Certa vez tivemos um
sonho, lançámos mãos à obra e não chegámos a concluí-lo: o de criarmos a
primeira raça lupina portuguesa, já que não temos nenhuma e a que mais se
assemelha é o Cão de Castro Laboreiro, um molosso alupinado, que do ponto de
vista cognitivo deixa muito a desejar, por via de menos valias sociais que
dificultam a parceria e comprometem a cumplicidade, advindas do seu carácter
instintivo, quiçá por ausência de uma verdadeira política de selecção. Sem
exceptuar o Lobo Ibérico para o efeito, mas temendo os resultados alcançados
por americanos, canadianos, checos, holandeses e italianos, quando cruzaram
Pastores Alemães com diferentes lobos e alcançaram híbridos de menor valia que
o Cão Alemão na sua origem e, conhecedores do trabalho desenvolvido em torno do
Pastor de Shiloh, considerámos primeiro a hipótese de cruzar Pastores Alemães
ou Huskies Siberianos com alguma raça portuguesa que servisse os nossos
intentos. A opção pelo Pastor Alemão e pelo Husky ficou a dever-se às suas
características somáticas, máquina sensorial, mecânica, índices atléticos,
resistência, versatilidade, rusticidade, territorialidade e coeficiente de
aprendizagem, porque já sabíamos que o Pastor Alemão é dominante na construção
e os híbridos Husky absorvem dos outros progenitores aquilo que ele não tem
para dar, facto que verificámos em caçadores de aves, coelhos e javalis.
Temendo uma menor abrangência de serviços e uma maior mansidão, acabámos por
dispensar o Husky, muito embora os seus híbridos se prestem de sobremaneira prà
detecção de explosivos e como cães de resgate.
Convencidos das
dificuldades e da morosidade de chegar a um lupino tipo pela contribuição dos
molossos nacionais, porque usavam o reforço cognitivo para fim próprio, para a
rebeldia e para o aumento da sua autonomia, optámos por atentar para as
restantes raças portuguesas, experimentando previamente em treino cada uma
delas para aquilatar das suas virtudes e defeitos, dando prioridade ao Serra de
Aires e ao Cão de Água, uma vez que o uso do perdigueiro ainda mais retardaria
morfologicamente o fim em vista. Os
híbridos de CPA/Serra de Aires, portadores de uma capacidade de
aprendizagem notável, extraordinariamente silenciosos e de uma elasticidade
pouco vista, garantiam em maior número os exemplares bicolores, nomeadamente os
preto-afogueados. Todavia, sofriam com os impactos ao solo na saída dos
obstáculos mais duros, avisavam pouco, produziam ataques baixos e de surtida,
acusavam em demasia os contra-ataques e esgueiravam-se das ordens debaixo de
tensão, o que obrigaria ao concurso duma 3ª raça para aproveitar as suas
mais-valias (a quase totalidade dos cachorros apresentava pelo crespo). Os híbridos de CPA/ Cão de Água
mostraram-se, quando comparados com o Pastor Alemão na sua origem, pouco
disponíveis, bonacheirões, barulhentos e extraordinariamente amistosos, com
alguma falta de autonomia e pouco ou nada propensos a acções defensivas e
ofensivas, para além de aumentarem a incidência de diferentes prognatismos e displasias,
muito embora vissem melhorado o seu faro e atingissem velocidades estonteantes.
Também eles obrigariam ao concurso duma 3ª raça ou ao reforço do Pastor Alemão
na sua construção.
