Os portugueses são
conhecidos nos círculos de emigração como praguejadores, como gente que larga
impropérios que os outros não alcançam, caso não sejam acompanhados pela mímica
que os desnuda, apesar de serem trabalhadores, pacíficos e ordeiros,
empreendedores inclusive quando se encontram fora da sua terra. As gentes do
Norte do País, mais ontem do que hoje, quando à vontade e entre os seus, são as
que apresentam um linguajar menos elegante, demérito que compensam com a sua
franqueza, solidariedade e disponibilidade, grandeza de alma que ultrapassa em
muito os seus desabafos. Um dos desabafos mais aplicados aos cães é “cão do
raio que o parta”, também conhecido como filho duma mãe pouco reputada, sentença
que os sulistas tendem a substituir por “estupor de cão”. E como há tanto cão
chamado “raio que o parta” por aí, vamos agora tentar explicar de quem se
trata.
O animal assim
chamado é aquele que incomoda, causa transtorno, aumenta as despesas ou obriga
a trabalhos suplementares, normalmente entendidos como sobrecarga, que veio
para o lar sem consenso familiar e que acaba por prejudicar quem não o mandou
vir, porque ladra e não se cala (a tudo e a todos), estraga o jardim, não gosta
de estar preso ou de ser confinado, vira a casa do avesso, corre dentro dela
que nem um desalmado, faz as necessidades onde menos se espera, emporcalha os
donos, exige atenção e limpeza, reclama pela dieta diária, rouba comida, parte
ou rói o que não devia e que não pára quieto até ir à rua, onde puxa que nem um
endiabrado e não se intimida com as condições climatéricas, e isto para já não
se falar que pode alterar os planos familiares de férias, em suma: o cabo dos
trabalhos!
Mas merecerá o cão
tal vocativo? Não terá ele o direito de ser quem é? Impôs porventura a sua
presença? A resposta às três questões é a mesma: não! Geralmente este animal
tem um dono ou tratador forçado que não morre de encantos por ele, que o
recambiaria para bem longe sem qualquer peso na consciência, não descartando a
hipótese de o passar a outrem e até de o abandonar caso ninguém desse por isso,
como infelizmente sempre tem acontecido. Para que não se veja nestes assados,
quando pensar em adquirir um cão, pese bem os prós e os contras de tal
aquisição, tendo consciência daquilo em que se vai meter, decisão que não
poderá encarar de ânimo leve pelas alterações a que obrigará.
E para que não
restas dúvidas quanto aos trabalhos a que um cão obriga, para além do
privilégio de o termos como companheiro ou auxiliar, vamos enunciar aqui
sucintamente o que ele espera de si, protocolos que irão alterar
definitivamente as suas rotinas quotidianas e que poderão chocar com alguns dos
seus interesses ou prioridades, assim como do seu agregado familiar. Todos os
cães requerem carinho, atenção, protecção, espaço próprio, limpeza, cuidados
sanitários, educação, interacção, inserção social, excursão e respeito pela sua
individualidade, enquanto espécie diferente que não dispensa o bem-estar,
cuidados que reclamam a necessária disponibilidade física, intelectual, emocional,
económica e temporal dos seus donos, porquanto se instituíram voluntariamente como
seus líderes, protectores e mestres, tornando-os assim parte integrante do seu
grupo familiar, responsabilidades que apontam também e por inerência para a
coabitação harmoniosa destes animais na sociedade.
Mesmo tendo todas
estas condições, se não houver unanimidade familiar quanto à aquisição do animal,
é melhor desistir da tal ideia, porque mais cedo ou mais tarde estará a braços
com um problema de difícil solução, provavelmente a lamentar a sua opção
individual e a vociferar “cão de um raio que o parta” (nestas circunstâncias o
futuro do animal não se avizinha risonho!). Escrevemos este artigo para obrigar
os futuros proprietários caninos a reflectirem sobre as suas decisões, também
para lembrar os que já o são dos seus deveres, assim como alertar para a
necessidade do bem-estar canino e de alguma forma combater o abandono destes
nossos fiéis amigos, que queremos ver como raios de sol nas nossa vidas e nunca
fulminados por um raio de estrondosa ignorância, já que o “cão do raio que o
parta” sempre é propriedade de quem não faz contas à vida por pensar que tudo é
descartável. Quer um cão? Agora já sabe aquilo que o espera!
Porque apreciamos
cães, temos conhecimento do seu valor e estamos-lhes gratos, voltaremos a este
assunto até que todos eles sejam tratados condignamente (algo nos diz que
lamentavelmente iremos repetir-nos muitas vezes). Se a luz deste artigo tem
todas as condições para adquirir ou adoptar um cão, porque raio não o faz? Há
muitos à espera e estão loucos por fazê-lo feliz!
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