É possível que a resposta
a esta pergunta tenha sido uma das causas que nos trouxe para o mundo da
cinotecnia, porque em nenhum animal a fidelidade ao dono é tão visível e
natural como no cão. Não temos dúvida nenhuma que esta qualidade é advinda da
convivência e que quando maior for a coabitação entre homens e cães, maior será
também a dedicação dos animais, porque ao serem territoriais, não nasceram para
estar sós e procuram avidamente a segurança que o grupo lhes oferece. Também
sabemos que o grau de fidelidade canina difere de indivíduo para indivíduo e
que os mais ricos em personalidade estabelecem vínculos afectivos mais
profundos que os dominados pelos instintos, o que torna único cada
relacionamento homem-cão. A protecção e o socorro dispensados aos cães pelos
donos, ao aumentar-lhes a segurança, levam-nos a confiar cada vez mais nos seus
líderes e a agradar-lhes, porque são gratos e buscam aprovação. Para além
destes aspectos, a fidelidade canina resulta do entendimento recíproco com os
donos, que numa fase mais esmerada poderá até dispensar as palavras e acontecer
somente pela leitura das expressões mímicas duns e doutros, apesar do cérebro
dos cães ser capaz de reagir às palavras da mesma forma que o cérebro humano, o
que torna a fidelidade canina também sustentada pela genética comum.
Quanto mais próximo,
interactivo, profundo e exclusivo for o relacionamento do dono com o cão, maior
será a fidelidade do animal e esta jamais sucederá plenamente se não houver
entre ambos um inequívoco entendimento mútuo, o que nos transporta para a
triste figura de alguns adestradores (também de alguns donos), que na
impossibilidade de compreenderem e de se fazerem compreender pelos cães, acabam
por rotulá-los de imprestáveis ou impróprios, quando a maior das impropriedades
habita neles e não nos animais que pretendem ensinar. Para todos os efeitos, um
adestrador é um actor e um fingidor, alguém capaz de se desnudar ou
transfigurar para melhor compreender e ser compreendido, valendo-se para isso
de posturas e tons de voz cuja carga emocional seja capaz de romper as
barreiras de comunicação com os seus pupilos e alcançar deles a resposta
esperada. E se os cães não dispensam e vivem de rituais, então o adestramento
deverá constituir-se num conjunto deles de fácil compreensão e assimilação para
os animais. Sempre que tocamos neste assunto, vêm-nos à memória um nosso
colaborador do passado, o Sr. N.F. Santos Silva, que dizia ser a “estaleca” a
responsável pelos melhores resultados obtidos por certos adestradores usando o
mesmo método de outros. E nisto tinha razão, se entendermos “estaleca” como
sinónimo de ânimo, já que as palavras "ânimo" (animus) e
"alma" (anima) têm a mesma raiz etimológica, dependendo uma da outra
para tudo. Será possível animar sem alma e uma alma não ter ânimo?
Para além das razões
genéticas, ambientais e das atribuídas ao condicionamento ou das decorrentes da
disciplina e das regras, a fidelidade canina estabelece-se na comunhão das
emoções que desnudam os sentimentos comuns a homens e cães (assim também
comunicamos com os bebés). E quando acontece essa fusão emocional, qualquer
dono torna-se insubstituível, ao ponto do cão permanecer junto à sua tumba por
anos a fio, na esperança de o ver ressurgir. A fidelidade de um cão não se
alcança gratuitamente nem resulta do seu esforço isolado, mas da entrega do
dono que tudo faz para que ele se sinta bem a seu lado, até serem unha com
carne ou farinha do mesmo saco. Como não se pode dissociar a fidelidade canina
da afeição pelo dono, podemos dizer que ela resulta ou é fruto do amor, verdade
que pode também ser comprovada pela sua isenção, uma vez que os donos menos
disponíveis e mais superficiais tendem a possuir cães velhacos e prontos a
mandá-los bugiar e, se esta atitude reflexa coubesse só aos cães, não viriam
maiores males a este mundo!
Alegoricamente falando,
cada cão tem dentro de si a semente da fidelidade, intrinsecamente ligada ao
seu bem-estar, que jamais germinará e desabrochará sem o auxílio dos donos,
porque é reflexo e prémio de quem primeiro amou e nisso se manteve. Para o bem
e para o mal; para o melhor e para o pior, como tantas vezes temos visto,
ouvido e experimentado, os cães são reflexo dos seus líderes (por vezes da sua
impropriedade e desleixo), espelham sempre o seu cuidado, completando-os ou
desnudando-os, abandonando-os ou seguindo-os por toda a parte. A que deve a
fidelidade canina? Aos donos que a alcançaram e mereceram! Está redondamente
enganado aquele que pensa ser o adestramento unicamente para os cães! Quem não
quer ou não sabe amar, em vão esperará a fidelidade de quem o acompanha, porque
vã é também a disciplina diante da afeição. E porque temos experimentado a
fidelidade canina, desafiamos os nossos leitores a procurá-la, convidando-os
para a humildade que possibilitará o melhor entendimento com os seus cães e que
viabilizará o namoro interespécies. A fidelidade canina resulta da felicidade
que poucos donos sabem garantir e perpetuar, porque só a experiência do bem
aguentará toda a sorte de desaires, já que os cães vivem de acordo com a
experiência que têm.
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