terça-feira, 18 de agosto de 2015

O SONHO DO LUPINO PORTUGUÊS E O PERRO LOBO MALLORCAN

Certa vez tivemos um sonho, lançámos mãos à obra e não chegámos a concluí-lo: o de criarmos a primeira raça lupina portuguesa, já que não temos nenhuma e a que mais se assemelha é o Cão de Castro Laboreiro, um molosso alupinado, que do ponto de vista cognitivo deixa muito a desejar, por via de menos valias sociais que dificultam a parceria e comprometem a cumplicidade, advindas do seu carácter instintivo, quiçá por ausência de uma verdadeira política de selecção. Sem exceptuar o Lobo Ibérico para o efeito, mas temendo os resultados alcançados por americanos, canadianos, checos, holandeses e italianos, quando cruzaram Pastores Alemães com diferentes lobos e alcançaram híbridos de menor valia que o Cão Alemão na sua origem e, conhecedores do trabalho desenvolvido em torno do Pastor de Shiloh, considerámos primeiro a hipótese de cruzar Pastores Alemães ou Huskies Siberianos com alguma raça portuguesa que servisse os nossos intentos. A opção pelo Pastor Alemão e pelo Husky ficou a dever-se às suas características somáticas, máquina sensorial, mecânica, índices atléticos, resistência, versatilidade, rusticidade, territorialidade e coeficiente de aprendizagem, porque já sabíamos que o Pastor Alemão é dominante na construção e os híbridos Husky absorvem dos outros progenitores aquilo que ele não tem para dar, facto que verificámos em caçadores de aves, coelhos e javalis. Temendo uma menor abrangência de serviços e uma maior mansidão, acabámos por dispensar o Husky, muito embora os seus híbridos se prestem de sobremaneira prà detecção de explosivos e como cães de resgate.
 Com o Lobo Ibérico de reserva, optámos pelo Pastor Alemão, faltando-nos escolher a raça lusa para o empreendimento. De imediato excluímos os grandes molossos nacionais: Castro Laboreiro, Rafeiro Alentejano e Serra da Estrela, apesar de os termos testado, o que para além de dispendioso foi óptimo, porque ficámos a saber muito mais sobre cada um deles. Para além de alguns desacertos morfológicos advindos da hibridação, tais como: garupa mais alta que a cernelha, dorso selado, pouca angulação de traseira e pernaltismo (entre outros), os híbridos de CPA/C. Laboreiro de 1ª geração revelaram-se manhosos e maldosos, sempre prontos a testar a liderança e a promover-lhe emboscadas, quando contrariados e desagradados, apesar de velozes e extraordinariamente resistentes. Os híbridos de 1ª geração de CPA/Rafeiro Alentejano, cuja distribuição da cor branca lembrava os “Shiloh Panda”, mostraram-se pouco solícitos, tendentes ao isolamento, e dados a rumo próprio, oscilando entre a extrema mansidão e um forte impulso ao poder. Tanto os híbridos de Castro Laboreiro como os de Rafeiro Alentejano, para além de atingirem pesos acima dos 45 kg, apresentavam-se maioritariamente bicolores e com tigrado nos membros. Os híbridos de 1ª geração de CPA/Serra da Estrela, maioritariamente uniformes e com grande variedade de cores, mostraram ser os mais activos, vigilantes e atletas, mas ao mesmo tempo os mais perigosos e com maiores problemas de controlo, peritos no ataque pela retaguarda e propensos a empinar-se nas confrontações, em tudo lembrando os problemas outrora encontrados nos “Eurasiers“. A somar a isto, resistiam ao trabalho sistemático, carregavam sem provocação e obedeciam com parcimónia. Importa esclarecer que procurávamos um lupino para guarda.
Convencidos das dificuldades e da morosidade de chegar a um lupino tipo pela contribuição dos molossos nacionais, porque usavam o reforço cognitivo para fim próprio, para a rebeldia e para o aumento da sua autonomia, optámos por atentar para as restantes raças portuguesas, experimentando previamente em treino cada uma delas para aquilatar das suas virtudes e defeitos, dando prioridade ao Serra de Aires e ao Cão de Água, uma vez que o uso do perdigueiro ainda mais retardaria morfologicamente o fim em vista. Os híbridos de CPA/Serra de Aires, portadores de uma capacidade de aprendizagem notável, extraordinariamente silenciosos e de uma elasticidade pouco vista, garantiam em maior número os exemplares bicolores, nomeadamente os preto-afogueados. Todavia, sofriam com os impactos ao solo na saída dos obstáculos mais duros, avisavam pouco, produziam ataques baixos e de surtida, acusavam em demasia os contra-ataques e esgueiravam-se das ordens debaixo de tensão, o que obrigaria ao concurso duma 3ª raça para aproveitar as suas mais-valias (a quase totalidade dos cachorros apresentava pelo crespo). Os híbridos de CPA/ Cão de Água mostraram-se, quando comparados com o Pastor Alemão na sua origem, pouco disponíveis, bonacheirões, barulhentos e extraordinariamente amistosos, com alguma falta de autonomia e pouco ou nada propensos a acções defensivas e ofensivas, para além de aumentarem a incidência de diferentes prognatismos e displasias, muito embora vissem melhorado o seu faro e atingissem velocidades estonteantes. Também eles obrigariam ao concurso duma 3ª raça ou ao reforço do Pastor Alemão na sua construção.
