quinta-feira, 17 de março de 2011

A SUCESSÃO

Passar o testemunho nunca foi fácil e encontrar seguidor muito menos, porque se resiste à partida e nem sempre se encontra a pessoa ideal. Nas sucessões a transmissão nunca é absoluta porque as habilidades e tendências diferem individualmente, há sempre algo que se perde e procuram-se mais-valias. O rendido procura o seu reflexo e o que rende novidade ou autonomia, já que a percepção das coisas é diferente: um é dominado por um sentimento de perca e o outro espreita a oportunidade. E nisto não diferimos muito dos cães, porque a vida é feita de mudança e a história diz-nos isso mesmo: “rei morto, rei posto!” Quando a sucessão é meramente hierárquica e feita para além da capacidade dos indivíduos, ela torna-se mais fácil mas não garante a qualidade nem a continuidade da obra. A sucessão menos arriscada é aquela que resulta do discipulado, a que se sustentou no trajecto comum, comungou dos mesmos objectivos, que dividiu as dificuldades e sentiu as mesmas vitórias, porque lado a lado se constrói e nisto também se compreende o “junto” como pedra basilar da obediência. Emerge a hora da sucessão na Acendura, quem será o escolhido?
Ao longo da nossa existência foram muitos os que intentaram suceder-nos, havendo alguns que inclusive nos usurparam e tornaram seu aquilo que nunca lhe demos, plagiando livros, sustentando falsas indigitações, adiantando conteúdos de ensino que nunca professámos ou métodos que jamais usámos. O rol é extenso e a nenhum destes indivíduos estendemos a nossa mão e constituímos como nossos seguidores, porque viemos para servir e nunca nos seduzimos pelo caminho mais fácil, antes somos devedores de todos os que connosco se cruzaram e cruzam. Sempre combatemos os oportunistas e toda a casta de “chico-espertos”, gente que repetidamente sacudimos dos nossos calcanhares, pela clareza das suas intenções e ausência de sério fundamento, porque nem sempre querer é poder, há um abismo entre o desejo e a sua construção, alguma dificuldade entre o conceito e a sua aplicação. O verdadeiro candidato é aquele que estende a sua mão em ajuda e não aquele que nos amarra as mãos, o que suaviza as nossas dificuldades e nos ampara no caminho. Não obstante, há muita gente no mundo do adestramento da qual nos orgulhamos, indivíduos que connosco caminharam e foram adiante, que procuraram outros trilhos e rumos e alcançando sucesso. Como não somos obra acabada, necessitamos de quem a leve adiante, que pegue naquilo que recebeu e frutifique. Felizmente ainda temos nas nossas fileiras indivíduos destes e deles sairão os nossos sucessores, companheiros cujos talentos resultam da humildade e do gosto de bem servir, homens e mulheres que almejam a fraternidade e que fazem da paridade um meio para a alcançar, porque quem despreza os homens como alcançará os cães?
Os cães são o nosso serviço, a eles dedicamos as nossas vidas, eles não são uma meta mas sim um objectivo, não nos servem de bengala ou pretexto, meio para outros fins ou oportunidade para outros desejos, porque merecem ser amados, respeitados e entendidos segundo a sua natureza, propósitos muito para além do nosso bem-estar, riqueza ou galarim. Ao adestramento sempre chegam candidatos com pouco para dar na esperança de muito receberem, tal qual emigrante em terra fronteiriça à espera de embarcar, oportunistas e aventureiros de substratos sociais diversos que espreitam um lugar ao sol. Nenhum curso só por si altera a essência humana, o polimento apenas serve para ocultar prós demais aquilo que natureza do indivíduo encerra, a sua pequenez ou grandeza que o contacto com os cães cedo acabará por denunciar. O ensino de cães exige autenticidade, uma predisposição genética que evolui no contacto com estes animais, que vai adiante e se realiza na comunicação interespécies, transformando a paixão em militância e o trabalho em agradecimento. Enganam-se aqueles que julgam o adestramento um “el dorado”, porque os pobres bichos não são produto de primeira necessidade e com facilidade se descartam os homens deles, infelizmente. O gozo no adestramento reside no fazer-se compreender e ser correspondido, porque de uma relação amorosa se trata que visa a salvaguarda dos animais que nos são confiados, exactamente aqueles que ensinamos a rogo de outrem.
