Ontem
alguns cães avisaram os donos e eles não lhe deram ouvidos (para mal dos seus
pecados). Hoje, sem os donos lhe terem dito nada, alguns cães sentiram-nos
tristes e alegraram-nos. Amanhã, como ontem e hoje, eles continuarão a
entender-nos e nós continuaremos a ignorar o que nos dizem. Porque está na moda
e cai bem, nunca se falou tanto de relação telepática entre homens e cães assim
como da possível percepção extra-sensorial canina, como se a primeira fosse
comum e a segunda sobejamente provada. Nunca conhecemos nenhum cão que
precisasse de um intérprete para entender o seu dono, mas estamos fartos de
conhecer homens que necessitam de ajuda para entender os seus cães. A
chocalhada “relação telepática”, a acontecer, assenta no conhecimento mútuo que
produz uma mensagem para além da emanação sensorial e que leva o cão à
satisfação dos desejos do dono, sem o concurso de qualquer condicionamento ou
experiência prévia. Acreditamos que alguns cães possam lá chegar pela constante
observação dos donos, mas duvidamos que estes o consigam quando não têm tempo
para eles, o que obrigará os adestradores, enquanto intérpretes das aspirações
caninas, ao diálogo entre homens e cães, algo bem para além da submissão dos
animais que a maioria procura, baseado na observação que não dispensa o estudo,
a humildade, a sensibilidade e a perca de preconceitos. Assim, não basta ter um
cão extraordinário, há que entendê-lo!
Hoje
avaliamos os cães como o fizemos com os escravos até ao Séc. XIX,
desconsiderando os indivíduos diante da função ou considerando-os de acordo com
o seu proveito, procurando neles o fim útil pela evidência de algumas
mais-valias, jamais as diferenças entre si que tornam cada indivíduo único e
com um potencial díspar, como se andássemos à procura de “cavalos prá fileira”
transformando o adestramento numa “remonta” igual para todos, o que tem sido
fatal para muitos cães e para a canicultura no geral, comprometendo na
cinotecnia a cumplicidade que estabelece a diferença gradativa binomial, graças
a um especicismo latente que obsta a outras formas de entendimento entre os
donos e os seus cães, a despeito da novidade científica que há muito
ultrapassou os métodos actuais, somente apostados na recompensa para a
submissão canina, libertando os homens de maior encargo, envolvimento ou
aptidão, como se a fusão de propósitos fosse impossível sem o contributo do
“rebuçado”, o cão há muito não deixasse de ser lobo e o proveito das míseras
rotinas servisse em exclusivo a inovação.
Para ser conhecido, compreendido, bem integrado,
respeitado, correctamente educado e tornado cúmplice, qualquer cão,
independentemente da sua raça, tamanho ou sexo, não dispensa do dono a comunhão
de vida e a riqueza de experiências que levam também à compreensão da sua
linguagem mímica e ao significado das suas “vozes” (bufar, gemer, ladrar,
latir, rosnar e uivar), o que de imediato nos remete para o tipo de instalação
doméstica a haver, anterior ao treino e que irá estabelecer tanto a brevidade
quanto a morosidade desse processo pedagógico. Ontem como hoje, os cães
continuam a vir para as escolas por desrespeito pela sua condição, porque os
donos não os compreendem ou não se conseguem fazer entender, procurando no
condicionamento uma parceria inibitória, desprezando dessa forma a
singularidade e a complementaridade caninas por desinteresse, desnecessidade ou
ignorância, funcionando as escolas como pátios ou ginásios de prisão porque lá
também existem bolas e todos podem jogar!
Se o objectivo do adestramento é a salvaguarda
canina e não o seu fim útil, o que lamentavelmente muita gente confunde, então
devemos primeiro ir ao encontro das necessidades dos animais para depois vermos
as nossas cabalmente satisfeitas, ajudando-os a ultrapassar as dificuldades, a
robustecê-los física e psicologicamente, a alertá-los para os perigos e a
agregá-los sem atropelos, o resto virá por acréscimo ou arrastamento. Para que
isso aconteça, o cão não pode ser um ilustre desconhecido para o dono ou uma
orca à espera de peixe, mas um companheiro que faz parte da sua vida, porque
doutra forma o treino tornar-se-á marginal face ao quotidiano e as suas
mais-valias terão pouca duração.
O treino canino pode ser o culminar do processo de
aprendizagem dum cão, mas jamais será o seu todo ou a parte primordial, porque
o animal cresce aprendendo e o treino para muitos é perfeitamente dispensável,
até porque grande parte do que é assimilado na escola não virá a ser utilizado.
Por outro lado, os conteúdos de ensino que ela ministra são escassos,
generalizados e pressupõem o rendimento médio-baixo ao alcance de qualquer cão
mal acompanhado, adiantando somente soluções para os problemas mais comuns, não
sendo de estranhar que cães com muito “ensino” concorram a um sem número de
disparates.
É no
dia-a-dia com o cão que importa primeiro investir, porque ali se pode ganhar
tudo, tanto a inserção no grupo familiar como a sua sociabilização e aptidão,
ao tornar o animal “um de nós”, aumentando-lhe assim a sua capacidade de
aprendizagem, pela novidade de experiências e desafios, pelo concurso da regra
e pela assimilação das rotinas. Muito embora tudo isso seja escasso se
desconsiderarmos a sua condição animal, que não dispensa a excursão diária, a
variação dos ecossistemas, o bem-estar territorial, a interacção e o exercício
predatório. Diante disto, cada vez que nos afastamos do nosso cão, muitas vezes
sem darmos conta, estamos a aumentar-lhe a ânsia e a obstar à sua evolução
cognitiva. Em muitos aspectos, o treino quando isolado (destituído do que atrás
dissemos) é como a ração: serve melhor ao dono do que ao cão. É no convívio
diário que aprendemos a conhecer o nosso cão, os seus desejos, medos,
antipatias, preferências, tendências e apelos, para além do seu potencial e das
suas limitações.
Conhecendo
o cão entendemos o que ele quer, porque conhecemos a sua mímica, deciframos os
seus rituais, compreendemos as suas “vozes” e sabemos o porquê das suas
reacções, reatando assim a indispensável comunicação inter-espécies, que permitirá
que ambos se façam entender para sua salvaguarda. Deverá o treino ser
dispensado e o adestramento esquecido? De jeito nenhum! Porque sem ele muitos
cães ainda ficariam mais distantes, arredados da interacção, menos capacitados,
mais infelizes e incompreendidos, afastados dos cuidados que exigem e seriam
sobejamente mais ignorados. Sem o treino como poderíamos valer aos cães pelo
aprimoramento dos donos? Sim, homens e cães vêm para a escola para se
entenderem uns com os outros, porque apesar de diferentes, nenhum deles nasceu
ensinado. Se o objectivo do adestramento é a salvaguarda canina, mediante a
constituição binomial, ele aponta também para a salvaguarda e bem-estar dos
homens. Perca tempo com o seu cão e tente compreendê-lo. Se tiver dificuldades
contacte-nos, estamos cá para isso.
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