Renitentes ao uso do Canis lupus signatus, por razões que atrás adiantámos, virámo-nos finalmente para o Podengo Gigante e para o Fila de S. Miguel. Esclarecemos que desenvolvemos este esforço antes de Francis Collins e John Craig Venter terem descoberto a sequência do genoma humano, muito embora conhecêssemos, ainda que sucintamente, o resultado dos trabalhos de Francis Crick, James Watson e Maurice Wilkins relativos à descoberta da estrutura molecular do ADN. Apesar de convencidos do despropósito da hibridação CPA/Podengo para as nossas ambições, porque outros já o haviam experimentado sem grande sucesso, produzindo exemplares mais ricos em instintos do que em personalidade, contrariamente ao verificado no Pastor Alemão, optámos por repetir a experiência, valendo-nos de Podengos Grandes de pelo curto, isentos de remoinhos no manto e sem evidência da cor branca, temendo malhas dessa cor no crânio, no pescoço, membros e na ponta da cauda. Conforme esperávamos, da hibridação CPA/Podengo Grande, a somar à indesejável carga instintiva, resultaram exemplares ligeiramente mais pequenos que o CPA, quase todos vermelhos ou cor de corso, quadrados, de pelo crespo e orelhas erectas (exageradamente grandes). A hibridação CPA/Podengo Grande, ao invés de garantir a predominância do CPA, tende a regressar ao seu atavismo, gerando cães em tudo idênticos ao Pastor da Picardia (Picard) que estiveram na sua origem, razão pela qual grande número de mestiços de CPA com rafeiros são maioritariamente de cor vermelha.
Com o Podengo posto de parte, virámo-nos esperançados para o Cão de Fila de S. Miguel, escolhendo os exemplares maiores e provenientes dos lavradores açorianos, porque não nos interessava produzir o lupino mais pequeno das raças caninas e procurávamos porte, rusticidade, resistência, parceria e aptidão laboral. Da hibridação CPA/Fila de S. Miguel resultaram exemplares mais pequenos, mais leves, extremamente aguerridos, carentes de afincada sociabilização entre iguais, mais resistentes à dor, menos avisadores e mais atletas, que tendencialmente partiam da fixação para o ataque. Com 6/8 de CPA na sua construção, podemos garantir a eliminação das menos valias presentes nos híbridos de 1ª geração, mas dificilmente conseguimos suprimir o seu carácter anti-social e a natureza imprevisível dos seus ataques. Em todas as raças portuguesas usadas e testadas, a incidência de displasia coxo-femoral fez-se presente, porque naquele tempo o despiste da displasia era pouco considerado. Por razões várias, apontando a maior para a falta de suporte económico, deixámos o nosso sonho a meio, sabendo que através do Fia de S. Miguel era fazível, porque o cão açoriano é uma mais-valia e o único entre os nossos que se presta cabalmente como guardião, apesar de não sabermos por quanto tempo, considerando as “mexidas” de que tem sido alvo e que o têm transformado num mero cão de bamboleio.
Eis-nos chegados ao Lobo Ibérico (Canis lupus signatus), uma subespécie do Lobo Cinzento, cada vez menos visto em Portugal. Mentiríamos se disséssemos que não o experimentámos no nosso projecto, o que aconteceu em duas ocasiões, quando cruzámos uma CPA de nome “Seixa da Ajuda - P” com um Lobo Ibérico em cativeiro numa instituição estatal a que tivemos acesso na altura, correndo o risco de perdermos a fêmea pela diferença dos rituais de acasalamento entre as duas espécies (sempre será mais fácil e menos perigoso cruzar um cão com uma loba). Caso não houvéssemos tido essa oportunidade, acabaríamos por comprar um filhote de “signatus” no Noroeste de Espanha, que na altura custava o equivalente a 400€. Produzimos um total de 14 híbridos, sendo o “Kali” o mais famoso (por vezes tratado por “ILAK”), apesar do seu adestramento não se ter revelado fácil pelo grau de dominância que patenteava. Desta hibridação Lobo Ibérico/CPA, 80% dos filhotes nasceram Lobeiros e 20% preto-afogueados, sendo que os primeiros, apesar do dimorfismo sexual, vieram a ser maiores. A definição da cor nos lobeiros aconteceu mais tarde, permanecendo cinzentos uniformes até aos 5 meses de idade. Estes híbridos, quando comparados com o Pastor Alemão, alcançaram as suas maturidades substancialmente mais tarde, não se manifestando em nenhum deles qualquer tipo de apelo atávico-silvestre. Do ponto de vista morfológico e à primeira vista, somente debaixo de suspeita se concluiria tratarem-se de híbridos, já que eram em tudo idênticos ao CPA, muito embora a expressão, disposição e cor dos olhos, a possível isenção de máscara no focinho, o tamanho e disposição das orelhas, o comprimento das presas, o ventre arregaçado e o comprimento da cauda pudessem eventualmente denunciar alguns.
