Quando se fala sobre a 1ª
República Portuguesa (1910-1926), vêm-nos automaticamente à memória o
regicídio, grandes tumultos sociais, miséria, fome, instabilidade política, governos
de pouca duração, endividamento externo, maçonaria, expulsão de ordens
religiosas, guerra, morte nas trincheiras, anarquia e anarco-sindicalistas, ataques
bombistas, assassinatos etc., porque o regime ditatorial que a derrubou, para
justificar a privação dos direitos e liberdades populares que empreendeu, muito
enfatizou esses aspectos em detrimento doutros de igual importância para o Povo
e para o País. Um deles foi sem dúvida o esforço republicano pela educação
popular e pela escola pública, já que a República herdou da Monarquia um povo
maioritariamente analfabeto (3/4 da população não sabia ler nem escrever), canga
que mais interessava à conservação dos privilégios de alguns que ao progresso e
desenvolvimento dos portugueses. Para se ter uma ideia da dimensão do problema,
que se estende até aos dias de hoje, na década de 60, quando as missas passaram
a ser oficializadas em português, obra do Concílio do Vaticano II, 40% dos
portugueses eram ainda analfabetos, o que nada aproveitava ao País mas que bem
servia aos adeptos da doutrina do “Ex Opere operato” e ao poder vigente, que se
mantiveram de mãos dadas por mais algum tempo.
Apesar do corte abrupto
com os ideais republicanos, Salazar viria a dar continuidade ao programa de
ensino público encetado pelos homens do 5 de Outubro de 1910, garantindo a
quase todos “o saber ler, escrever e fazer contas”. Num País com um grau médio
de escolaridade tão baixo e dominado por uma economia de subsistência, que a
muitos levou à emigração, à fuga para o litoral e ao amparo do Estado, a
canicultura, a cinotecnia e a veterinária viriam a sofrer pouco incremento,
padecendo por falta de meios, intercâmbio e inovação, assim como a nossa
agricultura. Tudo o que encetámos nestas áreas aconteceu no mínimo com 50 anos
de atraso e nalguns casos com maior delonga. O Clube Português de Canicultura,
descendente directo do Real Clube de Caçadores de Portugal, do qual foi uma
secção, só em 1955 é que adopta o seu nome actual, tendo sido aceite como
membro federado da FCI vinte anos antes (1933), elaborado o seu Livro de
Origens em 1936 e entendido como Kennel Club em 1939 (bastante mais tarde que
os seus congéneres europeus). Os primeiros estalões caninos das raças
portuguesas irão acontecer sob os augúrios e à luz do “Estado Totalitário”,
onde desde logo se reafirmam as heranças históricas de cada uma delas em
prejuízo da sua utilidade, preocupação estética e morfológica que, quando
isolada, as remeterá para uma menor procura ou para um grupo de eleitos, onde o
seu ascetismo reforçará o status dos seus proprietários.
Se a formação da nossa
canicultura aconteceu tarde e a más horas (década de 40), a nossa cinotecnia
não podia adiantar-se-lhe e nenhuma delas poderia ir mais além da agricultura e
pecuária que tínhamos. Salvo honrosas e isoladas excepções, a nossa burguesia
sempre foi descamisada, tacanha e pouco empreendedora, e a nossa classe média
por demais oscilante, ao ponto de desconsiderar os cães e as suas vantagens
diante do inevitável equilíbrio orçamental familiar. Não tendo a esmagadora
maioria do povo como abraçar a ideia, por ausência de meios e de cultura, coube
aos militares e à polícia fazê-lo, copiando modelos estrangeiros e importando
cães na eminência de um cenário de guerra colonial e de uma maior necessidade
de repressão ou de manutenção de ordem pública, “novidade” que viria a
acontecer no final da década de 50, quando o General Kaulza de Arriaga fez
chegar os primeiros Pastores Alemães às tropas pára-quedistas (um ano mais
tarde chegariam também à GNR).
