quinta-feira, 26 de maio de 2011

AVERSÃO, INDIFERENÇA, SIMPATIA, GOZO, NECESSIDADE, DEDICAÇÃO E ADORAÇÃO

Desnudaremos os 7 sentimentos que constituem o título e que correspondem às posturas mais comuns relativas aos cães, através da resposta e análise às seguintes questões: Como vêem os cães, que conselhos dão aos filhos, como procedem diante das dificuldades, o que pensam do adestramento e o que normalmente fazem com os animais. A identificação do sentimento que levou à aquisição do cão é tarefa obrigatória para todo e qualquer adestrador, porque desnuda de alguma forma o seu proprietário, as suas expectativas e o seu modus operandi, clarificando assim o tipo de abordagem a fazer, o método de trabalho a seguir e as ênfases a dar, no sentido de alterar, caso se justifique, a postura do dono, considerando a salvaguarda do animal e o interesse do seu proprietário pelo processo pedagógico. Se não existir qualquer tipo de afinidade ou simpatia entre os proprietários caninos e o adestrador, é quase impossível que a relação entre ambos seja profícua e as observações do técnico venham a ser seguidas. A relação entre o Adestrador e os condutores carece de ser empática, porque é baseada na confiança que leva à aprendizagem. Sem esta condição, o mais erudito dos adestradores poderá ficar a dissertar para as moscas, invalidando assim todo seu potencial e mais-valia. Sim, só conseguiremos educar cães se os donos nos acompanharem, de outro modo dificilmente nos confiarão os animais. Em síntese, conquista-se o dono para alcançar o cão. As pessoas que têm aversão a cães não perdem tempo com eles, naturalmente “querem é distância” e tendem a trocar de passeio quando connosco se cruzam. O sentimento poderá ser de origem cultural ou resultar dum trauma. Existem zonas no país onde as pessoas abominam os cães, porque os consideram um fardo ou por que os associam à miséria. A primeira consideração remete-nos para um histórico relativo à economia de sobrevivência e a segunda à nossa herança cultural judaico-cristã, onde o cão quase sempre aparece associado ao descalabro e ao castigo. Os traumas relativos aos cães, geralmente ocorridos durante a infância ou na puberdade dos indivíduos, apesar de serem ultrapassáveis, justificam a aversão de muitos, porque são feridas abertas que levam à alteração de comportamento, invariavelmente ligadas a ataques inusitados perpetrados por um ou mais cães. Independentemente das causas que levam à aversão dos indivíduos, eles vêem os cães como um perigo e transmitem o mesmo sentimento para os filhos, exaltando os prejuízos em detrimento das vantagens, proibido-lhes inclusive a posse de qualquer cão, pelo menos enquanto estiverem debaixo da sua alçada. Aqui reside um dos motivos que leva alguns à aquisição de cães somente na idade adulta. Muitos dos tolhidos pela aversão comportam-se de modo irascível, não escondem o seu asco, manifestam o seu desagrado e chegam a ser provocadores. Um pequeno número deles não hesitará em envenenar os cães alheios à sua volta ou a eliminá-los por outro meio igualmente cobarde, o que torna obrigatórias tanto a prevenção quanto a recusa de engodos no adestramento. Dependendo do perfil psicológico dos indivíduos, do seu índice de malícia e da projecção do seu engenho, sempre haverão uns que nunca nos dirigirão qualquer palavra ou cumprimento e outros que tentarão acercar-se de nós para alcançarem os seus nefastos intentos. Há que estar atento!
