segunda-feira, 7 de março de 2011

E DEPOIS DO DOMÍNIO?

Escritores de tempos remotos, para muitos movidos por impulso divino ou por pretenso contacto com diferentes deidades, justificaram e continuam a justificar o domínio do homem sobre a terra e sobre tudo que nela habita, exaltando a humanidade sobre os demais e tudo colocando para a sua sobrevivência e serviço, dogma incontestável que pode levar-nos inclusive ao extermínio pela destruição do Planeta tal qual o conhecemos, porque nele somos reis e senhores e não há aqui quem connosco rivalize. A pretexto dum beneplácito divino e porque o homem é um predador insaciável, a fraternidade tornou-se hipócrita, a igualdade uma utopia e a liberdade um conceito para justificar as mais rebuscadas formas de escravatura, a coberto do politicamente correcto e de acordo com a desordem a que o vil metal obriga. Diante desta ordem (desordem), todos somos simultaneamente vítimas e carrascos, condenando por analogia os nossos iguais e todos os animais que congregamos ou que de nós se acercam. Infelizmente não temos solução para o problema, ainda que as velhas soluções metafísicas, diante do desespero, pareçam apetecíveis e acertadas face à necessidade de um milagre, porque quando grassa a agonia a redenção tende a ganhar forma, já que a esperança, segundo dizem, é a última coisa a morrer. Terá esta fé um origem divina ou será tão-somente um instinto animal, o ligado à preservação das espécies e à sua sobrevivência? Virá ela da cultura ou será individualmente predestinada, resultará da genética ou terá uma origem sobrenatural? As opiniões dividem-se e cada qual toma como verdade aquilo em que acredita. Porém uma coisa é certa: todos procuramos o domínio, exactamente como um simples cachorro movido por um forte impulso ao poder, ambição inata que o induzirá à desobediência e à rebeldia.

Ainda que tenhamos como objectivo central do nosso adestramento a sobrevivência animal, princípio do qual nunca abdicaremos, as pessoas que nos chegam procuram exclusivamente o domínio sobre os seus cães, segundo as suas expectativas e finalidades, ignorando de sobremaneira aquilo que justamente é devido aos animais, tendência que intentamos levar de vencida tanto pelo exemplo quanto pelo esclarecimento. Assim sendo, a obediência que sustenta a exploração canina e que cativa os cães ao esclavagismo funcional deverá ser abandonada, porque se faz tarde e os cães também almejam a felicidade, porque tudo fazem por nos agradar e não entendem a sobranceria que engorda o ego dos seus condutores. Se considerarmos o panorama do adestramento actual, facilmente descobrimos a discrepância entre as disciplinas ditas para o bem comunitário e aquelas cativas aos prazeres e aspirações individuais, não raramente fratricidas e como tal anti-sociais. O que será mais fácil encontrar nas lojas da especialidade: os acessórios para os cães de guarda ou os relativos ao exercício da pistagem? Se juntarmos ao número dos cães guias de cegos, o número dos cães que se exercitam na pistagem, resgate e salvamento, facilmente veremos que apenas são um 1/10 do montante daqueles que se penduram regularmente em fatos e mangas, apesar das primeiras disciplinas serem universais e inatas a todos os cães. Porque razão ou razões se dispensa a maioria dos cães ditos familiares do treino convencional?
Para se entender aquilo que a obediência oferece, não é preciso rara erudição ou aturada meditação, porque nela o domínio do homem sobre o cão é por demais evidente. Se esse domínio acontecer para além da salvaguarda dos cães e sem o respeito pela sua condição, as respostas artificiais adquiridas pelo treino outra coisa não serão do que subsídios contundentes para a mais abusiva exploração, quer se cante, assobie, coaxe, acaricie ou haja lugar à distribuição de biscoitos. A relação dos homens com os cães, tarefa a que a antrozoologia também se dedica, continua a ser interesseira e os lucros da parceria revertem quase em exclusivo para os proprietários caninos. Ainda que no nosso tempo se tenha assistido à suavização dos métodos, contudo os objectivos permanecem exactamente os mesmos, o que não encobre o uso abusivo e a violência de uns tantos objectivos, porque a essência humana não sofreu alteração e sempre procura a sua tendência natural., encoberta em desejos incontidos e infelizmente manifesta no desempenho de certos cães. Só deixaremos os cães em paz no dia em que os homens deixarem de lutar entre si, desejo visto como utopia e que procura um paraíso num local impreciso.
Assim como não deveremos distribuir armas a crianças e alienados, também resistimos a oferecer o domínio àqueles que dele farão mau uso, para que a sujeição canina não se reverta num mal maior e culmine na eliminação dos animais induzidos. Só o amor pelos cães justifica o recurso, o exercício e a prática na disciplina de obediência, já que a isenção deste sentimento tende a sobrecarregar os animais e a potenciar os ódios e embirrações dos seus proprietários, também eles oriundos dum mundo cão. O aproveitamento na obediência nunca será estéril, porque a partir dela se poderão formar cordeiros ou guerrilheiros, elementos aglutinadores ou indivíduos anti-sociais. A educação dos donos sempre deverá anteceder a capacitação dos cães, para que não se escondam por detrás dos animais e causem dolo a outrem pela calada, porque a obediência oferece o mancebo e o dono irá dar-lhe o uso que lhe aprouver. Atendendo à má sorte de tantos cães, questionamo-nos hoje se é lícito ministrar aulas de obediência a todos aqueles que nos procuram, já que os desacatos e tropelias mais comuns outra coisa não são do que gritos de descontentamento, manifestações de tristeza por parte dos animais.





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