Por mais
voltas que demos à cabeça, não conseguimos lembrar-nos de um cão
deliberadamente insuportável, apesar de vários milhares nos terem passado pelas
mãos, assim como não nos recordamos de nenhum que fosse essencial “burro” ou
sem préstimo. Ao invés, e sem grande esforço, depressa nos lembramos de donos
verdadeiramente insuportáveis, com baixo índice de progresso, pouco dedicados,
avessos a mudanças, destituídos de protocolos e impróprios para o adestramento.
Engana-se quem julgar tratar-se de gente rudimentar ou pouco letrada, pois
alguns deles, para além de licenciados, eram doutores, o que nos lança para um
ditote muito ouvido lá para as Terras do Bouro, que diz “ser um doutor um burro
carregado livros”. Humor ou fleuma à parte, o grosso dos alunos que obtiveram
melhor aproveitamento foram os de formação universitária, os já formados ou em
formação. No entanto, houve gente que se quedou “inexplicavelmente” pelo
secundário, que alcançou notariedade e que enriquece hoje as fileiras do
adestramento ou que é uma mais-valia para outros proprietários caninos.
O cão é um ser que age por reflexo, reagindo mais
ou menos a determinados estímulos segundo a individualidade que a carga genética
lhe ofereceu, podendo sem grande dificuldade, e isto muita gente esquece,
ignora ou nega-se a aceitar, alterar o seu comportamento por força do peso
ambiental, por ser um animal social e por isso mesmo dependente, o que de
sobremaneira importa e justifica o adestramento. Para melhor se compreender o
que acabámos de dizer, lembro aqui um episódio ocorrido durante umas filmagens
no Jardim do Quevedo em Setúbal, quando uma respeitável senhora não se conteve
e exclamou: “ Parabéns! O seu cão é muito inteligente!”, merecendo do
adestrador a seguinte resposta: “ Obrigado. O inteligente sou eu. O cão aprende
sem grandes dificuldades e descansa ali à sombra, enquanto eu penso como fazer
o trabalho que iremos realizar!”. È evidente que os cães possuem algum ou mais
tipos de inteligência, o que os torna mais aptos para a sobrevivência do que alguns
humanos disso destituídos, e não estamos a falar exclusivamente em instintos,
até porque eles aprendem por observação e são capazes de complementar ou
reproduzir tarefas que nos são próprias.
Para o
bem e para o mal, e disto não restam dúvidas, um cão será tanto ou mais capaz
quanto fôr o seu adestrador, que nosso entender deverá ser o seu dono. Se por
acaso o dono sentir dificuldades ao fazê-lo e solicitar a ajuda de uma escola
ou de um treinador, então o responsável pelo êxito ou insucesso do ensino será
também da entendidade ou do profissional que ofereceu os seus préstimos. E não
atribuímos o mérito ou o insucesso exclusivamente a estes, porque trabalharam a
rogo dos donos, não coabitavam com os animais e não lhes cabia a instalação e a
recapitulação domésticas, pois seis horas semanais de treino dificilmente
substituirão 162 passadas em casa, arredadas do ensino e com os animais
entregues a si próprios. O adestramento é para o dia-a-dia e o cão bem
compreendido é um projecto familiar, um encargo acrescido que não se confunde
com um hobby ou um brinquedo, algo que desprezaremos quando não temos tempo ou
que arrumaremos numa gaveta até à próxima utilização. Mas se por acaso o cão
vier a morrer por negligência, por não lhe terem sido adiantados os necessários
subsídios para a sua sobrevivência, certamente não poderemos isentar de culpas
aqueles que se fizeram pagar, quer por não se terem feito ouvir, quer por
ignorarem a obra maior do seu ofício.
É
evidente que cada dono faz o seu juízo e apenas leva a cabo aquilo que mais lhe
importa, é mais cómodo ou lhe dá gozo, a despeito muitas vezes daquilo que lhe
é dito, ensinado e enfatizado, porque os cães a tudo se prestam e os donos com
eles ao lado revelam comportamentos até ali encobertos, acabando por demonstrar
a sua verdadeira natureza, aquela que está para além das conveniências e que invade
os seus sonhos, a despeito dos direitos alheios e em prol da sua realização
pessoal, até porque não estão sós e podem culpabilizar os animais pelas
manifestações menos válidas da sua personalidade.
Por outro
lado, devido ao dualismo das vontades que o adestramento sempre expõe, a
máscara quotidiana de cada um cai por terra, evenciando nos condutores os seus
méritos, deméritos, virtudes, lacunas, qualidades e impropriedades, o seu
particular afectivo, processo pedagógico e aspirações. Sempre será mais fácil,
para quem ensina, desconsiderar isso e sobrecarregar os cães de exercícios,
mesmo que a sua assimilação seja dificultada pelos entraves presentes nos
donos. Mas o que importará mais a um adestrador, o peso da fortuna ou o índice
de progresso binomial? Estamos cientes que a esmagadora maioria optará pelo
primeiro caso, por ser mais aliciante, conveniente e ser do agrado dos donos,
mesmo que os cães pouco ou nada aprendam, os seus proprietários saiam traídos
pela sua personalidade e ludibriados nos seus intentos. Dali partirão felizes e
contentes apesar de tratados como tontos, dando razão ao aforismo por todos
conhecido: “mais vale cair em graça do que ser engraçado”, porque corrigir
nunca foi fácil e é muito difícil de encontrar quem aceite a correcção, em
particular neste mundo onde o culto pessoal é enfatizado e a humildade passou
de moda. É curioso reparar que a sobranceria raramente afecta os mais doutos e
quando isso acontece… breve serão ultrapassados, até porque a verdadeira
sabedoria leva-nos à constactação das nossas limitações, ao pouco que sabemos e
ao desejo de mais sabermos.
E no meio
disto tudo, como não poderia deixar de ser, os cães alheios continuarão a
importunar-nos, a não nos deixar dormir, a perseguir os nossos, a invadir o nosso
espaço, a passar por cima de nós, a derrubar-nos e até a dar-nos caça, quando
não morrem envenenados ou atropelados, massificando e reforçando aquilo que
dentro dos seus donos habita, quer seja ignorância, incúria, desplante ou
malvadez, agindo dessa maneira por reforço ou inacção dos seus líderes. Os cães insuportáveis são-no por causa dos
donos e como não aprendem sozinhos, os donos deverão ser objecto de aturada
educação, tarefa de difícil aceitação mas necessária à sociedade, enquanto
líderes e primeiros responsáveis pelos seus cães. Diante disto, não
compreendemos porque não se exige a cada um deles um certificado de robustez
física e psicológica. Serão porventura
os cães mais inteligentes? Nalguns casos quisera Deus que sim!
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