quinta-feira, 29 de agosto de 2013

NÃO COMO BURROS A TIRAR ÁGUA À NORA

Ao tratarmos este tema vem-nos à memória a estória do rapaz, do velho e do burro, que depois de cada um deles andar em cima do animal, à vez e em conjunto, acabaram por carregá-lo às costas por força da pressão e do parecer alheios. Assim procedem também muitos proprietários caninos, que na ânsia de tanto quererem aos seus animais, acabam por prejudicá-los e abraçar o ridículo sem disso darem conta (pelo menos de imediato). Estamos a referir-nos ao modo e aos meios usados para o exercício destes animais, companheiros que a tudo se sujeitam e que acabam arredados das práticas do seu agrado, responsáveis directamente pelo seu bem-estar social, qualidade de vida e aumento dos seus dias. De tudo se vê e imaginação não falta, será que alguns donos acabarão, desnecessariamente, também por carregá-los às costas?
Para começo de conversa, o melhor exercício para um cão (desde que a sua raça o permita) é a excursão diária, feita ao lado do dono, desenvolvida em marcha, com uma légua de extensão e em diferentes ecossistemas, numa cadência nunca superior aos 5 km por hora, cuidado que respeita a propensão excursionista canina e mantém o animal física e psicologicamente apto, radiante e ávido de novas jornadas, que fortalece os vínculos afectivos com o dono e torna indivisível a equipa homem-cão, sem estafas, ânsias ou atropelos. Mas como a maioria dos donos se queixa da falta de tempo e de disponibilidade física para tal, o que nem sempre corresponde à verdade, os cães acabam por se ver sujeitos a um conjunto de exercícios que não os poupam e isentam os seus líderes de maior esforço. Conhecedores dessa realidade, iremos analisar os mais vistos, tendo a preocupação de realçar as vantagens e desvantagens que cada um deles tem para os cães.
Das correrias atrás duma bola ou de um disco. Para alguns proprietários caninos, o correr à desfilada atrás de uma bola ou dum disco é o melhor dos exercícios para os seus cães, valendo-se para esse efeito dos parques e jardins à sua disposição. As vantagens deste exercício são mais técnicas do que físicas, porque o líder é o dono da bola e o brinquedo induz à sua supremacia, uma vez que por ele toda a obediência pode ser desenvolvida e instalada de modo pronto, descontraído e alegre, o que basta aos condutores civis, normalmente dispensados doutras exigências, responsabilidades e desempenhos. Como o galope mais cansa do que muscula e exige um esqueleto já consolidado, este exercício só pode ser aconselhado aos cachorros quando o deixam de ser, logo após a chegada da maturidade sexual, porque até lá os riscos para a sua saúde são enormes pela sobrecarga das articulações. É importante não esquecer que os cães não possuem clavículas e que a displasia (tanto a do ombro como a coxo-femural), pode resultar doutra origem que não a genética. Pela mesma razão, os brinquedos que na sua evolução disparam em diferentes direcções não devem ser usados nos cachorros antes dos 7 meses de idade. É evidente que se não forçarmos e as sessões de treino forem de curta duração, os riscos serão diminutos, muito embora se esteja a pedir aos cachorros desenvoltura sem primeiro os robustecer, pela antecipação da tarefa em relação à estrutura que a suporta, o que poderá levar a alterações morfológicas indesejáveis e implicar na curva de crescimento dos indivíduos (por encurtamento ou alongamento, sendo mais comum o 1º caso). Esta prática vicia os cães nos brinquedos, tanto nos seus como nos alheios, podendo levar a luta pela sua posse, dependendo isso do carácter dos indivíduos, do fim procurado, da sociabilização de que foram alvo e da qualidade da liderança.