Adoptámos o nome acendura a partir do verbo latino acendrar, que significa limpar com cinza, afinar, lapidar, apurar e purificar, o que acaba por denunciar a nossa praxis e selecção, o convite que estendemos a todos os proprietários de cães para que melhor os entendam, para que se constituam em binómios, melhor usufruam disso e mais se preocupem com o bem-estar canino. Suceder-nos é continuar nesta mesma senda, é ser incómodo e ser incomodado para valer aos demais. Adestrar exige rara renúncia e transfiguração, um certo desnudo para que a mensagem seja perceptível, bem recebida e assimilada, condições longínquas para aqueles que resistem à transformação e persistem no hedonismo. Aquele que ama os cães, apesar de padrasto, tenta ser pai e aqueles que não o intentam só farão sofrer os animais, ainda que sejam objecto de honrarias e alvo dos mais variados pasquins. O adestrador nasce para os cães e purifica-se no seu contacto, descobre o lugar comum e alcança a liderança. Não, não é fácil encontrar um candidato sério, mesmo que a técnica encubra aquilo que a emoção reclama.
O apego à erudição, a insatisfação pela procura de melhores resultados, o estudo constante e a observação demorada não podem ser substituídos somente pela experiência, porque o mundo é feito de mudança, os homens mudam e os cães são nascem de acordo com a sua inclinação ou semelhança, todos os dias surgem novos subsídios e melhores soluções despontam, pois importa acabar de vez com a doutrina da “tábua rasa”. O contacto com os cães é ancestral mas novidade tem aumentado significativamente o seu bem-estar. Estar no adestramento obriga à reciclagem constante, à procura de novos contributos em áreas ou ciências que até aqui nos pareciam desligadas e sem qualquer contributo. Porque a verdade é esta: se os cães nos auxiliam no conhecimento dos homens, serão os homens que melhor nos poderão auxiliar no conhecimento dos cães. Por causa disso, em substituição dos actuais cursos técnicos, não virá longe o tempo em que os adestradores virar a necessitar duma licenciatura. Suceder-nos é também apostar na erudição.
Apesar do inescusável contributo da ciência, o adestramento é essencialmente uma arte e como tal necessita de bons executantes ou artistas, porque o termo é erroneamente entendido num só sentido quando na verdade se destina a ambos os elementos de cada binómio, sendo por isso mais fácil adestrar cães do que aprimorar condutores. O bom desempenho do adestrador, a sua criatividade, a inequívoca união binomial, a oportunidade das suas ajudas, a graciosidade das figuras que projecta e a sublimidade que emana devem constituir-se num convite, num incentivo para o treino e pràs mais-valias que ele oferece – um exemplo a seguir. O mundo está cheio de maus executantes e isso tem influído negativamente no desenvolvimento e continuidade de várias escolas, e quando se começa mal cedo se avizinha a tragédia. Elegemos como candidatos os artistas, aqueles que superiormente desempenham os distintos movimentos ou figuras, que transformam os requisitos básicos em momentos de rara beleza. A isto se chama transcendência operativa e é isso que avidamente também procuramos, até porque adestramos binómios para o universo das artes televisiva e cinematográfica.
