terça-feira, 29 de março de 2011

AS DESVENTURAS DO MASCARILHA

O Mascarilha é um cão jovem, activo, valente, amigo do seu dono e cioso das suas coisas, daqueles que, quando não o tem, logo de imediato inventa serviço. Actualmente escavaca o carro do dono quando de relance avista cães na rua, tenta agredir aqueles que com ele se cruzam e carrega sobre qualquer um que o tema ou que se aproxime do seu dono. Estas características individuais, advindas de fortes impulsos ao movimento, à defesa, à luta e ao poder, quando bem aproveitadas, transformadas e rentabilizadas, fariam as delícias de qualquer treinador profissional, já que estamos na presença de um guardião inato. Apesar de continuamente repreendido e refreado, o Mascarilha não apresenta melhoras e as suas inusitadas arremetidas, porque age por modo próprio, mais se agravam e tardam em desaparecer. O dono já se vê predestinado para o problema, prepara-se para o carrego dessa cruz e vai-se conformando, tal qual impotente diante daquilo que o ultrapassa. Mas antes que aceite o vaticínio e porque a mudança é possível, importa destrinçar o problema e encontrar-lhe solução. Será o cão irascível, somente uma fera que se deixa acariciar e que pernoita ao nosso lado? Porque carrega sobre os cães e descarrega nos homens? Será ele a encarnação da fábula do “lobo mau”? Será o problema exclusivamente hereditário ou algo terá contribuído para os esses ímpetos? É por demais evidente que o problema nos remete para a ausência de uma sociabilização eficaz e autêntica, desenvolvida de acordo com as dificuldades encontradas e de modo persistente, a operar a partir dos cães que constituem o grupo escolar e deles evoluir para os que com ele se cruzam no perímetro doméstico ou na via pública. Apesar da familiarização anteceder e contribuir substancialmente para a sociabilização, a maior ou menor resistência à sua assimilação passa pelo particular dos indivíduos e pelo tipo de liderança que aceitam ou rejeitam. A carga genética e a experiência directa de cada cão poderão facilitar ou dificultar essa investidura, afinal tão necessária e imprescindível para a coabitação harmoniosa dos cães na sociedade. O isolamento forçado dos cães fortalece-lhes de sobremaneira o sentimento territorial, assim como a exiguidade do seu território e a excursão sistemática nos mesmos trajectos. A constituição binomial quando descuidada, deficitária e repartida no que concerne à liderança, tende a suscitar nos cães arremetidas não solicitadas e de consequências inesperadas. O Mascarilha passa a maior parte dos seus dias dentro de casa e aguarda ansiosamente as idas à rua, momentos que acontecem pela manhã e à noitinha, nos percursos usuais que o condomínio oferece e que por vezes são assolados por cães vadios, vindos não se sabe donde. Como esses intrusos já tentaram agredir pessoas e outros cães, o Mascarilha tem-lhes um ódio de morte, tendencialmente julga o todo pela parte e tenta carregar sobre todo e qualquer cão. Mercê do trabalho desenvolvido, o Mascarilha confraterniza hoje sem dificuldades com os cães escolares, brinca com eles e já elegeu alguns companheiros para a paródia. Contudo, continua a abominar os cães vadios ao redor da sua casa. Diante do problema que retarda a solução, para além do inevitável reforço da liderança, das duas uma: ou se muda a excursão diária ou procede-se à captura dos cães abandonados, prole sem qualquer tipo de condicionamento e que apenas luta pela sobrevivência. Como a captura dos cães tem-se revelado infrutífera por força da permeabilidade e extensão do condomínio fechado, densamente arborizado e profícuo em refúgios naturais e artificiais de vária ordem, a solução mais viável é optar por percursos no exterior, servindo eles como preparação para os internos e para os problemas que eles acarretam. De qualquer modo o trabalho escolar deve continuar e as sessões de treino deverão ver o seu número aumentadas, para que o princípio da sobrecarga opere e a codificação do Mascarilha aconteça. A surpresa que antecede ou actua diante do flagrante delito é o melhor dos antídotos para o controle ou supressão das acções instintivas caninas, porque mercê da memória afectiva, que reforça a experiência directa, os cães sabem com o que podem contar, já que ela transforma-se em lições de vida. De nada vale ao condutor do Mascarilha, quando ao volante e com o cão atrelado na bagageira do carro, tentar-lhe inibir os arrufos contra os cães que passeiam na rua, porque o cão já experimentou a sua invalidade e continuará a proceder como sempre procedeu, invalidando dessa forma a própria inibição. Sempre que possível, e nem sempre é, deve o dono do cão parar o carro e de imediato proceder à sua repreensão, para que o cão se aperceba da omnipresença do seu condutor e cesse essas acções indesejáveis. Mas como isso é na maioria das vezes impossível, convém que o dono pare o seu carro junto a áreas densamente povoadas por cães, saltando do seu banco quantas vezes isso se tornar necessário afim de inibir o cão. Quando a resposta à inibição for positiva e o Mascarilha deixar de se importunar com os cães que passam, é altura de o recompensar vivamente, porque a investidura foi alcançada e os cães sempre necessitam de prémio. O prémio é quem melhor garante e dá continuidade as respostas artificiais caninas fornecidas pelo treino, o que a ninguém espanta face ao sentimento gregário e viver social que impera sobre os cães. Talvez o Mascarilha sofra também de um problema de “troca de alvos” e invente serviço. Porém, nenhum serviço pode dispensar a sociabilização atendendo à operacionalidade procurada. Cães sérios não podem ser trabalhados em part-time ou quando nos dá a gana, exigem trabalho, preparação e recompensa, necessitam de ser entendidos e não dispensam a cumplicidade que melhor garante o objectivo comum.

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