Acerca dos cães atrelados a bicicletas ou coagidos a acompanhar viaturas. Este tipo de exercício, típico dos donos que não abdicam dos seus hobbies, pouco acostumados a cedências ou avessos à actividade física, contudo preocupados com o exercício dos seus cães, garante a boa forma canina, o desenvolvimento dos seus indices atléticos e condiciona os cães a não puxar graças à prisão em que se vêem. Dos pontos de vista social e cognitivo pouco adianta, porque o cão vai à arreata tal qual macho em varais de carroça. E daqui não veio grande novidade ao mundo, já que a prática é bastante antiga. No tempo em que os ciganos usavam esse meio de transporte, era comum ver cães debaixo dele e atrelados no seu eixo. Devido à territorialidade canina, os cães bem depressa guardavam a carroça e pouco se interessavam pelo pessoa dos seus donos, tendo com eles apenas uma relação de dependência por causa do seu sustento, daí que esta “modernice” se perde pelos confins do tempo. Este tipo de exercício, quando usado em exclusivo, pela ausência da cumplicidade necessária ao bom entendimento entre homens e cães, lança os animais na apatia e pode comprometer o seu uso pela precária relação com os donos, pelo que deverá ser substituído ou alternado com outro modo de parceria.
Dos cães sujeitos à tracção. Em primeiro lugar importa dizer que a tracção não transforma os fracos em fortes, antes agrava as suas insuficiências ou menos valias, que só deverá ser aplicada nos cães robustos e geneticamente dotados para isso, que por acaso não são muitos e que por norma apresentam um baixo impulso ao conhecimento. Apesar de qualquer cão, independentemente da sua raça, poder puxar, a maioria das raças caninas deverá ser dispensada de tal carga, porque poderá morrer, incorrer em lesões permanentes ou de difícil recuperação. Este exercício, que alarga o peito e molda a garupa, mas que também sela o dorso e sobrecarrega os membros dianteiros, há muito que é utilizado no treino dos cães de luta. Se o objectivo for o de melhorar a frente do nosso cão, existem outros meios mais suaves, menos dolorosos e mais eficazes para o seu alcance, tais como a natação, o aumento da capacidade de impulsão e o concurso às rampas, exercícios que possibilitam a convergência de membros que garante o desenvolvimento harmonioso do peito e da espádua (os resultados serão melhores se soubermos aproveitar a fase plástica dos cães). A tracção não reforça os vínculos afectivos entre o cão e o seu dono, não torna o animal feliz, antes desnuda um dono que se serve dele para usos bem distantes das suas respostas e propensões naturais, transformando-o em pau para toda a obra ou numa rara ocasião para o seu gozo. Convém não esquecer e olhando para trás, que o atrelamento dos cães só aconteceu em ecossistemas onde não haviam outros animais próprios para isso ou máquinas que os substituissem. Infelizmente para os cães, eles não são como os burros, que, quando a carga é demasiada, empacam ou jogam a carga no chão.

Dos cães que marcham à volta dos donos sozinhos e em liberdade, em percursos previamente determinados. Esta opção, abraçada pelos donos menos disponíveis do ponto de vista físico ou com alguma incapacidade locomotora, só é possível pelo ensino prévio dos cães e consequente aprovação na disciplina de obediência. Os proprietários caninos confinados no espaço urbano e sem trajectos imediatos ao seu redor, acabam por proceder do mesmo modo por ausência doutras condições. O exercício consiste em mandar o cão para diante e em torno do dono, em percursos circulares que podem ter de raio de 6.5 a 12m, dividindo-se as voltas em metade para que o animal se equilibre e curve nas duas direcções, circulando para a esquerda e para a direita. Este exercício, substituto por imperativo da excursão diária comum, mantém os indíces atléticos dos animais e reforça a obediência canina, nomeadamente a nuclear. O seu uso sistemático tende a saturar os cães e a levá-los à diminuição da cadência de marcha, pela ausência de novidade e inexistência doutros desafios, obsta ao desenvolvimento cognitivo canino pela persistência numa experiência repetitiva e pobre, fragiliza os cães diante de novos ecossistemas e poderá comprometer o “junto” a médio prazo, mesmo que amplamente recompensados. Ironizando, esta opção lembra os burros a tirar água à nora, subsistindo no entanto uma diferença, é que lhes vendavam os olhos para não ficarem tontos. 
