sexta-feira, 13 de maio de 2011

CÃES: O QUE FAZER COM ELES

Desde o final do Sec. XIX até aos nossos dias, os homens têm adestrado e aproveitado os cães para os mais variados serviços, servindo-se deles para colmatar dificuldades e alcançar outros tantos benefícios, O cão de trabalho, tal qual o conhecemos hoje, parente próximo dos cães de pastoreio, caça, arena e circo de outrora, começou a germinar nos alvores do Sec. XX, altura em que se assiste ao nascimento mais afincado dos cães ditos especialistas a quem o uso militar não foi alheio, facto comprovado pela participação canina nas duas Grandes Guerras, onde o cão de caça vira sapador, o molosso carregador e o pastor cão de patrulha. A perca progressiva de atribuições militares, intrinsecamente ligada à alteração do modo de guerrear e também a uma maior sensibilização relativa aos direitos dos animais, porque muitos abusos aconteceram, acabou por desmobilizar o cão familiar e transformá-lo em polícia. Posteriormente irá acontecer o boom das classes de trabalho e a proliferação dos centros de treino, uns vocacionados para uma raça específica e outros endereçados a todos os cães, germinados pelo stress pós-traumático de alguns e pelos sonhos incontidos de outros, porque o sonho comanda a vida, continuamos com pesadelos e ainda não nos libertámos da predação.

Sabemos quem disse, pela primeira vez e sem equívocos, que os cães nasceram para trabalhar e que nisso deveriam permanecer, mas será que no início do século passado já se falava de especicismo e se tinha em conta a globalidade dos abusos que iriam ser praticados sobre os cães? Que se saiba, Stephanitz era militar, não um bruxo ou vidente, até porque a maioria dos Cães de Pastor Alemão já há muito que se encontra arredada dos centros de treino, o que nos leva a entender essas palavras como um desejo ou aviso por parte do extinto oficial de cavalaria alemão, cativo à sua época, produto da erudição de então e fruto da experiência que teve. Como se compreende, os cães não nasceram para trabalhar, resultando o seu trabalho da liderança humana e da perca de autonomia que os condenou à dependência. Assim sendo, uma pergunta se levanta: o que fazer com eles?
Não há dúvida que os cães que “trabalham” são mais saudáveis do que aqueles que se encontram sistematicamente enjaulados ou desprezados, que a prática desportiva contribui para o seu bem-estar e longevidade, que a relação binomial é uma resposta positiva para o seu viver social e que o seu sentimento gregário se robustece pela companhia. Mas não sejamos hipócritas, a nossa relação com os cães não é desinteressada, porque mais cedo ao mais tarde todos chegaremos à mesma conclusão, ainda que não o confessemos publicamente: temos cães porque esperamos deles o seu fim terapêutico, porque nos fazem sentir bem e porque com eles recriamos o nosso mundo, tantas vezes distante do que temos e daquele que desejávamos. Não será pura ingratidão instarmos com eles em determinados movimentos ou figuras, sujeitá-los ao nosso gozo e recompensá-los somente segundo as vitórias que nos oferecem? Mas afinal, deveremos ou não treinar cães? Treiná-los somente para nos valerem ou saciarem as incapacidades de outros? Olhando para trás e diante da correria do tempo, onde a sabedoria humana tarda em chegar e tem curta duração, à imitação de muitos prestigiados cinólogos no epílogo das suas vidas, também nós levantamos estas questões, considerando o sucesso relativo, o número dos insucessos e a cegueira das ambições, actos distantes das aspirações naturais daqueles que se deixam conduzir pela trela.
No nosso singelo entender, certamente limitado pela pouca erudição, a centralidade do treino deverá recair sobre os benefícios pró cão e não sobre a sua reciprocidade ou serviço, coisa que geralmente não tarda por força da permuta entre o empenho e a satisfação. Para que isso aconteça e por mais estranho que nos pareça, é crucial educar e capacitar os donos nesse propósito, porque o aforismo “quem tem medo, compra um cão” é aqui impróprio como prática e lição de vida. O objectivo central do adestramento deverá ser a salvaguarda dos cães e todas as suas metas alcançadas a partir disso. Tanto a absorção do conceito como a sua prática subsequente são tarefas árduas, porque obrigam à alteração de hábitos, estabelecem novas rotinas, obrigam a maior disponibilidade e podem alterar o modo de vida e a filosofia reinante nas pessoas até ali. A isso obriga a comunicação interespécies e o compromisso que assumimos diante os animais, tantas vezes esquecido face a outras obrigações. Cada cão deverá ser treinado de acordo com o ecossistema onde se encontra inserido e o treino deverá considerar o particular da sua sobrevivência, contribuir para o seu bem-estar e potenciar os requisitos inerentes à sua boa instalação, facilitar o seu maneio e possibilitar a coabitação harmoniosa na sociedade. O resto, como tantas vezes já vimos, não tardará e virá por acréscimo, caso isso nos interesse.

E respeitando o objectivo central que adiantámos, incluímos como seus subsídios uma boa instalação doméstica, o acompanhamento dos ciclos infantis, o passeio e higiene diários, a prática sistemática da ginástica, o concurso à obediência, o estabelecimento da liderança, o aproveitamento e potenciação da máquina sensorial canina, o uso da recompensa, a novidade de desafios, a sociabilização, a recusa de engodos, a identificação de perigos e inimigos, a aquisição de hábitos de higiene e tantas outras coisas indispensáveis à sobrevivência dos animais, como são também as visitas regulares ao veterinário e uma alimentação adequada. Tudo isto tende a aumentar a cumplicidade binomial e sem ela dificilmente chegaremos à constituição de uma verdadeira equipa e a um entendimento satisfatório e ambivalente. Treinar o cão para sobreviver é ajudar o dono a consegui-lo, porque o adestramento nos nossos moldes tem dois destinatários: o dono e cão. Sabendo quem tem necessidade de se fazer entender, de imediato compreendemos quem necessitará de maior instrução e quem será alvo de melhor aprimoramento, de constante correcção e preparação. É evidente que tudo será facilitado pela relação havida (óptima) entre tratamento e treino. Estamos cá para fazer os cães felizes.

(PS. Deliberadamente este texto não obedeceu às novas regras do recente acordo ortográfico, porque respeitamos a etimologia, a gramática e sintaxe latinas, bem patrimonial que não queremos descuidar e que subsidia a melhor absorção e compreensão das restantes línguas europeias, contra o parecer de outros mais doutos do que nós, exuberantes nos cargos e bem vestidos de fatos, fatos que não podemos ignorar)

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