Para além do discipulado, da excelência da mensagem transmitida, da predisposição ou talento natural, do apego à erudição, do conhecimento profundo dos distintos grupos somáticos caninos e da qualidade artística, sempre exigimos aos nossos sucessores experiência prévia e aprovada no ensino de cachorros, de cães adultos e nos sujeitos à reeducação. A somar a isto, exigimos ainda que tenham superior aproveitamento nas disciplinas que ministramos, que se especializem na recuperação morfológica e que dominam os segredos e benefícios dos aparelhos e obstáculos da pista táctica, bem como no domínio completo da técnica de condução. Atendendo à carga curricular facilmente se antevê da necessidade de um estágio pós formação, onde o candidato ou candidatos serão avaliados para a sua futura função. Esse estágio consta de aulas domiciliares e do ministrar de lições às classes escolares., obrigatoriamente antecedidas dos necessários planos de aula. A admissão de candidatos privilegia os alunos oriundos do nosso curso monitores ou os alunos que atingiram a Classe A escolar. Tentamos com estes requisitos melhor capacitar aqueles que darão continuidade ao nosso trabalho, porque a surpresa causa entrave, o improviso gera confusão e o embaraço não será a melhor das pedagogias, já que o desenrascanso adultera qualquer método, compromete a mais sana das filosofias de ensino e normalmente perverte os objectivos procurados. A candidatura a adestrador, para além dos cães que serão colocados à sua disposição, é um convite estendido somente aos condutores, àqueles que se constituíram em binómios e que são proprietários dos cães que conduzem.
De nada valerão todos os requisitos atrás adiantados se os candidatos não forem inatamente líderes, porque o adestramento acaba por ser um curso de liderança, uma investidura escondida por detrás do condicionamento canino, uma ocasião para a mudança que precisa constantemente de ser alimentada e reavivada, já que a propensão da maioria dos condutores é outra e o seu modo de vida isso reforça. Jamais será fácil transformar um escravo num soberano, transmitir convicções a um abatido e partir da desilusão para chegar à certeza. A investidura canina irá revelar-se muito mais atingível do que a humana. E isto Porquê? Porque no treino reconstruímos a estrutura social canina e necessitamos que os donos ocupem nela o lugar que lhes está reservado. Nos primeiros a resposta é natural e nos segundos ela é maioritariamente artificial. A actuação de um bom adestrador é caracterizada pela auto-renúncia em prol do desenvolvimento dos seus alunos, sacrifício hercúleo que reclama disponibilidade, força e ânimo constantes, uma superior perseverança nos princípios gerais da pedagogia de ensino e uma empatia inquestionável, porque alguns donos necessitarão de ser carregados ao colo para que os seus cães venham a segui-los. O bem-estar dum adestrador só acontece pelo progresso das suas classes e o seu gozo só resultará das suas pequenas vitórias. No meio da contrariedade terá de ir adiante e quando o desânimo lhe bater à porta não terá tempo para se deixar abater, porque ele é a mão estendida em ajuda e esse é o seu ofício. Por causa do combate do “aqui” e “agora” a que as metas obrigam e a brevidade de dias dos cães não é alheia, o seu trabalho e empenho vão para além do encerramento das aulas, seguem-no lar adentro até ao refúgio do seu leito e nisto sempre estará só, com os donos às voltas e os cães na cabeça, porque dele se espera solução e o resto aos outros pouco importa. Ainda que o faça em part-time, o seu trabalho será mais árduo do que o exigível a um animador de tempos livres, porque terá de rentabilizar o lúdico e transformar a brincadeira num caso sério, operações que empreenderá gradualmente pela subtileza e que serão sustentadas pela amizade que vai semeando. E neste sentido ele é também um visionário, porque lhe é exigido transformar o grupo em ferramenta, carregar as suas dificuldades e provocar alteração, levar de vencida as situações adversas e criar condições pró sucesso. Muito mais haveria a dizer e aqueles que abraçarem esta paixão irão certamente descobri-lo. Pelo que foi dito e atendendo à restrição que a escolha exige, quem se agiganta para o cargo? Pouquíssimos nomes nos vêm à memória, será que nos esquecemos de alguém? Se tem todas as condições que exigimos, pretende carregar o nosso fardo e ir adiante com o nosso trabalho, não hesite, apresente-se, certamente será bem-vindo. Venha que se faz tarde!

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