Renitentes ao uso do Canis
lupus signatus, por razões que atrás adiantámos, virámo-nos finalmente para o
Podengo Gigante e para o Fila de S. Miguel. Esclarecemos que desenvolvemos este
esforço antes de Francis Collins e John Craig Venter terem descoberto a
sequência do genoma humano, muito embora conhecêssemos, ainda que sucintamente,
o resultado dos trabalhos de Francis Crick, James Watson e Maurice Wilkins
relativos à descoberta da estrutura molecular do ADN. Apesar de convencidos do
despropósito da hibridação CPA/Podengo para as nossas ambições, porque outros
já o haviam experimentado sem grande sucesso, produzindo exemplares mais ricos
em instintos do que em personalidade, contrariamente ao verificado no Pastor
Alemão, optámos por repetir a experiência, valendo-nos de Podengos Grandes de
pelo curto, isentos de remoinhos no manto e sem evidência da cor branca,
temendo malhas dessa cor no crânio, no pescoço, membros e na ponta da cauda.
Conforme esperávamos, da hibridação
CPA/Podengo Grande, a somar à indesejável carga instintiva, resultaram
exemplares ligeiramente mais pequenos que o CPA, quase todos vermelhos ou cor
de corso, quadrados, de pelo crespo e orelhas erectas (exageradamente grandes). A
hibridação CPA/Podengo Grande, ao invés de garantir a predominância do CPA,
tende a regressar ao seu atavismo, gerando cães em tudo idênticos ao Pastor da
Picardia (Picard) que estiveram na sua origem, razão pela qual grande número de
mestiços de CPA com rafeiros são maioritariamente de cor vermelha.
Com o Podengo posto de
parte, virámo-nos esperançados para o Cão de Fila de S. Miguel, escolhendo os
exemplares maiores e provenientes dos lavradores açorianos, porque não nos
interessava produzir o lupino mais pequeno das raças caninas e procurávamos
porte, rusticidade, resistência, parceria e aptidão laboral. Da hibridação CPA/Fila de S. Miguel
resultaram exemplares mais pequenos, mais leves, extremamente aguerridos,
carentes de afincada sociabilização entre iguais, mais resistentes à dor, menos
avisadores e mais atletas, que tendencialmente partiam da fixação para o
ataque. Com 6/8 de CPA na sua construção, podemos garantir a eliminação das
menos valias presentes nos híbridos de 1ª geração, mas dificilmente conseguimos
suprimir o seu carácter anti-social e a natureza imprevisível dos seus ataques.
Em todas as raças portuguesas usadas e testadas, a incidência de displasia
coxo-femoral fez-se presente, porque naquele tempo o despiste da displasia era
pouco considerado. Por razões várias, apontando a maior para a falta de suporte
económico, deixámos o nosso sonho a meio, sabendo que através do Fia de S.
Miguel era fazível, porque o cão açoriano é uma mais-valia e o único entre os
nossos que se presta cabalmente como guardião, apesar de não sabermos por quanto
tempo, considerando as “mexidas” de que tem sido alvo e que o têm transformado
num mero cão de bamboleio.
Eis-nos chegados ao Lobo
Ibérico (Canis lupus signatus), uma subespécie do Lobo Cinzento, cada vez menos
visto em Portugal. Mentiríamos se disséssemos que não o experimentámos no nosso
projecto, o que aconteceu em duas ocasiões, quando cruzámos uma CPA de nome
“Seixa da Ajuda - P” com um Lobo Ibérico em cativeiro numa instituição estatal
a que tivemos acesso na altura, correndo o risco de perdermos a fêmea pela
diferença dos rituais de acasalamento entre as duas espécies (sempre será mais
fácil e menos perigoso cruzar um cão com uma loba). Caso não houvéssemos tido
essa oportunidade, acabaríamos por comprar um filhote de “signatus” no Noroeste
de Espanha, que na altura custava o equivalente a 400€. Produzimos um total de
14 híbridos, sendo o “Kali” o mais famoso (por vezes tratado por “ILAK”),
apesar do seu adestramento não se ter revelado fácil pelo grau de dominância
que patenteava. Desta hibridação Lobo
Ibérico/CPA, 80% dos filhotes nasceram Lobeiros e 20% preto-afogueados,
sendo que os primeiros, apesar do dimorfismo sexual, vieram a ser maiores. A
definição da cor nos lobeiros aconteceu mais tarde, permanecendo cinzentos uniformes
até aos 5 meses de idade. Estes híbridos, quando comparados com o Pastor
Alemão, alcançaram as suas maturidades substancialmente mais tarde, não se
manifestando em nenhum deles qualquer tipo de apelo atávico-silvestre. Do ponto
de vista morfológico e à primeira vista, somente debaixo de suspeita se
concluiria tratarem-se de híbridos, já que eram em tudo idênticos ao CPA, muito
embora a expressão, disposição e cor dos olhos, a possível isenção de máscara
no focinho, o tamanho e disposição das orelhas, o comprimento das presas, o
ventre arregaçado e o comprimento da cauda pudessem eventualmente denunciar
alguns.