Dos cães que correm pelas quintas à vontade! Os proprietários caninos urbanos, mais preocupados com o seu bem-estar e com a economia familiar, optam quase sempre por um cão pequeno, porque ocupa menos espaço e sai mais barato, o que nos parece razoável. No entanto, pondo de parte essas razões, mas também por causa delas, vende-se por aqui a idéia que os cães grandes são próprios para as quintas, onde se sentirão mais felizes, a gosto e à larga, como se do cativeiro e do isolamento grande benefício lhes sobrasse. Há quem diga ainda, um pouco por ignorância ou na tentativa de se enganar a si próprio, que os cães podem fazer exercício à vontade pelas quintas. Poder até podem, mas acabam por não o fazer devido à ausência da liderança e à falta de motivação para tal, porque não se vêem recompensados e acabam dominados pela apatia, comportando-se como borregos nas horas de mais calor. Ainda que ao princípio ladrem aos portões, pouco a pouco, com o passar do tempo, deixam de ser vistos e só aparecem para comer (quando aparecem). A quinta outra coisa não é que uma gaiola de ouro, algo parecido com um parque ampliado no Zoo, que tenta atenuar a alteração do viver social dos animais, a falta do seu habitat e a perca da sua liberdade. Os cães que deambulam pelas quintas, por desintesse, tornam-se indolentes e pouco propensos ao exercício físico, correndo esporadicamente e descansando de imediato, não adquirem resistência nem sentem necessidade de maior preparo atlético, a menos que o adquiram atrás dos gatos, a perseguir ratos ou a correr atrás de libelinhas. É importante lembrar que a marcha muscula mais do que o galope e que a perca da massa muscular induz a um maior esforço articular.
Dos cães que concorrem aos obstáculos. O concurso aos obstáculos é uma das práticas mais saudáveis para o exercício dos cães, desde que os seus donos os acompanhem e os ajudem a vencer as dificuldades, quando diversificados e de diferente categoria, próprios para o robustecimento de carácter, para o desenvolvimento de novas aptidões, para a correcção morfológica e necessários para a sobrevivência dos animais. O trabalho sobre os obstáculos não dispensa o aquecimento prévio e deverá acontecer dos mais simples para os mais complicados, numa toada progressiva que respeite a morfologia dos indivíduos, o progresso dos seus indíces atléticos e a observação dos seus ritmos vitais. Atendendo à necessidade de aquecimento, a disposição dos obstáculos deverá obedecer à transição ascendente dos andamentos naturais presentes nos cães, assim como obedecer às suas sequências naturais, devendo começar-se por aqueles que dispensam o galope e que propiciam o preparo dos musculos, independentemente da sua natureza ser elevadora, extensora, concêntrica ou mista. Por ausência de pistas tácticas e de quem as saiba montar, por questões ligadas ao desconhecimento biomecânico, enraizou-se entre nós a idéia que os obstáculos apenas se destinam aos cães de competição, sendo a maioria deles arredada do seu benefício, nomeadamente aqueles que mais necessitariam deles. Por tudo isto, muitas escolas apresentam-se mal vestidas ou “carecas” de obstáculos, carregadas de “bonecos” impróprios, tornados obsoletos e sem préstimo, o que em nada as abonará. Bem sabemos que uma pista táctica é dispendiosa e que o valor médio das mensalidades dificilmente sustentará a sua montagem e manutenção.
