sexta-feira, 16 de maio de 2014

PRETO-AFOGUEADO E LOBEIRO: DOIS IRMÃOS DE COSTAS VIRADAS!

Bem que poderíamos servir-nos da “História de Caim e Abel” como introdução a este artigo, mas como o José Saramago tinha uma especial predilecção por ela, ao ponto da interpretar mesmo não sendo um exegeta, fiquemos com a imagem de dois irmãos de costas viradas para explicar as diferenças entre estas duas variedades cromáticas presentes no Cão de Pastor Alemão, criadas em paralelo, eventualmente acopuladas e diametralmente opostas, considerando o tipo de eugenia por detrás de cada uma delas e os seus reflexos para a raça, na inevitável avaliação do seu passado, presente e perspectivas de futuro, segundo a marcha do tempo e as diferentes filosofias que politicamente acompanharam o “Cão de Stephanitz” até aos dias de hoje, nem sempre coincidentes ou decorrentes do seu propósito original. Em simultâneo, desnudaremos as soluções agora mais em voga e a sua validade, sabendo-se que o Cão de Pastor Alemão está enfermo e menos apto, o que tem diminuído a sua popularidade e interesse, levando alguns criadores oficiais a vender cachorros a 1/3 do valor de outrora, flagelo de que a actual crise não é a única responsável nem tão pouco a maior das suas causas.
Toda a gente sabe que o CPA nasceu debaixo dos auspícios científicos da escola britânica, que os escritos de Darwin e Galton influenciaram de sobremaneira os criadores que fundaram a raça, fazendo-a nascer e proliferar pela eugenia positiva, signo que imediatamente transformou este cão num auxiliar de e para o trabalho, princípio tantas vezes repetido por quem o idealizou e criou, mas que apesar disso continua lamentavelmente a ser desconsiderado, já que a validade laboral do Pastor Alemão nunca foi tão posta em causa como actualmente, mercê da exagerada endogamia que mais enraizou defeitos do que qualidades, ao ponto de, aqui e ali, se levantar o espectro da hibridação, o que já aconteceu. A troca de eugenias na selecção da raça, como não poderia deixar de ser, começa com a pressão dos nazis, que adeptos do “seu” arianismo, o fizeram estender também ao Pastor Alemão, achaque que culminou com a expulsão dos cães brancos. Depois da II Guerra Mundial, de uma maior sensibilização sobre os direitos dos animais e da perca progressiva de atribuições militares, o Pastor Alemão tornou-se cão-polícia e também nessas funções se destacou. Gradualmente a biodiversidade da raça foi-se perdendo, graças a opção castradora pela variedade preto-afogueada, que culminou com os cães de beleza, modelos díspares dos seus protótipos, de utilidade duvidosa e incapazes de devolver à raça as mais-valias que sempre a caracterizaram.
Entre o actual preto-afogueado e o ancestral lobeiro grandes são as diferenças, porque o primeiro separa, oculta, tira, prende e sobrecarrega, ao contrário do outro que une, revela, dá, alivia e liberta. Ao tornar-se variedade de eleição, mais numerosa e dominante na raça, o preto-afogueado oculta as variedades ancestrais, sonega a qualidade laboral, estagna-se em si própria e sobrecarrega a endogamia, como se a cor fosse o que mais implicasse na qualidade dos cães. Já o lobeiro estabelece a ponte entre o passado e o presente, revela na sua construção a indispensável biodiversidade, une e transporta as diferentes variedades cromáticas, alivia a consanguinidade e liberta os cães dos malefícios da endogamia, devolvendo-lhes as aptidões que desde sempre os destacaram. O actual preto afogueado é um “no place to go”, um “Ende der Zeile”, porque se encontra estagnado e não consegue sair donde está, a menos que dois ou mais exemplares dessa variedade se tornem recessivos noutra e cruzem entre si, o que não nos garantirá, em absoluto, a qualidade das variedades cromáticas ocultas por causa da dominância até aqui operada.
A precariedade do preto-afogueado há muito que é reconhecida e não é por acaso que hoje se assiste ao advento dos lobeiros, uns incólumes e advindos da eugenia positiva que o trabalhou seleccionou e outros salpicados da eugenia negativa que produziu o preto-afogueado actual, baseada na exclusividade da cor e nas delícias estéticas, a despeito do equilíbrio dos cães (físico e psicológico), à revelia da selecção natural, contra a perpetuação da raça e a sua evolução. Tudo isto tem contribuído para a sua falência, facto comprovado pela diminuição das suas ninhadas e pelo aumento dos criadores doutras variedades cromáticas, que como era de esperar, não cessa de aumentar, ainda que aqui tenha acontecido tardiamente, ao que não é alheio o menor número de classes de trabalho. Basear uma raça numa variedade bicolor isoladamente e só nisso, é remetê-la para os instintos, legar-lhe inquietude, insegurança e ansiedade, conservar-lhe a desconfiança predadora e comprometer a cumplicidade, pois assim acontece com o lobo e outros canídeos selvagens, que necessitam de camuflagem para perpetrarem ataques de surpresa. Afortunadamente, talvez com alguns votos contra, alguém conseguiu segurar os negros e os lobeiros dentro do estalão até hoje, caso contrário, o Cão de Pastor Alemão estaria irremediavelmente perdido. Terá sido o histórico da raça que os manteve? É bem possível!