A chegada dos “Alsacianos”
e a consequente formação dos seus instrutores e tratadores, na sua fase
embrionária alcançada no estrangeiro, irá marcar a cinotecnia portuguesa
durante os 25 anos seguintes, por ser única, apesar do seu cariz militar ou
paramilitar. Ainda que nos anos 60 tal já acontecesse esporadicamente, nos anos
70 e 80 assiste-se ao treino de cães civis por militares e polícias, na inexistência
doutros instrutores, escolas e métodos (a ATAAC – Associação de Treinadores
Amadores e Amigos do Cão, primeira escola civil a desenvolver a sua actividade
em Portugal, só viria a ser fundada a 11 de Setembro de 1991). Estes cães eram
treinados pelos tratadores militares/policiais num período médio de até 2 meses
ou através de um número contratado de lições, sucedendo-lhe depois a
“transferência”, período em que o tratador entregava o comando do cão ao dono,
debaixo da sua supervisão, ensinando-lhe o uso dos códigos (as coisas nem
sempre corriam segundo o esperado). Durante o treino, dependendo da natureza
dos cães ou da distância a que se encontravam dos seus treinadores, os cães
tanto poderiam pernoitar em casa como ser instalados num canil para o efeito.
Do ponto de vista prático, a cinotecnia portuguesa (civil e policial) ficou a
dever a sua actualização à sua congénere militar. Mais tarde, alguns indivíduos
que cumpriram o serviço militar obrigatório numa subunidade cinotécnica
(tratadores), viriam a formar junto com outros várias escolas civis.
É evidente que já tínhamos
tradições e práticas cinotécnicas anteriores à cinotecnia militar, actividades ancestrais,
tornadas populares, ligadas à pastorícia e à actividade cinegética, firmadas
desde o Império Romano, adoptadas pela aristocracia visigoda, desenvolvidas na
Idade Média, aprimoradas pela presença muçulmana na Península e tornadas
tradição pelos mouros que aproveitámos para a agricultura. No final do Séc. XIX
ficou famosa a matilha heterogénea de El-Rei D. Carlos destinada à montaria,
obra do saber dos seus monteiros, na sua quase totalidade analfabetos, handicap
que não lhes permitiu “fazer escola” ou elaborar tratados. Contudo, os seus
conhecimentos foram transmitidos oralmente até aos dias de hoje, fundamentando
hábitos, crenças e métodos que se perdem pelos confins dos tempos e que sustentam
o nosso modo de caçar, cuja erudição, volvidos tantos anos, ainda deixa muitos
especialistas boquiabertos.
Durante a 1ª República e até ao final da II Guerra Mundial (1945), a
caça não teve grande incremento em Portugal, por razões político-ideológicas e
socioeconómicas, até porque o povo, não tendo como sustentar cães e comprar
espingardas, caçava a laço e a varapau, correndo alguns a pé descalço. Nunca
tivemos necessidade de elaborar uma lei, como aconteceu nas Ilhas Britânicas,
para estabelecer o tamanho dos cães populares, porque os nossos sempre foram
naturalmente pequenos e moldados pela desnutrição (os cães grandes eram
pertença de nobres e burgueses, que tinham como encher-lhes a barriga, já que
possuíam gado, fazenda e coutos). Depois da II Guerra Mundial, lentamente e a
partir da década de 50, a caça generalizou-se, um pequeno grupo de abastados
começou a importar cães e a estabelecer canis, primeiro a partir de raças
autóctones de Espanha e depois doutros países europeus, o que levou, pela
“porta do cavalo”, à proliferação do rafeiro para caça entre os populares, primeiro
resultante da cruza do podengo, do perdigueiro e do rafeiro entre si e depois
com outros (nacionais e estrangeiros).
Entretanto, importa falar
sobre a medicina veterinária em Portugal, porque dela irá depender em grande
parte o avanço da nossa cinotecnia. A primeira Escola de Veterinária nacional é
instituída por decreto régio de D. Miguel em Lisboa, no ano de 1830, tendo como
padrão as “Landwirschaf Hochschule" (escolas agrícolas alemãs), quase 70
anos depois da sua homóloga francesa, criada em Lyon e que foi a pioneira na
Europa (1762). A maioria das escolas europeias de veterinária foi fundada no
Séc.XVIII, inclusive a espanhola de Madrid, que remonta ao ano de 1792, o que possibilitou
o aparecimento de distintas raças caninas estrangeiras ainda no Séc.XIX, cujos
estalões foram redigidos maioritariamente por veterinários. Até à formação da
nossa primeira escola de veterinária, remontando ao Séc.XV, seguiam-se aqui e
em Espanha o parecer dos “alveitares”, nome aportuguesado para “albeitar”, numa
alusão ao reputadíssimo médico de animais Eb-Ebb-Albeithar, um peninsular de
origem árabe. O cargo de “alveitar” foi criado durante o reinado de Afonso V de
Aragão e continuado pelos Reis Católicos até ao surgimento da escola
veterinária de Madrid.
