Como este tema é delicado e muito abrangente, somos obrigados a tratá-lo
sinteticamente, prometendo, caso a vida nos permita, retomá-lo com maior pormenor
e fundamento, de preferência quando o ISIL for finalmente dominado e
amordaçado, porque somos contra qualquer tipo de califado do terror e não
queremos contribuir para o aumento dos seus recrutas, até porque sabemos como a
religião tem servido de pretexto para os crimes mais atrozes contra a
humanidade e de escudo para um sem número de facínoras e terroristas ao longo
dos séculos na procura de poder e de riqueza. De qualquer forma, a história do
Al-Andalus, da Espanha Muçulmana, carece de ser recontada por respeito à
verdade, à sua erudição e legado, porque nela o Ocidente encontrou-se com o
Oriente e originou o Renascimento, mercê do intercâmbio cultural entre as três
maiores religiões monoteístas. Separar os “Descobrimentos” do Al-Andalus é como
negar o aproveitamento da riqueza dos Templários nas “Descobertas”, porque ele
serviu de base científica para darmos novos mundos ao Mundo.
Desde que o Homem se tornou
sedentário e se dedicou à agricultura, a canicultura sempre a acompanhou. E se
muito do nosso modo de cultivar é uma herança dos árabes, então somos obrigados
a reconhecer a sua contribuição para a nossa canicultura e sobrevivência dos
nossos cães, assim como para a preservação dos nossos cavalos, cuja contribuição
e continuação berbere ninguém pode negar. Por vezes o Estreito de Gibraltar
parece-nos longínquo e distante, quando na verdade apenas 14km de mar separam a
Península Ibérica do Norte de África, menos 3.3km que a extensão da Ponte Vasco
da Gama que liga Lisboa/Sacavém a Alcochete e ao Montijo. Será que passados 523
anos após a queda do Reino de Granada, que não acabou com os mouros na
Península, nada restou dos ensinamentos divulgados em Córdoba? Que o saber de Eb-Ebb-Albeithar
não se enraizou no modo de tratar e curar os animais? Será unicamente a
toponímia o remanescente da cultura andalus entre nós?
É evidente que tanto pelo sangue como pela cultura a Espanha muçulmana
permanece entre nós. Recentemente, investigadores do Instituto Nacional de
Saúde Dr. Ricardo Jorge, publicaram os resultados dum estudo genético relativo
à origem dos portugueses, concluindo que, por via parental (através do
cromossoma Y), 30% dos homens portugueses são de origem não ibérica, sendo 20%
deles descendentes de judeus sefarditas e 10% de ascendência norte-africana
(moura e berbere), o que implica em dizer que a cultura do Califado de Córdoba
e a herança de Granada são algo intrínseco em alguns de nós e foram perpetuadas
maioritariamente pelos judeus, que na altura do Reino do Al-Andalus eram mais
numerosos em Lisboa que os muçulmanos e cristãos. Esta herança genética
conservou e transportou até aos nossos dias comportamentos, tradições e hábitos
peculiares em determinadas populações e áreas geográficas do País, apesar da
maioria desses indivíduos desconhecer a origem dos seus perceitos e
comportamento peculiares.
No que à canicultura diz
respeito, esse saber secular instalou-se na pastorícia e na caça,
reflectindo-se nas dietas a dar aos cães, na sua selecção, reprodução, modo de
tratamento, cura dos seus achaques e tipos de treino. O termo “alveitar”, que
designava a pessoa credenciada de alguma forma para tratar dos animais (não
raramente pela qualidade do mestre que teve e pelos resultados obtidos), veio
pouco a pouco a ser substituído por “entendido”, sendo normalmente um ferrador,
que também se prestava como parteiro e capador (podia também ser barbeiro).
Durante muitos séculos coube aos pastores ensinar os cães de caça dos seus
senhores, vindo mais tarde os melhores, já nos finais do séc. XIX e alvores do
séc. XX, a ser aceites como “perreros” ou “monteiros”. O conhecimento transmitido
oralmente e o adquirido ao longo de gerações através do contacto próximo com os
cães, transformou-os em almanaques vivos, ensinou-os a considerar o calendário
lunar para o cálculo dos partos e a valerem-se da homeopatia para a cura de várias
doenças, valendo em simultâneo a pessoas e animais.
O perfeito conhecimento
dos ecossistemas ao seu redor e a compreensão do relógio biológico, adquiridos
também pela observação das reacções dos seus cães, que os avisavam da
proximidade de tormentas ou algo anómalo, levaram estas gentes a um
entendimento profundo com os animais, tornando-os bons leitores
das suas reacções, mímica e expressões faciais. Inevitavelmente, galegos,
beirões e alentejanos viriam no século passado a trocar o bordão de pastor pela
farda de tratadores cinotécnicos, onde foram igualmente bem-sucedidos e os seus
méritos reconhecidos. Por detrás de tudo isto está a herança do Al-Andaluz, a
tolerância e a convivência pacífica que garantiu a árabes, cristãos e judeus, o
estudo e desenvolvimento das diversas artes e ciências encetadas pelos antigos
clássicos, momento histórico que infelizmente tarda em repetir-se.
Para se ter uma dimensão mais exacta da importância do Al-Andalus prá Península
Ibérica no seu todo e para o mundo de então, aconselhamos os nossos leitores a
assistirem ao vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=Av0MCGVcBeM
, com o título “Quando os Mouros Dominaram a Europa”.
Bem sabemos que quando somos obrigados a slogans como “não ao racismo” ou “somos
todos iguais”, que há muita gente que não os aceita, porque doutro modo não
necessitaríamos deles para nada. Contudo, já tarda a hora de portugueses e
espanhóis fazerem as pazes consigo próprios, de deixarem de se acabrunhar pelo
que são e reconhecerem as suas origens, verdade que Filipe III de Espanha e II
de Portugal se negou a aceitar, quando decretou a expulsão de todos os
Mouriscos, a 9 de Abril de 1609, mais por temer a chacota de ter súbditos
árabes e judeus que por puro fervor religioso. Sim, na génese da nossa
canicultura, como em tantas áreas da nossa vida, sobressai em parte uma herança
da Espanha Muçulmana, que por estranho que pareça, até pode ser judia! E se tanto a expulsão dos árabes como a dos judeus são indicadas como causas para o declínio das nações ibéricas, o fim da Espanha Muçulmana acabou por relegar o islamismo para os confins da história, onde o isolamento continua a ser pesado e a erudição não aflora.
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