Aqueles que manifestam total indiferença pelos cães, desde que estes não os aborreçam, são um dos grupos maioritários presente na sociedade, sendo geralmente gente metropolitana apegada a outros interesses e valores, para quem os cães são puro folclore e resquício de uma cultura que teima em se ir embora (ultrapassada). Dentro do grupo dos indiferentes também encontramos gente oriunda do interior, indivíduos que abraçaram o viver urbano e que intentam a cada passo esquecer-se das suas origens. Tanto uns como outros, dificilmente ofertarão um cão aos filhos, porque não vêem nisso algum proveito, a menos que alguém lhes prove o contrário. Tendencialmente cativam-nos para outros interesses e ridicularizam os proprietários caninos. Também não hesitarão, perante a insistência dos filhos, em enfatizar os prejuízos e disparates atribuídos aos cães, presentes nos noticiários e merecedores de especial enfoque. Eventualmente terão cães se alcançarem uma quinta ou moradia e se os bichos lhe causarem algum incómodo, tanto poderão optar por os mandar ensinar, doar ou mandá-los abater. Se houver lugar ao adestramento do animal, ele surgirá exclusivamente por necessidade e nunca por apego ao cão ou àquilo que lhe é devido, porque vêem o treino como uma tarefa. Apesar desta gente procurar a coabitação harmoniosa do cão no lar e na sociedade, não se estafará muito para a alcançar. Perante a demora e as exigências no ensino não hesitarão em lançar o cão no olho da rua ou a enviá-lo para o espaço. Num casal, quando um dos cônjuges pertence à categoria dos indiferentes, o futuro do cão encontra-se comprometido, o seu viver social abalado e poderá vir a ser despachado, porque as dificuldades do indiferente levá-lo-ão a queixas intermináveis e insuportáveis. Quando dois indiferentes adquirem um cão (o caso apesar de sórdido não é raro e acontece por múltiplas razões), duas coisas podem acontecer: ou o cão é um anjo ou vai fazer as suas diabruras para o quinto dos infernos. Faz todo o sentido quando dizemos que o cão é projecto familiar. Ensinar os cães dos indiferentes é um acto que reclama por celeridade, porque doutro modo estaremos também nós a atentar contra a salvaguarda dos animais. A indiferença dos donos é muitas vezes responsável pela paixão que os cães nutrem pelos adestradores.
Não são poucos os que denotam especial simpatia pelos cães. Este sentimento pode provir duma feliz experiência anterior, de um sonho de infância ou de um apego inexplicável e incontido. Será do grupo dos simpáticos que sairá um pequeno número de pessoas que se dedicará a actividades em prol dos cães (recolha, adopção e sustento dos animais abandonados). Esta sensibilidade poderá constituir-se numa necessidade, revestir-se de especial dedicação e atingir a adoração, caminho geralmente sem regresso e que acabará por escravizar os indivíduos seus portadores e estender-se àqueles que aceitarem o seu desafio. Como o seu número é reduzido, a maioria das pessoas que simpatizam com os cães fazem-no porque os não têm e gostariam de os ter. Essa carência de reciprocidade, intimamente ligada à ausência de condições de vária ordem, irá levá-los à procura do contacto com os cães alheios, tratando-os como se fossem seus e não raramente à revelia dos donos, o que é um abuso insofismável, desafortunadamente enraizado entre nós. O simpático acaricia sem avisar, distrai os cães dos outros, tenta cativá-los, dá-lhes de comer e incentiva-os para outros desafios ou brincadeiras, muitas vezes inoportunas face à sobrevivência dos animais e ao cumprimento das ordens anteriormente manifesto, factos que ele ignora pelo sufoco apelativo. Quando não é bem sucedido e os cães reagem de modo inesperado, quer rejeitando a carícia quer advertindo para o abuso, bem depressa cai o vitupério e os seus proprietários, sem maior dificuldade, alcançam o nome de besta. Os simpáticos, talvez por serem apenas simpáticos, não estão para suportar os incómodos que os cães causam, servindo-se apenas dos alheios para a satisfação das suas necessidades, numa clara alusão a um amor quanto baste. Os seus filhos espelharão a mesma educação e todos verão o adestramento como desnecessário, provavelmente porque nada mais esperam dos cães e ignoram os perigos que os rodeiam – Deus nos salve dos bajuladores! Quando finalmente um simpático arranja um cão e se apresenta no treino, é porque encontrou problemas para além da sua capacidade de resolução. A situação exige tacto, porque a natureza dos problemas, só por si, não vai alterar tanto a essência quanto o comportamento do indivíduo. De que padecerá o cão do simpático? Provavelmente de abuso de autoridade, porque quem não consegue refrear-se, dificilmente saberá dar o exemplo, dizer não e abraçar a disciplina. Deseja-se que a sintonia com os restantes alunos escolares corra em nosso auxílio.
