Não
fora o sol que se difunde nesta luz branca e única que nos alumia, eu juraria
acordar certos dias num pesadelo, num país fictício de gentes fictícias,
dominado pela vaidade e pelo faz de conta, onde nada pode ser levado a sério e
tudo não passa de um mero entretém para crianças. Há muito que o trabalho
perdeu o carácter sagrado de outrora e passou a ser entendido como um mal
necessário, todos se baldam e querem levar vantagem, a corrupção engorda, os
projectos colectivos são desprezados e a Nação pode esperar, enquanto uns
tantos se desenrascam, até que chegue o último para apagar a luz e finalmente o
País vá a pique! Assistimos casualmente a uma exibição de cães duma força
policial, antes nunca lá tivesse-mos posto os pés! Não vamos aqui divulgar o
nome dessa força, nem o local e hora onde se exibiu, por respeito aos
tratadores que deram a cara e que são vítimas de manifesta falta de instrução,
apesar de os rotularmos perante o logro (para nós mesmos e certos de que
ninguém nos ouvia), de maçaricos, paisanos e manipansos, adjectivos para eles à
medida, considerando a sua idade, pouco profissionalismo e desacerto, apesar de
reconhecidamente “porreiros” e a lembrarem o “Quim Barreiros”, a vedeta aqui mais
solicitada para festas e romarias.
A dita exibição não poderia ter corrido pior, não obedeceu a nenhuma
ordem de trabalhos visível, tresandou a improviso e não acabou em alta, uma
amálgama sem pés nem cabeça. A assistência, que até era razoável, mostrou-se a
maior parte do tempo indiferente. E se houve aplausos e algum envolvimento da
sua parte, tal aconteceu a rogo de quem dirigiu aquele péssimo espectáculo,
pessoa tão apta a solicitar aprovação como em pedir desculpas. Houve momentos
em que nos julgamos na Ilha Terceira, nos Açores, a assistir a uma tourada à
corda. Sentindo o público algo apático, o “speaker”, apelou despudoradamente à
sua clubite, atribuindo a cada cão a “camisola” de um dos três grandes do
futebol nacional. Ouvia-se: “Quem é que é do Benfica? Quem é que é do Sporting?
E do Belenenses? Toda a gente gosta do Belenenses, porque é um clube simpático
e não faz mal a ninguém!”
Como
não podemos descrever pormenorizadamente todos os exercícios ocorridos, porque
não os conseguimos reter na memória, mercê da sua insignificância e baixo grau
de dificuldade, iremos somente comentar um deles, por sinal pouco visto e
sempre espectacular: o salto de vários arcos de fogo consecutivos, ali
designados por “aros”, nomenclatura que se aceita. Bem sabemos que as exibições
deste cariz são mais dadas ao folguedo do que ao rigor técnico, porque doutro
modo seriam orientadas por oficiais e não por sargentos. Os arcos, elevados a
sensivelmente 80cm do solo, com um diâmetro entre os 55 e 60cm (não tivemos
como conferir as medidas e também não as indicaram, o que deveriam ter feito,
em abono do espectáculo e do bom-nome dos cães), encontravam-se a uma distância
que permitia o galope fluído dos animais sem interrupções ou ajustes, o que
tecnicamente está correcto e sempre causa algum bruído e “frisson”.
Com alguma expectativa aguardámos o desenrolar daqueles exercícios,
esperança vã face ao que nos foi apresentado, já que os binómios apenas fizeram
os obstáculos simples, alinhados em segmento de recta e pela mão natural de
condução (pelo lado esquerdo dos seus tratadores), basicamente transposições de
apresentação e aquecimento. Mas o que esperávamos nós daqueles profissionais?