Também os lobeiros não se sustentariam sem a contribuição dos negros, apesar da sua excelente máquina sensorial, porque exigem dietas mais ricas e variadas, tardam em se afirmar, delongam na cumplicidade e por tendência ou são pequenos ou pernaltos, perdendo com isso dissuasão, o que para companhias militares ou policiais seria impróprio ou caricato, já que desfilar com um “esganarelo” ou um “baixinho” seria no mínimo hilariante. A criação isolada de negros, erro em que alguns persistem, à imitação do que acontece no preto-afogueado, passadas duas gerações, legará à sua prole exemplares carentes de crânio e ossatura, o que tem obrigado esses teimosos à aquisição sistemática de novos cães e ao aumento das suas despesas para garantirem nas suas hostes a envergadura que a raça exige. O beneficiamento histórico para o trabalho sempre resultou da junção do lobeiro com o negro e hoje, algumas décadas depois e por necessidade, retornou e em força, sendo mais numeroso do que os beneficiamentos operados entre o preto-afogueado com o lobeiro ou com o negro, apesar de melhor servir à variedade unicolor a contribuição do preto-afogueado, como tantas vezes experimentámos, fomos bem sucedidos e recomendámos, muito embora os exemplares usados dessa variedade fossem descendentes de lobeiros e raramente tivessem alguma ascendência na mais recente linha estética.
Diz-se que “há males que vêm por bem” e isso aconteceu com os lobeiros, que desprezados pelos criadores dos preto-afogueados, viram-se obrigados durante décadas ao beneficiamento com outras variedades cromáticas originais, umas ainda aceites pelo actual estalão e outras somente admitidas nalguns países, maioritariamente recessivas, todas elas seleccionadas a partir do trabalho, a quem ficaram a dever a sobrevivência e a continuidade, exemplares azuis (cinzentos), brancos, cor de fígado, negros e vermelhos, possibilitando assim a perpetuação dessas variedades unicolores e alcançando para si 18 tonalidades de manto diferentes. Esse “virar de costas” acabou por estabelecer a separação entre as ditas linhas de trabalho e de beleza, a diferenciação a grosso modo entre “linha antiga” e “linha moderna”, como é costume ouvir-se por aqui. A contribuição dessas variedades unicolores acabou por dotar os lobeiros de maior autonomia funcional, mais firmeza e melhor parceria, consoante a participação dos brancos, vermelhos e negros, desde que equilibrados de carácter e sem qualquer insuficiência física. Disso conhecedores, ainda que timidamente, alguns criadores de beleza começaram a beneficiar os seus cães com lobeiros, dando origem a exemplares dessa variedade, “cães de trabalho” que apenas se diferenciam dos outros pela cor do manto, preto-afogueados camuflados em lobeiro.
É chegada a hora da reversão no Cão de Pastor Alemão, de reverter a beleza em trabalho e de retornar aos cães do passado recente, de devolver à raça a saúde e a qualidade laboral que sempre a destacaram, eliminando-se as disposições e os conceitos que tragicamente a carregaram até à presente data e que pouco a pouco a transformaram num “passarinho de quatro patas”. As disposições relativas à cor deverão ser revistas atendendo à necessidade da biodiversidade, da saúde articular, do equilíbrio psíquico e da concentração que induzem a um melhor impulso ao conhecimento e facilitam a parceria. Do ponto de vista morfológico importa dar combate ao abatimento de metacarpos, às mãos divergentes, ao descodilhamento, ao peito estreito, ao jarrete de vaca e à exagerada convexidade dorsal motivada pela excessiva angulação traseira, anomalias responsáveis por um conjunto de incapacidades locomotoras que obstam tanto à saúde dos animais quanto ao seu rendimento. A diferença de alturas entre machos e fêmeas deverá ser encurtada, para se acabar de uma vez por todas com o pernaltismo evidente nalguns exemplares, que se deve também à disparidade de pesos entre os sexos (de - 25 para 40kg). Mais do que na morfologia, sem contudo a descorar, a selecção da raça deverá considerar o trabalho como o primeiro dos seus pressupostos, já que para isso nasceu. Com isto não estamos a defender o desprezo pelas linhas actuais, até porque nelas se venceram flagelos como a displasia e outras imperfeições históricas, o que de algum modo as torna beneficiadoras, mas a manifestar-nos contra o seu uso exclusivo ou prioritário, uma vez que é sobejamente conhecida a sua insuficiente prestação laboral.
Há que aproveitar a aldeia global em que vivemos, enquanto é tempo, e reunir os pastores alemães dispersos pelos continentes europeu e americano, unir os pequenos nichos de criação espalhados pelo mundo para se evitar a saturação da raça, reencontrar o seu potencial original e proceder a uma nova selecção. Se persistirmos somente em adquirir cães da Republica Checa e da Áustria, breve estaremos com os mesmos problemas que afectam hoje a variedade cromática dominante. Importa vencer o êxodo da raça motivado pelas decisões políticas do pós II Guerra Mundial e proceder à reunificação do Pastor Alemão, deitar mão aos velhos “alsacianos” e recrutar pastores originários da África do Sul, da Bélgica, do Canadá, da Escandinávia, da França, dos Estados Unidos, das Ilhas Britânicas e da Rússia, para se fazer justiça a Stephanitz, vencer a consanguinidade e alcançar a multivariedade. E os Lobeiros terão nisso um papel determinante!

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