Dos cães entregues a obstáculos mecânicos e eléctricos. Cá por casa esta prática não está muito difundida e também não nos faz grande falta, fará a quem não quer fazer nada ou àqueles que se vêem obrigados a tudo. Nalguns hóteis caninos doutras latitudes, menos sujeitas à crise que nós passamos, existem obstáculos mecânicos e eléctricos à disposição dos hospedados que irão sair dali mais fortes e musculados. Uns são de uso individual e outros de uso colectivo, sendo os últimos parecidos com os carroceis da criançada. Alguns tiram partido do movimento animal (a exemplo da guia mecânica para os cavalos) e a maioria deles é accionada à distância por meios eléctricos ou electrónicos, o que permite trabalhar mais cães ao mesmo tempo, funcionando como serviço extra a acrescentar ao preço da hospedagem. Por razões óbvias, duvidamos que esta opção seja rentável em Portugal. Não obstante, já muita gente constrói e se serve de dispositivos mecânicos e eléctricos para a musculação dos seus cães, sendo a passadeira eléctrica a mais comum. Esta opção, que até se compreende e aceita por necessidade terapêutica ou esclarecimento clínico, é geralmente tomada pelos donos deficientes, pelos incapacitados, pelos pouco propensos ao exercício físico e por aqueles que se dizem de pouca disponibilidade, ficando por saber neste último caso, porque carga de água foram buscar um cão. Atendendo ao incómodo, só o uso terapêutico canino justificaria essa sobrecarga ou dor de cabeça. Ainda que daqui resultem melhorias físicas significativas para os seus involuntários e desconsiderados praticantes, nenhuma mais-valia técnica, social ou cognitiva lhes sobra, a não ser que as escadas rolantes façam parte do seu dia-a-dia e se vejam obrigados a subi-las ao contrário com os donos ou necessitem de aprender a caminhar sem fim à vista, descomandados e por sistema, o que não nos parece ser do agrado dos cães por ausência de motivação.
Da natação. Será que virá o dia em que as pistas destinadas aos cães deixarão de ter um aspecto provisório, desapetrechado, descuidado e mal-amanhado? Oxalá que sim! Agora, com a falência de muitas sociedades recreativas de bairro, aldeia e freguesia, os centros de treino caninos ocuparam os seus campos de futebol há muito abandonados, aproveitando assim (a custo zero), a luz, a água, os balneários e as bancadas desses recintos desportivos, sem contudo operarem qualquer melhoramento digno desse registo, o que nos lança uma vez mais para o carácter suburbano, inóspito e degradado dos espaços dedicados ao adestramento. Centro de treino que se preze, para além doutras condições, deverá ter uma piscina própria para exercitar os cães, considerando os benefícios advindos da natação, numa dimensão mínima de 24m2 e com um volume de água de 36m3. A natação possibilita a recuperação de lesões e o desenvolvimento muscular dos cães, harmoniza a sua morfologia, robustece o seu carácter, pode corrigir aprumos, mantém a sua boa forma física e alivia as suas articulações, é obrigatória na disciplina de salvamento e é do agrado dos animais, apesar de muitos não saberem nadar convenientemente e de necessitarem de ser ensinados, o que é tarefa obrigatória  para quem ensina, diante do País que temos e honrando a nossa aposta na sobrevivência animal. Todavia é um exercício complementar e não absoluto, porque lidamos com animais terrestres que têm outro tipo de locomoção preferencial.
O espaço que nos devem. As autarquias continuam em falta com os proprietários caninos e atendendo ao que por aí vai, assim continuarão por algum tempo, porque continuam a não existir parques destinados aos cães e pistas para o seu exercício, apesar desses cidadãos continuarem, não se sabe bem para quê, a pagar a “licença” dos seus animais. Não merecerão estes contribuintes melhor atenção?
Como os cães não são burros, a avaliação que fizemos dos exercícios que vulgarmente lhes destinam não esconde a nossa filosofia de ensino, que é a de fazer que o cão se sinta bem ao lado do dono e não que o dono abuse da sua posse, pois o adestramento é um namoro e dele resultará, se for bem alcançado, o mútuo prazer que sustenta a cumplicidade. O sucesso espera-vos, boas caminhadas!

Sem comentários:

Enviar um comentário