Para além do que fizeram, esperávamos que operassem a transposição dos aros
tanto à esquerda como à direita, que permanecessem na linha do primeiro salto e
conseguissem mandar os cães sozinhos até ao último aro, pedindo-lhes depois que
retornassem pelos mesmos obstáculos em direcção à linha de partida. Como a base
dos aros isso permitia e a sua junção se encontrava dentro da curvatura natural
de salto, esperávamos que juntassem os aros dois a dois, o que não acarretaria
em qualquer risco para os cães e aumentaria a espectacularidade daquela
exibição. Também poderiam ter subido o último aro mais 10cm, o que “agarraria”
a audiência e a faria explodir em aplausos. Poderiam ainda ter disposto os aros
desalinhados (desenfiados), o que desnudaria a obediência daqueles cães e a
mais-valia técnica dos seus instrutores. Nada disso se viu! Já vimos escolas
civis com condutores amadores a fazê-lo e bem, o que nos leva a questionar:
para onde vão ou foram os cães policiais?
Na
introdução aos aros do fogo ouvimos: “o fogo é um inimigo para os cães, mas
depois de muito treino, os nossos conseguem ultrapassá-lo!”. Esta exclamação
terá a sua validade para o populacho, para que não intente fazê-lo de qualquer
maneira e sem prévia preparação, o que acontecer, viria a chamuscar um sem número
de cães. Contudo, sempre será melhor explicar do que amedrontar. Parece-nos que
as forças de segurança, para além da fiscalização, da persuasão, da coerção, da
inibição e da punição, têm também como pedagogia o esclarecimento das
populações. Ademais, quando se realiza ou se participa num evento público
relacionado com cães, nunca se sabe quem temos na assistência, sabendo-se de
antemão que a cinotecnia em Portugal sofreu um grande incremento (pelos vistos
mais a civil do que a policial ou militar) e que o público é agora mais
exigente e conhecedor, não se contentando com explicações simplistas e
exibições de circunstância, com atropelos à técnica e desculpas esfarrapadas.
Todos sabemos que os pastores alemães possuem uma excelente memória mecânica e
que um cão depois de aprender a marcar o salto e a vencer um arco, bem depressa
virá a fazer o arco com fogo, já que o obstáculo é o mesmo, o fogo pouco
incomoda e o cão parte na certeza do sucesso anterior. Se aqueles cães
treinaram afincadamente, tal não se viu, já que não deram mostras disso!
No
final daquela paupérrima exibição, deparámo-nos com algo insólito: com um miúdo
de 8 anos a puxar por um nó de corda que se encontrava preso na boca de um cão-polícia,
um daqueles que tinha acabado de se exibir, não resultando disso qualquer
acidente, sendo que o seu tratador se encontrava por perto. Apesar de se louvar
o cuidado do cão com criança, o polícia, ao consentir no acto do infante,
poderá ter contribuído para que amanhã ele venha a proceder de igual modo com
um cão desconhecido e acabe mordido, sabendo-se que os churros e os nós de
corda são potenciadores de mordedura, que se prestam e são usados para o
desenvolvimento do instinto de presa canino e que os cães lutam desalmadamente
pela sua posse, entendendo-os como prémio que não dispensam. Como o acto foi
público, o cão saiu banalizado e o seu tratador ficou mal enquadrado na
fotografia com o “canito”. Naquela mescla de obediência, pistagem e guarda,
macedónia inconclusiva, há que louvar os cães por um lado e lamentá-los por
outro, louvá-los pela disponibilidade e lamentá-los pelo subaproveitamento. E
já agora, por onde andarão os senhores oficiais das companhias cinotécnicas,
cavalheiros que aparecem amiúde na TV e que raramente se vêm nas exibições e
demais eventos públicos? Não seremos dignos da sua presença ou terão muitos
afazeres? Como já estamos fartos de ser vulgarizados, só Deus sabe o quanto
gostaríamos de vê-los, já que o seu aparecimento e saber enriqueceriam de
sobremaneira qualquer evento cinotécnico, dotando-o de mais rigor, erudição, qualidade
e espírito de corpo.
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