Para dissipar quaisquer
dúvidas, nenhum destes híbridos sorvia ao beber água e acompanhámos todos até
ao seu final, cuja média de esperança de vida foi de catorze anos e meio,
vivendo uma fêmea mais 18 meses para além disso (16 anos). Dos 14 exemplares
nascidos nas duas ninhadas somente 4 vieram a ser treinados de modo
convencional, 3 por tratadores da GNR e 1 pelo Sr. Filipe Pereira, por sinal
todos machos, lobeiros, acima dos 70 cm de altura, para lá dos 40 kg e com um
perímetro torácico acima dos 90cm (todos os treinadores contratados ignoravam
ter em mãos híbridos de Lobo, porque essa informação não lhes foi adiantada na
altura). Os restantes híbridos acabaram por guardar quintas e logradouros.
Alguns deles vieram a reproduzir-se com Pastores Alemães e geraram proles
saudáveis, valentes, resistentes, bastante interactivas, multifacetadas,
protectoras e com maior esperança de vida. Os descendentes do “Signatus”
mostraram-se livres de displasia, insuficiência pancreática exócrina,
mielopatia, nanismo e demais achaques tornados hereditários no Pastor Alemão. Nenhuma
das diversas linhas de Pastores Alemães da Acendura Brava viria a sofrer
infusão de Lobo Ibérico, mas todas elas lucraram com o conhecimento que
obtivemos dele. Desenvolvemos este trabalho 3 anos antes da criação do Centro
de Recuperação do Lobo Ibérico (CRLI) e não o continuámos para não
comprometermos ainda mais a sobrevivência do nosso Lobo (que continua ameaçada),
pela hibridação sistemática na procura das suas mais-valias.
Os híbridos de 1ª geração de CPA/Lobo Ibérico
adaptam-se bem e depressa ao treino, não apresentando dificuldades específicas
ou acrescidas, porque não são atormentados pela timidez ou desconfiança
presente noutros híbridos, como é o caso do Saarloos Wolfdog, nem atrapalhados
pelo avassalador impulso ao poder visível nalguns Lobos-Checos, dados a rumo
próprio e manifestamente anti-sociais. Como acompanhámos em cativeiro o
crescimento de duas ninhadas de lobos signatus, estamos convencidos que o Lobo
Ibérico é fácil de ser treinado como um cão, apesar de mais efusivo nas suas
manifestações de carinho, quando acompanhado desde tenra idade, convidado para
a coabitação e adestrado a partir dos 7/8 meses de idade, altura em que os
filhotes seguem a alcateia em excursão. Alimentá-lo também não é difícil e pode
transitar para a ração pela sua tendência necrófaga. De qualquer modo, o seu
treino só se justificaria quando esgotadas todas as hipóteses válidas prà sua
sobrevivência, pois há que respeitá-lo tal qual é e como subespécie única,
apesar da sua continuidade depender da adaptação de que for capaz. Sobre este
tema, o do uso do Lobo Ibérico para a obtenção de cães-lobos, vale a pena
consultar: http://www.mallorcan.es/como-nacio-el-perro-lobo-iberico-de-mallorcan/
, para ficarmos a saber o que já se faz nesta matéria na vizinha Espanha.
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