domingo, 12 de outubro de 2014

RIR, CHORAR, APLAUDIR OU ASSOBIAR?

Não fora o sol que se difunde nesta luz branca e única que nos alumia, eu juraria acordar certos dias num pesadelo, num país fictício de gentes fictícias, dominado pela vaidade e pelo faz de conta, onde nada pode ser levado a sério e tudo não passa de um mero entretém para crianças. Há muito que o trabalho perdeu o carácter sagrado de outrora e passou a ser entendido como um mal necessário, todos se baldam e querem levar vantagem, a corrupção engorda, os projectos colectivos são desprezados e a Nação pode esperar, enquanto uns tantos se desenrascam, até que chegue o último para apagar a luz e finalmente o País vá a pique! Assistimos casualmente a uma exibição de cães duma força policial, antes nunca lá tivesse-mos posto os pés! Não vamos aqui divulgar o nome dessa força, nem o local e hora onde se exibiu, por respeito aos tratadores que deram a cara e que são vítimas de manifesta falta de instrução, apesar de os rotularmos perante o logro (para nós mesmos e certos de que ninguém nos ouvia), de maçaricos, paisanos e manipansos, adjectivos para eles à medida, considerando a sua idade, pouco profissionalismo e desacerto, apesar de reconhecidamente “porreiros” e a lembrarem o “Quim Barreiros”, a vedeta aqui mais solicitada para festas e romarias.
A dita exibição não poderia ter corrido pior, não obedeceu a nenhuma ordem de trabalhos visível, tresandou a improviso e não acabou em alta, uma amálgama sem pés nem cabeça. A assistência, que até era razoável, mostrou-se a maior parte do tempo indiferente. E se houve aplausos e algum envolvimento da sua parte, tal aconteceu a rogo de quem dirigiu aquele péssimo espectáculo, pessoa tão apta a solicitar aprovação como em pedir desculpas. Houve momentos em que nos julgamos na Ilha Terceira, nos Açores, a assistir a uma tourada à corda. Sentindo o público algo apático, o “speaker”, apelou despudoradamente à sua clubite, atribuindo a cada cão a “camisola” de um dos três grandes do futebol nacional. Ouvia-se: “Quem é que é do Benfica? Quem é que é do Sporting? E do Belenenses? Toda a gente gosta do Belenenses, porque é um clube simpático e não faz mal a ninguém!”
Como não podemos descrever pormenorizadamente todos os exercícios ocorridos, porque não os conseguimos reter na memória, mercê da sua insignificância e baixo grau de dificuldade, iremos somente comentar um deles, por sinal pouco visto e sempre espectacular: o salto de vários arcos de fogo consecutivos, ali designados por “aros”, nomenclatura que se aceita. Bem sabemos que as exibições deste cariz são mais dadas ao folguedo do que ao rigor técnico, porque doutro modo seriam orientadas por oficiais e não por sargentos. Os arcos, elevados a sensivelmente 80cm do solo, com um diâmetro entre os 55 e 60cm (não tivemos como conferir as medidas e também não as indicaram, o que deveriam ter feito, em abono do espectáculo e do bom-nome dos cães), encontravam-se a uma distância que permitia o galope fluído dos animais sem interrupções ou ajustes, o que tecnicamente está correcto e sempre causa algum bruído e “frisson”.
Com alguma expectativa aguardámos o desenrolar daqueles exercícios, esperança vã face ao que nos foi apresentado, já que os binómios apenas fizeram os obstáculos simples, alinhados em segmento de recta e pela mão natural de condução (pelo lado esquerdo dos seus tratadores), basicamente transposições de apresentação e aquecimento. Mas o que esperávamos nós daqueles profissionais? Para além do que fizeram, esperávamos que operassem a transposição dos aros tanto à esquerda como à direita, que permanecessem na linha do primeiro salto e conseguissem mandar os cães sozinhos até ao último aro, pedindo-lhes depois que retornassem pelos mesmos obstáculos em direcção à linha de partida. Como a base dos aros isso permitia e a sua junção se encontrava dentro da curvatura natural de salto, esperávamos que juntassem os aros dois a dois, o que não acarretaria em qualquer risco para os cães e aumentaria a espectacularidade daquela exibição. Também poderiam ter subido o último aro mais 10cm, o que “agarraria” a audiência e a faria explodir em aplausos. Poderiam ainda ter disposto os aros desalinhados (desenfiados), o que desnudaria a obediência daqueles cães e a mais-valia técnica dos seus instrutores. Nada disso se viu! Já vimos escolas civis com condutores amadores a fazê-lo e bem, o que nos leva a questionar: para onde vão ou foram os cães policiais?
Na introdução aos aros do fogo ouvimos: “o fogo é um inimigo para os cães, mas depois de muito treino, os nossos conseguem ultrapassá-lo!”. Esta exclamação terá a sua validade para o populacho, para que não intente fazê-lo de qualquer maneira e sem prévia preparação, o que acontecer, viria a chamuscar um sem número de cães. Contudo, sempre será melhor explicar do que amedrontar. Parece-nos que as forças de segurança, para além da fiscalização, da persuasão, da coerção, da inibição e da punição, têm também como pedagogia o esclarecimento das populações. Ademais, quando se realiza ou se participa num evento público relacionado com cães, nunca se sabe quem temos na assistência, sabendo-se de antemão que a cinotecnia em Portugal sofreu um grande incremento (pelos vistos mais a civil do que a policial ou militar) e que o público é agora mais exigente e conhecedor, não se contentando com explicações simplistas e exibições de circunstância, com atropelos à técnica e desculpas esfarrapadas. Todos sabemos que os pastores alemães possuem uma excelente memória mecânica e que um cão depois de aprender a marcar o salto e a vencer um arco, bem depressa virá a fazer o arco com fogo, já que o obstáculo é o mesmo, o fogo pouco incomoda e o cão parte na certeza do sucesso anterior. Se aqueles cães treinaram afincadamente, tal não se viu, já que não deram mostras disso!
No final daquela paupérrima exibição, deparámo-nos com algo insólito: com um miúdo de 8 anos a puxar por um nó de corda que se encontrava preso na boca de um cão-polícia, um daqueles que tinha acabado de se exibir, não resultando disso qualquer acidente, sendo que o seu tratador se encontrava por perto. Apesar de se louvar o cuidado do cão com criança, o polícia, ao consentir no acto do infante, poderá ter contribuído para que amanhã ele venha a proceder de igual modo com um cão desconhecido e acabe mordido, sabendo-se que os churros e os nós de corda são potenciadores de mordedura, que se prestam e são usados para o desenvolvimento do instinto de presa canino e que os cães lutam desalmadamente pela sua posse, entendendo-os como prémio que não dispensam. Como o acto foi público, o cão saiu banalizado e o seu tratador ficou mal enquadrado na fotografia com o “canito”. Naquela mescla de obediência, pistagem e guarda, macedónia inconclusiva, há que louvar os cães por um lado e lamentá-los por outro, louvá-los pela disponibilidade e lamentá-los pelo subaproveitamento. E já agora, por onde andarão os senhores oficiais das companhias cinotécnicas, cavalheiros que aparecem amiúde na TV e que raramente se vêm nas exibições e demais eventos públicos? Não seremos dignos da sua presença ou terão muitos afazeres? Como já estamos fartos de ser vulgarizados, só Deus sabe o quanto gostaríamos de vê-los, já que o seu aparecimento e saber enriqueceriam de sobremaneira qualquer evento cinotécnico, dotando-o de mais rigor, erudição, qualidade e espírito de corpo.

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