Existem alguns indivíduos que têm cães somente pelo gozo de os ter, gente que com alguma dificuldade se compromete com os animais. Para eles, na maioria novos-ricos à procura de melhor aceitação, os cães devem ser como as vacas: gordos e reluzentes. Contudo, eles não são perigosos para os seus semelhantes, porque querem os cães para reafirmar o seu status e não para causar dolo a ninguém, servindo-se deles como recepcionistas ou cartão de visita. Na procura da satisfação pessoal, outros há quem pensam e agem de modo diverso, dando azo a sentimentos recalcados ou desviados presentes na sua natureza predadora, que deliberadamente se servem dos cães para dar caça aos seus fantasmas sem outra justificação, porque entendem que a intimidação é o melhor dos caminhos para o poder. O primeiro grupo raramente nos procurará, a não ser que queira causar boa impressão e o segundo exigir-nos-á que ponhamos os cães a morder sobre tudo o que mexe, desejo que infelizmente não realizaremos. Porém, sem muito esforço, logo encontrarão que lhes satisfaça as ambições. Por detrás de sãos princípios doutrinários e a coberto de uma pretensa preocupação com os cães, sobrevivem no mundo da canicultura e do adestramento indivíduos que apenas se servem dos animais para atingirem os seus propósitos, porque o título de campeão é apetecível e também porque lhes dá “pica” (gozo), o que aponta claramente para o fim terapêutico canino e para os benefícios que a serotonina oferece. Entre os gozadores, na eventualidade de algum desarranjo ou contrariedade provocada pelo cão, bem depressa o desinteresse substituirá o gozo e animal acabará substituído, tal qual um carro velho ou outro tareco lá de casa. A capacitação de um hedonista, porque importa evitar o desprezo do cão, deve acontecer inicialmente pela exaltação das suas pequenas vitórias no treino e não dar lugar à denúncia ou à confrontação. É importante não esquecer que esta gente tem cães para aumentar a sua auto-estima e forçar a sua aceitação, pelo que importa tratá-la com a maior deferência possível. Os seus filhos dir-nos-ão amanhã: “ Eu fui criado no meio de cães, na casa dos pais sempre havia alguns, não sou propriamente um ignorante nesta matéria”.
Ter cães é uma necessidade para muita gente, algumas instituições não podem prescindir deles e outras ainda não entenderam a sua importância. A necessidade dos cães, intimamente ligada à natureza biológica e social dos indivíduos, prende-se com aspectos ligados ao seu equilíbrio emocional e bem-estar (terapia), ao aumento da autonomia de alguns (deficientes de vária ordem) à possibilidade de novos proventos e também ao retorno idílico à vida simples, campestre e mais saudável (contacto com a natureza). Não abordaremos o segmento dos cães para deficientes, porque disso falarão, com mais propriedade e conhecimento, os profissionais formados para esse efeito. Remeter-nos-emos em exclusivo à necessidade do cidadão comum, que ao contrário do que muita gente pensa, não é desprezível e tem-se revelado de extrema importância para o bem-estar dos indivíduos, suprimindo-lhes carências de vária ordem, relacionadas com o alcance do seu equilíbrio psicológico e com o combate à solidão e ao ostracismo, subsídios objectivos para a sua reintegração social. Todos sabemos do aproveitamento político do desporto e em Portugal um jogo de futebol pode até encurtar uma sessão no Parlamento. O quadro pode parecer-nos rocambolesco, mas as vitórias de um clube de futebol ou da nossa selecção podem alimentar a esperança ou desanuviar aqueles que mais sentem a crise, dando-lhes alento para suportar as dificuldades. Com os cães passa-se exactamente o mesmo, porque não nos abandonam, são nossos confidentes, aceitam-nos tal qual somos, fazem-nos sentir úteis, ajudam na construção do nosso pequeno mundo, são muito afectuosos, fazem da reciprocidade prática corrente, e por aí adiante. Diante deste cenário, não é difícil compreender a possível dialéctica antropomórfica de alguns, que reclamam para os seus cães características e qualidades quase humanas. O discurso não é livre porque em muitos casos a opção foi forçada. Quem tem acompanhado grande número de idosos e solitários? Feito as delícias das crianças e substituindo aquelas que já partiram? Ajudado os jovens a crescer e aliviado as dores de tantos? Quem está sempre ao nosso lado e tem acalentado muitos dos nossos sonhos? Tudo isto revela uma necessidade objectiva dos cães, quer eles surjam por complemento, substituição ou se tornem imprescindíveis. A plebe que precisa deles, como já atrás se disse, tende a tratá-los como iguais, o que nos obrigará a cuidados excepcionais no adestramento desses”cães-homens”, porque para os seus donos eles não são cães, cães são os dos outros! Sempre nos pedirão maior deferência, rara sensibilidade e não se acanharão em manifestar-se. Com certeza iremos ouvir histórias fantásticas, algumas semelhantes às ouvidas entre pescadores e caçadores ou outras relativas a dons paranormais (que eles juram estar presentes nos seus companheiros). Será deste grupo de carentes que sairá o grosso dos indivíduos para os lares de acolhimento e outras actividades relativas ao resgate dos cães abandonados. O indivíduo que não dispensa a companhia do seu cão, depois de confiar em nós, pode tornar-se num aluno modelo, porque através da cumplicidade manifesta poderá chegar à excelência binomial, opção mais equilibrada e que o levará a considerar objectivamente o particular biológico do seu cão. Também nós somos visionários e estamos cá para massificar os sonhos de muitos, porque ensinamos para alcançar a excelente comunicação interespécies e continuamos a acreditar que muitos lá chegarão.
