sábado, 8 de março de 2014

ELES ENTENDEM O QUE NÃO DIZEMOS E DIZEM O QUE NÃO ENTENDEMOS

Ontem alguns cães avisaram os donos e eles não lhe deram ouvidos (para mal dos seus pecados). Hoje, sem os donos lhe terem dito nada, alguns cães sentiram-nos tristes e alegraram-nos. Amanhã, como ontem e hoje, eles continuarão a entender-nos e nós continuaremos a ignorar o que nos dizem. Porque está na moda e cai bem, nunca se falou tanto de relação telepática entre homens e cães assim como da possível percepção extra-sensorial canina, como se a primeira fosse comum e a segunda sobejamente provada. Nunca conhecemos nenhum cão que precisasse de um intérprete para entender o seu dono, mas estamos fartos de conhecer homens que necessitam de ajuda para entender os seus cães. A chocalhada “relação telepática”, a acontecer, assenta no conhecimento mútuo que produz uma mensagem para além da emanação sensorial e que leva o cão à satisfação dos desejos do dono, sem o concurso de qualquer condicionamento ou experiência prévia. Acreditamos que alguns cães possam lá chegar pela constante observação dos donos, mas duvidamos que estes o consigam quando não têm tempo para eles, o que obrigará os adestradores, enquanto intérpretes das aspirações caninas, ao diálogo entre homens e cães, algo bem para além da submissão dos animais que a maioria procura, baseado na observação que não dispensa o estudo, a humildade, a sensibilidade e a perca de preconceitos. Assim, não basta ter um cão extraordinário, há que entendê-lo!
Hoje avaliamos os cães como o fizemos com os escravos até ao Séc. XIX, desconsiderando os indivíduos diante da função ou considerando-os de acordo com o seu proveito, procurando neles o fim útil pela evidência de algumas mais-valias, jamais as diferenças entre si que tornam cada indivíduo único e com um potencial díspar, como se andássemos à procura de “cavalos prá fileira” transformando o adestramento numa “remonta” igual para todos, o que tem sido fatal para muitos cães e para a canicultura no geral, comprometendo na cinotecnia a cumplicidade que estabelece a diferença gradativa binomial, graças a um especicismo latente que obsta a outras formas de entendimento entre os donos e os seus cães, a despeito da novidade científica que há muito ultrapassou os métodos actuais, somente apostados na recompensa para a submissão canina, libertando os homens de maior encargo, envolvimento ou aptidão, como se a fusão de propósitos fosse impossível sem o contributo do “rebuçado”, o cão há muito não deixasse de ser lobo e o proveito das míseras rotinas servisse em exclusivo a inovação.
Para ser conhecido, compreendido, bem integrado, respeitado, correctamente educado e tornado cúmplice, qualquer cão, independentemente da sua raça, tamanho ou sexo, não dispensa do dono a comunhão de vida e a riqueza de experiências que levam também à compreensão da sua linguagem mímica e ao significado das suas “vozes” (bufar, gemer, ladrar, latir, rosnar e uivar), o que de imediato nos remete para o tipo de instalação doméstica a haver, anterior ao treino e que irá estabelecer tanto a brevidade quanto a morosidade desse processo pedagógico. Ontem como hoje, os cães continuam a vir para as escolas por desrespeito pela sua condição, porque os donos não os compreendem ou não se conseguem fazer entender, procurando no condicionamento uma parceria inibitória, desprezando dessa forma a singularidade e a complementaridade caninas por desinteresse, desnecessidade ou ignorância, funcionando as escolas como pátios ou ginásios de prisão porque lá também existem bolas e todos podem jogar!
Se o objectivo do adestramento é a salvaguarda canina e não o seu fim útil, o que lamentavelmente muita gente confunde, então devemos primeiro ir ao encontro das necessidades dos animais para depois vermos as nossas cabalmente satisfeitas, ajudando-os a ultrapassar as dificuldades, a robustecê-los física e psicologicamente, a alertá-los para os perigos e a agregá-los sem atropelos, o resto virá por acréscimo ou arrastamento. Para que isso aconteça, o cão não pode ser um ilustre desconhecido para o dono ou uma orca à espera de peixe, mas um companheiro que faz parte da sua vida, porque doutra forma o treino tornar-se-á marginal face ao quotidiano e as suas mais-valias terão pouca duração.
O treino canino pode ser o culminar do processo de aprendizagem dum cão, mas jamais será o seu todo ou a parte primordial, porque o animal cresce aprendendo e o treino para muitos é perfeitamente dispensável, até porque grande parte do que é assimilado na escola não virá a ser utilizado. Por outro lado, os conteúdos de ensino que ela ministra são escassos, generalizados e pressupõem o rendimento médio-baixo ao alcance de qualquer cão mal acompanhado, adiantando somente soluções para os problemas mais comuns, não sendo de estranhar que cães com muito “ensino” concorram a um sem número de disparates.
É no dia-a-dia com o cão que importa primeiro investir, porque ali se pode ganhar tudo, tanto a inserção no grupo familiar como a sua sociabilização e aptidão, ao tornar o animal “um de nós”, aumentando-lhe assim a sua capacidade de aprendizagem, pela novidade de experiências e desafios, pelo concurso da regra e pela assimilação das rotinas. Muito embora tudo isso seja escasso se desconsiderarmos a sua condição animal, que não dispensa a excursão diária, a variação dos ecossistemas, o bem-estar territorial, a interacção e o exercício predatório. Diante disto, cada vez que nos afastamos do nosso cão, muitas vezes sem darmos conta, estamos a aumentar-lhe a ânsia e a obstar à sua evolução cognitiva. Em muitos aspectos, o treino quando isolado (destituído do que atrás dissemos) é como a ração: serve melhor ao dono do que ao cão. É no convívio diário que aprendemos a conhecer o nosso cão, os seus desejos, medos, antipatias, preferências, tendências e apelos, para além do seu potencial e das suas limitações.
Conhecendo o cão entendemos o que ele quer, porque conhecemos a sua mímica, deciframos os seus rituais, compreendemos as suas “vozes” e sabemos o porquê das suas reacções, reatando assim a indispensável comunicação inter-espécies, que permitirá que ambos se façam entender para sua salvaguarda. Deverá o treino ser dispensado e o adestramento esquecido? De jeito nenhum! Porque sem ele muitos cães ainda ficariam mais distantes, arredados da interacção, menos capacitados, mais infelizes e incompreendidos, afastados dos cuidados que exigem e seriam sobejamente mais ignorados. Sem o treino como poderíamos valer aos cães pelo aprimoramento dos donos? Sim, homens e cães vêm para a escola para se entenderem uns com os outros, porque apesar de diferentes, nenhum deles nasceu ensinado. Se o objectivo do adestramento é a salvaguarda canina, mediante a constituição binomial, ele aponta também para a salvaguarda e bem-estar dos homens. Perca tempo com o seu cão e tente compreendê-lo. Se tiver dificuldades contacte-nos, estamos cá para isso.

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