Em 1855 a “Real Escola
Veterinária Militar” foi incorporada no “Instituto Agrícola”, criado debaixo da
tutela do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, onde passou a
ministrar-se um curso misto de Agronomia e Veterinária, que formava
veterinários-lavradores. Em 1864 verificou-se a junção entre o “Instituto Agrícola
de Lisboa” com a “Escola Veterinária Militar”, nascendo assim o “Instituto de
Agronomia e Veterinária” (no Convento dos Brunos, ao Salitre/Lisboa). A reforma
do ensino operada em 1886 viria a criar neste mesmo Instituto o curso separado
de medicina veterinária, que em 1910 e no mesmo local, em paralelo com o
“Instituto de Agronomia”, criava a “Escola de Medicina Veterinária”. Foi com a
1ª República, em 1918, que a “Escola de Medicina Veterinária” passou a
chamar-se “Escola Superior de Medicina Veterinária”, conferindo aos seus alunos
o grau de doutor em medicina veterinária. Em 1930, já debaixo da tutela do
Estado-Novo, foi criada a “Universidade Técnica de Lisboa”, que englobava a
“Escola Superior de Medicina Veterinária”, o “Instituto Superior de Agronomia”,
o “Instituto Superior Técnico” e o “Instituto Superior de Ciências Económicas e
Financeiras”. Com a aprovação dos estatutos da “Universidade Técnica de
Lisboa”, ocorrida em Agosto de 1989, a “Escola Superior de Medicina
Veterinária” passou a chamar-se “Faculdade de Medicina Veterinária” da
Universidade de Lisboa, actualmente a funcionar no Polo Universitário do Alto
da Ajuda. Hoje, somando as públicas com as privadas, são 9 as universidades
portuguesas que ministram cursos superiores de medicina veterinária.
Durante a maior parte do
Séc.XX, os veterinários portugueses fizeram jus ao constante no alvará régio
miguelista de 1830, acerca da necessidade de uma escola veterinária: “…E
convindo igualmente que estes conhecimentos se generalizem para utilidade
pública na conservação e criação de toda
a espécie de gado cavalar, vacum e lanígero”. E fizeram-no quase em
exclusivo até aos anos 60, porque os dedicados aos pequenos animais eram poucos
e a maioria deles tinha os seus consultórios nas grandes cidades, já que o País
era pobre e não se coadunava com “cães de luxo”. Conhecemos vários veterinários
na província que se sentiam ofendidos se alguém lhes levasse um cão para ser
consultado e outros que pouco mais faziam do que eutanasiá-los (alguns ainda
andam por cá, agora a rondar os 70 anos de idade). Este afastamento
médico-veterinário dos pequenos animais, justificado por razões económicas,
nada beneficiou a canicultura nacional e muito menos subsidiou a cinotecnia. Na
década de 60, já com cães nas forças armadas e militarizadas, aos veterinários
urbanos vieram juntar-se os militares na assistência aos cães civis. Nos anos
70, o número de veterinários dedicados aos pequenos animais começou a aumentar,
graças à fuga das populações prás cidades, a uma ligeira melhoria das condições
de vida das pessoas e ao consequente aumento de animais de estimação. Na
décadas de 80 e 90 explode o número de clínicas veterinárias e começam a
aparecer os primeiros etólogos nacionais. Chegados ao novo milénio, cresce o
número de veterinários desempregados, o número de doutoramentos e as dificuldades
em exercer a profissão, porque é cada vez menos rentável face à crise económica
e ao número excedentário de clínicos, o que veio a ter como consequência a estabilização
do número de consultórios e o aumento dos hospitais veterinários (veterinários
a trabalhar para outros).