A dedicação aos cães pode não provir duma necessidade ou ser resultado duma carência, porque muita gente abraça o ofício sem dar por isso e acaba por gostar da experiência, como se o tempo aguardasse pela circunstância. O que caracteriza a dedicação é a transformação das velhas rotinas em novos procedimentos, o gozo de descobrir e querer mais, a aposta no caminhar com o cão ao lado e procurar a sua coabitação sem contudo desrespeitar a sua natureza. A dedicação aumenta e depura-se com a experiência, obriga a adaptação de ambos e pode alcançar a comunicação telepática, benefícios que o treino canino oferece e pode despertar. Proliferam por aí ideias ou noções erradas acerca do adestramento, caricaturas que em nada se identificam com esta arte e que apenas servem para relembrar o passado, ilustrar certos propósitos ou ironizar quem os segue. O treino do cão de guerra já lá vai, o de polícia vai a caminho, o de guarda tira o bilhete e o de circo já embarcou. Sobra o cão familiar, e às suas custas o adestramento evoluiu para patamares nunca vistos, ganhou criatividade e descobriu outras disciplinas, devolveu os cães aos donos, generalizou-se por todo lado e constitui-se como parte integrante da cultura popular, saiu do troar dos tacões e abraçou a salvaguarda dos animais, tornando o treino canino numa manifestação incontestável de dedicação, graças à relação óptima entre tratamento e adestramento. Só a dedicação alcança o treino e o entende como uma tarefa prioritária, procura o discipulado e busca a simbiose. A transcendência operativa do adestramento reside no amor, na capacidade de cada condutor alcançar uma paternidade extraordinária e incomum, mercê da comunhão de objectivos que o une ao seu cão, não sendo por isso de estranhar que os bons pais venham a ser igualmente bons condutores. Quando essa dedicação se torna cultural, não é difícil compreender como 2 ou 3 gerações da mesma família se filie na mesma escola. Os portadores deste sentimento não esperam que os seus cães façam, ensinam-nos a fazer, são tolerantes e esperam pelas adaptações dos seus companheiros, sujeitam-se ao auto-exame antes de os repreender, são fortes no incentivo, constantes nas acções e dedicados ao aprimoramento. Só a dedicação poderá compreender que o ensino é um acto continuado, sujeito à novidade de desafios e carente de novas soluções. Todos os alunos escolares procedem assim? Não! Mas a Escola existe para os educar, amparar e transformar, e é essa a verdadeira causa da sua existência, já que os cães não aprendem sozinhos e necessitam de sobreviver.
