Diz-se que Deus escreve
direito por linhas tortas, o homem não, aforismo que remete exclusivamente a
ocorrência de milagres para a intervenção divina e que é em simultâneo uma
mensagem de esperança. Ao longo da história da humanidade, particularmente nos
momentos de crise, nunca nos faltaram pretensos milagreiros, “messias” autoproclamados
que em diversos quadrantes da actividade humana sujeitaram os seus seguidores a
duros esforços e a piores misérias. À revelia dos ensinamentos de La Fontaine e
deturpando-os, há quem queira transformar tartarugas em lebres e rãs em bois,
insanidade muito comum na canicultura e na cinotecnia, onde invariavelmente se
valoriza o sonho em detrimento da realidade, pesadelo que não irá poupar alguns
cães por desrespeito ao seu particular, tanto físico como psicológico, e que
terá como resultado a ocorrência criminosa de várias lesões e traumas.
Qualquer desporto canino,
para além dos exercícios aeróbios que o sustentam e que não raramente são ignorados,
irá exigir esforços anaeróbios que devem casar-se com a morfologia dos animais
de acordo com as exigências de cada modalidade. Caso isso não se verifique, bem
depressa os cães concorrerão a lesões que poderão reverter-se em incapacidades carentes
de intervenção cirúrgica ou permanentes. Animais subnutridos ou carentes de uma
alimentação própria para o seu desempenho, mal aprumados, débeis de ligamentos,
carentes de massa muscular, com pouca densidade óssea, portadores de problemas
articulares, com dificuldades respiratórias e insuficiência cardíaca, entre
outros, não podem e não devem concorrer a desportos muito exigentes, já que
estes se destinam a cães saudáveis. E nisto os veterinários, melhor do que
ninguém, têm uma importante palavra a dizer e deverão ser ouvidos, muito embora
todos saibamos que ainda está por descobrir, passados milhares de anos, quem
pagará e viverá da medicina preventiva.
Os mais variados desportos
caninos, enquanto práticas que substituem as excursões de caça e as manobras de
grupo que os cães herdaram, por via de serem predadores e seres sociais, agora
cada vez mais dependentes de nós, combatem efectivamente o stresse dos cães e
contribuem objectivamente para o seu bem-estar físico e anímico. Contudo,
importa escolher o desporto certo para o cão que temos em mãos.
Tradicionalmente tem-se privilegiado o aproveitamento dos cães segundo as suas
características inatas, sem se aquilatar primeiro da justeza dessa opção, se
aquilo que o animal gosta de fazer é o que melhor lhe convém (às expectativas
dos donos sempre será) e se ostenta o equilíbrio psíquico para a função que
possibilite o seu bem-estar e controlo, já que a ansiedade nos cães é de
difícil solução e não deverá ser o desporto a promovê-la ou a potenciá-la, o
que a acontecer daria azo a um sem número de disparates e ao esperado
encurtamento dos seus dias.
Debaixo de ansiedade, como
tantas vezes temos visto, os cães ensurdecem-se para os donos, podendo
vitimar-se e causar vítimas gratuitamente. Exemplo disso é quando um cão de
provas não larga o agressor, apesar dos veementes comandos do dono para o
largar ou quando um cão de agility ultrapassa todos os obstáculos na sua
frente, podendo inclusive ferir-se, ao dispensar as indicações do seu condutor.
Por vezes a ansiedade é tal que os ritmos vitais disparam para valores
alarmantes, havendo cães que virão a marcar, inusitadamente, mais de 180
pulsações por minuto, tardando na sua recuperação, facto que a breve trecho
lhes poderá vir a ser fatal e que deixa alguns vários dias prostrados, como
infelizmente vamos tendo notícia em corridas de galgos.
Como é sabido, os cães
atletas devem apresentar baixas frequências cardíacas e respiratórias, para que
a sua recuperação aconteça o mais pronto possível (mesmo os mais dotados não
irão dispensar o treino sistemático para garantirem a boa forma física que os
fará alcançar a excelente prestação). Como nenhuma raça garante em absoluto que
todos os indivíduos que a constituem são próprios para determinada modalidade
desportiva, há que primeiro avaliar cada cão por si mesmo, se próprio ou
impróprio para esse desempenho, considerando as suas características
morfológicas, perfil psicológico e quadro clínico. Ainda que um cão apresente
uma invejável morfologia e uma saúde de ferro, jamais deverá ser usado em
qualquer desporto que o desequilibre psicologicamente, destrua a liderança e
inviabilize o trabalho binomial. Também o princípio latino adiantado por
Juvenal: “Mens sana in corpore sano” é válido para os cães. Escrever direito
por linhas tortas é uma prerrogativa divina e, quem nasce torto… tarde ou nunca
se endireita. Antes de inscrever o seu cão numa modalidade desportiva, consulte
o seu veterinário e respeite o seu parecer.
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