácter metafísico das nossas gentes, juntam o útil ao agradável e vão mais longe, alvitrando a eternidade e um paraíso celestial para os lobos familiares, que esperando os seus donos às portas do Céu, ali viveriam com eles felizes, lado a lado e para sempre. Perante tamanha imaginação, ao lado de S. Pedro com as chaves, provavelmente acompanhado por um pastor alemão, já estamos a ver S. João Baptista com um border collie por perto, não vá o cordeiro fugir! E no inferno o panorama não seria muito diferente, aparecendo Satanás ladeado por um valente cane corso à sua direita e um decidido presa canário à sua esquerda, como auxiliares da sua falta de pontaria com a forquilha! Estranhamente, patranhas destas não faltam e todas elas se vendem. Estará o animismo celta de volta ou será que nunca nos libertámos dele?
Sem a imaginação dessa gente e do seu carácter visionário, provenientes da tramóia que busca o lucro ou dalguma patologia, considerando a experiência que manifestei no primeiro parágrafo, cada vez mais me convenço que os meus cães me acompanharão na rápida passagem da vida para a morte, que estarão presentes nos flashes da minha despedida, porque os amei, levo muitos anos ao lado deles e sempre fizeram parte da minha vida, muito embora não tenha a certeza, porque não fui e não serei eu, pelo menos de modo consciente, a escolher tais imagens e a sua sequência. De qualquer maneira a ideia agrada-me e ao falar disto lembro-me do barco de Anúbis, o Deus-Chacal do Antigo Egipto, a quem cabia a tarefa de transportar os mortos para a eternidade, apesar de não ser um egiptólogo e de não me embeiçar por esses deuses, deidades que alguns afirmam agora terem ou serem de origem alienígena. Se os cães vieram a este mundo para suavizar a nossa caminhada, então não iremos precisar mais deles na bem-aventurada eternidade, porque já cumpriram o seu papel. Mais importante que atribuir-lhes um céu, é recompensá-los aqui pelo muito que nos têm dado, porque desconhecem a Redenção e agradecem que os tratem bem, livrando assim muitos do inferno em que vivem. Não obstante, chegada a hora, que bom seria rever todos os meus cães pela última vez, os meus, aqueles que treinei e os que ajudei a capacitar, até porque atendendo ao seu número – a morte tardaria em chegar! Desejos.

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