Os cinófobos abominam os cães, os indiferentes dão-lhes pouca ou nenhuma importância, os simpáticos brincam com eles, os gozadores possuem-nos sem os compreender, os que necessitam deles usam-nos e saciam as suas faltas, os dedicados amam-nos, e o que farão os seus adoradores? Adorá-los-ão simplesmente! Como complemento e seguindo mesmo raciocínio, os cinófobos nem os querem ver, os indiferentes querem distância deles, os simpáticos buscam a sua proximidade, os gozadores querem-nos no sítio certo, os necessitados onde fazem falta, os dedicados trabalham para que permaneçam a seu lado e os adoradores arranjar-lhes-ão prerrogativas divinas e andarão de acordo com os seus amuos. E que mensagem transmitirão aos seus filhos? Os cinófobos transmitir-lhes-ão os mesmos medos, os indiferentes tentarão afastá-los dos cães, os simpáticos formarão bajuladores, os gozadores serão gozados pelos filhos, os necessitados isentá-los-ão de maior contacto com os animais, os dedicados tentarão transmitir-lhes igual sentimento e os adoradores, para mal dos seus pecados, raramente têm filhos. Diante de algum contratempo provocado pelos seus cães, os indiferentes livrar-se-ão deles, os simpáticos procurarão ajuda, os gozadores substitui-los-ão, os necessitados levá-los-ão para afinação, os dedicados buscarão solução e os adoradores conformar-se-ão com a sua sorte. Todos eles compreendem ou irão compreender o adestramento de maneira diferente. Para o cinófobo a cinotecnia é uma prática de tolinhos e uma manifestação de maldade, o indiferente vê-lo-á como desperdício de tempo e de dinheiro, o simpático não vislumbrará imediatamente da sua necessidade, o gozador raramente estará para aí virado, o necessitado cumprirá com os protocolos de ensino, o dedicado não o dispensará e o adorador desprezá-lo-á. Afinal, fazemos com os cães o mesmo que fazemos com tantas outras coisas, tudo resulta do nosso maior ou menor interesse e não tanto dos talentos individuais.
Queremos dedicar o último parágrafo deste texto aos adoradores de cães, figuras ímpares no panorama da canicultura, mas nem por isso muito vistos (diremos nós: Graças a Deus!). A figura do adorador de cães lembra uma papoila isolada no meio de um campo de trigo, porque se destaca dos restantes e evita ter com eles qualquer contacto, tal qual crente de seita secreta e proibida. É geralmente uma pessoa alheada, que se alheou ou que se viu forçada a isso, tendo apenas como alternativa viável a companhia de um ou mais cães. Quando é rico é tratado como extravagante e quando é pobre como lunático. Existem indivíduos destes em todos os extractos sociais, muito embora sejam melhor ou pior atendidos de acordo com a sua importância ou poder económico. Sem quase nenhuma dificuldade, o adorador de cães irá transformar-se no martírio dos veterinários e no suplício dos adestradores, porque os primeiros não terão como tratar as doenças do dono e não escaparão as arremetidas do bicho – um Deus que não quer ser importunado. Quando um adorador chega a uma escola ou centro de treino canino, ele vai coagido e para cumprir calendário, geralmente a rogo do veterinário assistente, que farto de aturar ambos, passa a “batata quente” (infelizmente temos nisto bastante experiência). É evidente que nunca alcançarão a constituição binomial, porque ela exige o domínio do inteligente sobre o irracional e ali os termos da fracção são manifestamente inversos. Na melhor das hipóteses, o adorador compreenderá o treino como um recreio ou uma ida a um jardim-escola (kindergarten), e aproveitará a ocasião para apresentar o seu príncipe alado aos outros meninos (muito educados mas manifestamente inferiores ao “Sol” da mamã). Dificilmente aceitará ali algum reparo ou sugestão, porque nos julga imbecis e impróprios, algo semelhantes a sapateiros de pouco préstimo, já que só ele compreende as necessidades, as aspirações e os humores do seu deus de quatro patas. Como quase tudo nos cães resulta da investidura e disso não querem ser destronados, nomeadamente das mordomias, o cão do adorador resistirá ao ensino e será dominado por um sentimento de revolta, pelo menos na presença do dono, que tudo agrava e compromete, o que nos obrigará à educação do animal na ausência do seu subordinado (a estratégia tem-se revelado eficaz e engordado os bolsos de muitos). A subordinação do dono (assumida, consentida e irreversível), que é muitas vezes usada como meio de provocação e prepotência, obstará à liderança que tudo poderia transformar. Ainda que a educação do cão seja possível, a recuperação do dono é algo que nos escapa. Caberá essa responsabilidade a outros, isto se vierem a ser consultados, porque o adorador acha-se certo e não reclamará por qualquer apoio. Neste caso, como em muitos outros, os problemas presentes nos cães encontram razão no descalabro presente na cabeça dos seus proprietários. Abordámos os sentimentos mais comuns relativos aos cães para que cada um se examine, compreenda como os trata e aquilo que lhes causa. Em simultâneo, avançámos alguns subsídios para aqueles que têm como ofício ensinar cães e que acabarão confrontados com as pessoas que lhes chegam.

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