domingo, 11 de outubro de 2015

DIZEM QUE SÓ DEUS ESCREVE DIREITO POR LINHAS TORTAS

Diz-se que Deus escreve direito por linhas tortas, o homem não, aforismo que remete exclusivamente a ocorrência de milagres para a intervenção divina e que é em simultâneo uma mensagem de esperança. Ao longo da história da humanidade, particularmente nos momentos de crise, nunca nos faltaram pretensos milagreiros, “messias” autoproclamados que em diversos quadrantes da actividade humana sujeitaram os seus seguidores a duros esforços e a piores misérias. À revelia dos ensinamentos de La Fontaine e deturpando-os, há quem queira transformar tartarugas em lebres e rãs em bois, insanidade muito comum na canicultura e na cinotecnia, onde invariavelmente se valoriza o sonho em detrimento da realidade, pesadelo que não irá poupar alguns cães por desrespeito ao seu particular, tanto físico como psicológico, e que terá como resultado a ocorrência criminosa de várias lesões e traumas.
Qualquer desporto canino, para além dos exercícios aeróbios que o sustentam e que não raramente são ignorados, irá exigir esforços anaeróbios que devem casar-se com a morfologia dos animais de acordo com as exigências de cada modalidade. Caso isso não se verifique, bem depressa os cães concorrerão a lesões que poderão reverter-se em incapacidades carentes de intervenção cirúrgica ou permanentes. Animais subnutridos ou carentes de uma alimentação própria para o seu desempenho, mal aprumados, débeis de ligamentos, carentes de massa muscular, com pouca densidade óssea, portadores de problemas articulares, com dificuldades respiratórias e insuficiência cardíaca, entre outros, não podem e não devem concorrer a desportos muito exigentes, já que estes se destinam a cães saudáveis. E nisto os veterinários, melhor do que ninguém, têm uma importante palavra a dizer e deverão ser ouvidos, muito embora todos saibamos que ainda está por descobrir, passados milhares de anos, quem pagará e viverá da medicina preventiva.
Os mais variados desportos caninos, enquanto práticas que substituem as excursões de caça e as manobras de grupo que os cães herdaram, por via de serem predadores e seres sociais, agora cada vez mais dependentes de nós, combatem efectivamente o stresse dos cães e contribuem objectivamente para o seu bem-estar físico e anímico. Contudo, importa escolher o desporto certo para o cão que temos em mãos. Tradicionalmente tem-se privilegiado o aproveitamento dos cães segundo as suas características inatas, sem se aquilatar primeiro da justeza dessa opção, se aquilo que o animal gosta de fazer é o que melhor lhe convém (às expectativas dos donos sempre será) e se ostenta o equilíbrio psíquico para a função que possibilite o seu bem-estar e controlo, já que a ansiedade nos cães é de difícil solução e não deverá ser o desporto a promovê-la ou a potenciá-la, o que a acontecer daria azo a um sem número de disparates e ao esperado encurtamento dos seus dias.
Debaixo de ansiedade, como tantas vezes temos visto, os cães ensurdecem-se para os donos, podendo vitimar-se e causar vítimas gratuitamente. Exemplo disso é quando um cão de provas não larga o agressor, apesar dos veementes comandos do dono para o largar ou quando um cão de agility ultrapassa todos os obstáculos na sua frente, podendo inclusive ferir-se, ao dispensar as indicações do seu condutor. Por vezes a ansiedade é tal que os ritmos vitais disparam para valores alarmantes, havendo cães que virão a marcar, inusitadamente, mais de 180 pulsações por minuto, tardando na sua recuperação, facto que a breve trecho lhes poderá vir a ser fatal e que deixa alguns vários dias prostrados, como infelizmente vamos tendo notícia em corridas de galgos.
Como é sabido, os cães atletas devem apresentar baixas frequências cardíacas e respiratórias, para que a sua recuperação aconteça o mais pronto possível (mesmo os mais dotados não irão dispensar o treino sistemático para garantirem a boa forma física que os fará alcançar a excelente prestação). Como nenhuma raça garante em absoluto que todos os indivíduos que a constituem são próprios para determinada modalidade desportiva, há que primeiro avaliar cada cão por si mesmo, se próprio ou impróprio para esse desempenho, considerando as suas características morfológicas, perfil psicológico e quadro clínico. Ainda que um cão apresente uma invejável morfologia e uma saúde de ferro, jamais deverá ser usado em qualquer desporto que o desequilibre psicologicamente, destrua a liderança e inviabilize o trabalho binomial. Também o princípio latino adiantado por Juvenal: “Mens sana in corpore sano” é válido para os cães. Escrever direito por linhas tortas é uma prerrogativa divina e, quem nasce torto… tarde ou nunca se endireita. Antes de inscrever o seu cão numa modalidade desportiva, consulte o seu veterinário e respeite o seu parecer.

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