Este artigo é manifesta e intencionalmente antropomórfico face aos seus destinatários e ao bem-estar canino, já que os cães não falam e necessitam de ser ouvidos, porque se expressam de modo diverso e nem sempre são compreendidos. Tudo o que sobre eles ouvimos passa pela interpretação, o que pode distanciar-nos da sua realidade, viver social, impulsos inatos e carga instintiva. Tendencialmente falamos do que conhecemos e a nossa análise cativa-se invariavelmente às nossas expectativas, porque a dependência canina vem em nosso auxílio, teimosamente resistimos à mudança e procuramos a reciprocidade. Graças a estes predicados, entendidos quase sempre como verdades insofismáveis, muitos acabam por ter em casa ilustres desconhecidos, cães que no seu “entender” são inapropriados ou disparatados, animais sem préstimo e causa de algum agravo. Se entender os cães aos nossos olhos é fácil, mais difícil se torna torná-los compreensíveis. Dar a conhecê-los é o nosso objectivo, algo para além da comum fábula e mais próximo das aspirações daqueles que persistem em acompanhar-nos. Vamos à história do Skipper e ousemos entrar no seu mundo.“Chamo-me Skipper, sou um macho com 3 anos de idade, tenho pedigree, sou muito meigo e fui adoptado por um casal que me adora. Vivo numa moradia e passo a maior parte do tempo à solta no quintal, durmo na garagem e recentemente fui inscrito numa escola. Nela resisto em andar à trela, desafio os outros cães e estou a adquirir força. Fui ali parar por causa de um episódio que obrigou os meus donos ao pagamento duma ovelha e também porque se tornou impossível levarem-me comodamente à rua. Na escola gosto de competir com os demais e não me sinto inferior a eles, muito pelo contrário, apesar de ser continuamente contrariado e acabar exausto no duelo das vontades. Sou alegre e adoro saltar, os meus andamentos naturais são graciosos e sou naturalmente atento, aprendo sem dificuldades e estou a descobrir um mundo novo. Tenho tudo para ser um vencedor! Eu gostava que a minha condutora não me criasse dificuldades na absorção dos códigos, porque no meio do embaraço sempre confunde comandos e procedimentos, treme perante a aproximação dos outros cães e obriga-me, invariavelmente, a uma deslocação em passo de andadura, o que para além de impróprio, me obriga ao atraso e ao seu reboque. O treinador lá vai insistindo com ela e solicita-lhe maior disponibilidade e atenção. Ela responde-lhe com 3 sons que não entendo: amanhã, esperança e Deus. O primeiro deve referir-se a uma experiência que teve, o segundo a algo que não tem e o terceiro a um macho alfa que domina sobre ela, contudo nunca visto. Eu vivo da experiência que tenho e só isso me ajuda na compreensão do “aqui e agora”. A minha condutora inicia os trabalhos a suspirar e eu não entendo porquê, sinto-a em dificuldades e não sei o que fazer. Perante a sua aflição torno-me nervoso e desconfiado: donde virá o perigo? Querendo protegê-la, suspeito e enfrento os outros cães. Pouco a pouco, por força do trabalho a que sou sujeito, tenho percebido que não há razão para alarmes, que todos me querem bem e que o grupo escolar me adoptou. Por vezes sou repreendido quando tomo a liderança, porque a sinto frágil e necessitada de ajuda, embaraço que não sinto quando nos encontramos em casa. Sinto que ela não tem grande confiança em mim, porque quando os outros me conduzem pela trela faço tudo bem e alegro-me nas vitórias. Devido à sua periclitante condução, intento tomar a iniciativa. Infelizmente a trela não me deixa e o cansaço obriga-a ao descanso. Eu desejo mais e necessito de excursão, preciso de quem ela me acompanhe e vá adiante no nosso trajecto comum. Descobri no treino que tenho muito mais para dar, que afinal sou mais forte pelas experiências que tenho tido, descobri sentimentos que julgava não ter e atribuições que nunca experimentei, porque desde a minha adopção a minha capacitação foi por demais descuidada e artificial, alheia à minha condição canina e distante da minha propensão natural. Queria ser feliz como sou no meu reduto, sair acompanhado porta fora e descobrir o mundo que me rodeia, abraçar novas experiências e aceitar outros desafios, pois estou na força da idade e não me satisfaço no simples acto de espreitar os muros”. Talvez o Skipper tivesse mais a dizer, até porque os cães reclamam muita atenção e cumplicidade. Porém, a sua história não é única e já tem barbas, abate-se vezes sem conta sobre os cachorros que diariamente são levados para casa, transformados em marionetas nas mãos de quem deles necessita, à revelia da sua condição e para gozo dos seus proprietários. Será que esta é única opção?Ao contrário do que se pensa, os cães para invisuais ou os destinados a suprir dificuldades dos seus donos são raros, objecto de selecção cuidada e alvo de afincada preparação, executada por quem sabe e segundo um cronograma específico, o que afasta a maioria dos cães desse serviço ou função, mercê das características individuais que garantem o desempenho procurado, existindo algumas raças avessas, sem propensão para esse tipo de auxílio ou indivíduos impróprios para tal desempenho, cujo número é largamente maioritário quando comparado com o dos cães destinados a essas especificidades. Todo aquele que procura um cão deve coadunar aquilo que tem para oferecer (tempo a dispensar; a sua disponibilidade física; as condições de alojamento; a economia do agregado familiar e a educação do animal, etc.) com a raça ou indivíduo que melhor servem os seus intentos, porque a harmonia só é possível quando ambivalente. Urge largar a sorte e ilibar os cães da desventura, porque um binómio é como um casamento que importa que feliz, profícuo e duradouro.
terça-feira, 29 de março de 2011
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