Para dissipar quaisquer dúvidas, nenhum destes híbridos sorvia ao beber água e acompanhámos todos até ao seu final, cuja média de esperança de vida foi de catorze anos e meio, vivendo uma fêmea mais 18 meses para além disso (16 anos). Dos 14 exemplares nascidos nas duas ninhadas somente 4 vieram a ser treinados de modo convencional, 3 por tratadores da GNR e 1 pelo Sr. Filipe Pereira, por sinal todos machos, lobeiros, acima dos 70 cm de altura, para lá dos 40 kg e com um perímetro torácico acima dos 90cm (todos os treinadores contratados ignoravam ter em mãos híbridos de Lobo, porque essa informação não lhes foi adiantada na altura). Os restantes híbridos acabaram por guardar quintas e logradouros. Alguns deles vieram a reproduzir-se com Pastores Alemães e geraram proles saudáveis, valentes, resistentes, bastante interactivas, multifacetadas, protectoras e com maior esperança de vida. Os descendentes do “Signatus” mostraram-se livres de displasia, insuficiência pancreática exócrina, mielopatia, nanismo e demais achaques tornados hereditários no Pastor Alemão. Nenhuma das diversas linhas de Pastores Alemães da Acendura Brava viria a sofrer infusão de Lobo Ibérico, mas todas elas lucraram com o conhecimento que obtivemos dele. Desenvolvemos este trabalho 3 anos antes da criação do Centro de Recuperação do Lobo Ibérico (CRLI) e não o continuámos para não comprometermos ainda mais a sobrevivência do nosso Lobo (que continua ameaçada), pela hibridação sistemática na procura das suas mais-valias.
Os híbridos de 1ª geração de CPA/Lobo Ibérico adaptam-se bem e depressa ao treino, não apresentando dificuldades específicas ou acrescidas, porque não são atormentados pela timidez ou desconfiança presente noutros híbridos, como é o caso do Saarloos Wolfdog, nem atrapalhados pelo avassalador impulso ao poder visível nalguns Lobos-Checos, dados a rumo próprio e manifestamente anti-sociais. Como acompanhámos em cativeiro o crescimento de duas ninhadas de lobos signatus, estamos convencidos que o Lobo Ibérico é fácil de ser treinado como um cão, apesar de mais efusivo nas suas manifestações de carinho, quando acompanhado desde tenra idade, convidado para a coabitação e adestrado a partir dos 7/8 meses de idade, altura em que os filhotes seguem a alcateia em excursão. Alimentá-lo também não é difícil e pode transitar para a ração pela sua tendência necrófaga. De qualquer modo, o seu treino só se justificaria quando esgotadas todas as hipóteses válidas prà sua sobrevivência, pois há que respeitá-lo tal qual é e como subespécie única, apesar da sua continuidade depender da adaptação de que for capaz. Sobre este tema, o do uso do Lobo Ibérico para a obtenção de cães-lobos, vale a pena consultar: http://www.mallorcan.es/como-nacio-el-perro-lobo-iberico-de-mallorcan/ , para ficarmos a saber o que já se faz nesta matéria na vizinha Espanha.
 Nunca foi nossa opção chegar ao lupino português através do Lobo e só usaríamos o Canis lupus signatus em último caso e na ausência de outras soluções. Pelo que experimentámos e podemos comprovar, a melhor opção para a criação de um lupino português para guarda, a partir das raças caninas nacionais existentes, aponta claramente para o Cão de Fila de S. Miguel, quando cruzado com o Cão de Pastor Alemão. Alguém poderá questionar: ao invés do CPA, não nos poderíamos valer do Malinois para o mesmo efeito?” Sem dúvida, desde que por cá abunde gente apta para travar esses híbridos! Para nós, a fronteira entre o CPA e o Malinois é muito ténue e reside no controlo das acções, porque o primeiro obedece em qualquer circunstância e o segundo carece de circunstâncias favoráveis. Como deixámos o nosso sonho a meio, esperamos que os mais novos o concretizem. E mesmo que não o venham a realizar, por se tornar obsoleto ou sem sentido, ficar-lhe-emos na mesma gratos se melhorarem as raças que hoje temos, mediante uma nova política de selecção que as leve a uma maior abrangência de serviços, uma vez que o seu préstimo mantem-se reduzido.

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