Na década de 90 tudo mudou
e a cinotecnia nacional alcançou um desenvolvimento nunca visto, mercê do
dinheiro fácil, da melhoria generalizada das condições de vida dos portugueses,
da compra da 2º habitação, da vulgarização dos computadores, do aumento da
escolaridade, de maior intercâmbio cultural e da transferência do mundo rural
para a prestação de serviços, tudo reflexo da nossa adesão à CEE, que aconteceu
a 12 de Junho de 1985. Por todo o lado começaram a surgir escolas caninas e
novas modalidades de ensino, os tratadores militares profissionais cederam
lugar aos treinadores civis amadores e passaram a existir campeonatos regulares
das mais distintas provas desportivas caninas. Paralelamente, a canicultura
portuguesa viu aumentar brutalmente o número dos seus criadores e as clínicas
veterinárias dedicadas aos animais de companhia sucediam-se umas às outras, assistindo-se
a uma importação de cães nunca vista e ao aumento das marcas de ração
estrangeiras, que tanto subsidiavam clínicas veterinárias como escolas caninas,
no intuito de se instalarem no mercado, dando em simultâneo generosas margens
de lucro a criadores, revendedores e retalhistas. Na mesma altura aconteceu o
boom dos hotéis caninos e os mais variados serviços de pet sitting (inclusive
funerais).
Num abrir e fechar de
olhos, muitos praticantes das modalidades desportivas caninas tornaram-se
adestradores, mercê do mérito do seus cães ou da sua aprovação como figurantes
nas diferentes modalidades de guarda desportiva, razões pelas quais a actual
cinotécnica portuguesa tem um cariz essencialmente amador, mais desportivo que
utilitário e dado à má-língua (salve-se quem puder!). Começaram a chover
treinadores formados aos fins-de-semana e por correspondência, os primeiros
certificados por cursos baseados em filmes, apresentações e apostilas
sintéticas e os últimos por quem pouco ou nada lhes acrescentou. Lembrando o
que se passa na columbofilia, muitos treinadores amadores formaram outros a
troco de “cursos” bastante dispendiosos, independentemente da sua experiência e
qualidade prestativa. Entretanto, a GNR actualizou-se e capacitou os seus
binómios para um conjunto de serviços de utilidade pública (é possível que a
PSP tenha seguido o mesmo caminho), pondo assim a sua cinotecnia ao serviço da
população, esforço que se louva. Infelizmente, pelo que temos observado repetidas
vezes, falta obediência aos cães, traquejo e sentido policial aos seus
condutores, quando constituídos em binómios de patrulha ou como parte de forças
em parada. Também algumas corporações de bombeiros passaram a ter cães de
resgate e salvamento, uns formados cá e outros em Espanha. Com a abertura do
“Espaço Schengen”, treinadores profissionais e amadores doutros países europeus
têm vindo a Portugal ministrar cursos e trocar experiências.
Chegados ao Novo Milénio e
confrontados com a crise económica que se abateu sobre o País, que começou um
pouco antes da crise geral de 2008 e que nos deixou sem alternativa à
austeridade que tanto criticamos, deparamo-nos com uma cinotecnia civil maioritariamente
amadora e vocacionada para as modalidades desportivas, mais alicerçada no
Border Collie e no Malinois, raças que certamente marcarão este século como o
Pastor Alemão marcou o anterior. As escolas caninas têm agora menor frequência
que nos anos 90 e continuam mal apetrechadas de obstáculos e aparelhos
musculadores para os cães. A formação dos adestradores é cada vez mais ligeira
e o geral dos proprietários caninos julga-se capaz de educar os seus cães, sem
maiores conselhos ou ajudas, valendo-se somente da internet, de um bola ou
brinquedo (por vezes das actuações televisivas do Cesar Milan). O ensino dos
cães para terapia é pouco significativo e os destinados ao resgate e
salvamento, tanto terrestre como marítimo, são quase na totalidade pertença das
diferentes polícias. O princípio deste milénio marcou uma viragem na preferência
dos cães, que passaram a ser escolhidos pelo seu tamanho e consumo, sobrando
aqui toda a casta de cães miniatura, porque são mais económicos e geralmente
não dão problemas, o que os afasta também dos bons ofícios da cinotecnia. Como
sempre, não estamos a produzir novidade e continuamos a aguardar a erudição vinda da
estranja.
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