Desenganem-se os mais confiafos: o cão
cobarde é um animal muito perigoso, em bruto ou aproveitado, e não deverá ser
interpretado como inofensivo. A cobardia presente nalguns cães actuais deve-se
a um resquício atávico que ainda não eliminámos ou não quisemos eliminar,
directamente ligado ao lobo e a outros canídeos usados na construção das
distintas raças, naturalmente instintivos e desconfiados. Também por isto, pelo
entender que nos deu a experiência e pela observação das selecções operadas por
outros, dizemos: um cão é tanto melhor, quanto menos lobo tiver! Ainda antes do
Ocidente ter conhecimento objectivo do Lobo Checo, coisa facilitada pela
Perestroika, já nós (Acendura Brava), alguns criadores holandeses e grande
número de norte-americanos, se havia dedicado à criação e estudo dos híbridos
provenientes do Lobo. Uns e outros viram o seu trabalho desperdiçado e os
americanos acabaram sujeitos a um conjunto de disposições legais, mercê do dolo
perpetrado pelos seus híbridos. O Lobo
Italiano, cruzamento entre o Lobo da Sardenha e o CPA, que acontece mais tarde,
dentro do mesmo propósito, teve como objectivo a produção de animais
excepcionais para acções de resgate, policiais e militares. Duvida-se que os
italianos tenham conseguido padronizar um comportamento e um desempenho
aceitáveis. À parte disto e como mostra do nosso empenho, na companhia do Sr.
Filipe Pereira, assistimos algumas vezes à primeira ninhada de lobos nascida no
Centro de Recuperação do Lobo Ibérico (a do Sândalo e da Morena), seguindo as
orientações do Sr. Robert Lyle, seu fundador, depois de visitarmos amiúde a
alcateia residente na Tapada Real de Mafra. Será quem ainda subsiste, apesar do
flagelo da leishmaniose e de tanta consanguinidade?
Há por aí muita cobardia entendida como
valentia que a muitos encanta ou engana, em especial os incautos, os menos esclarecidos
ou os mais engenhosos, porque os primeiros nada esperam, os segundos andam deslumbrados
e os últimos sempre espreitam vantagem. O cão cobarde é pródigo em ataques de
surtida, carrega sobre os mais fracos e submete-se aos mais fortes, prefere
observar do que ser visto, desconfia naturalmente de estranhos por se sentir
ameaçado, usa a manha para não trabalhar, faz chantagem emocional, mostra-se
injustiçado, reage negativamente a alguns fenómenos naturais, tende ao
isolamento, treme diante da repreensão, abomina o trabalho de equipa e pode
morder por pânico. Diante dum panorama destes, o que dizer da necessidade da
sociabilização, enquanto pilar da reeducação e da reabilitação? Será que todas
elas se destinam somente aos cães valentes? Claro que não! A sociabilização é também
o melhor dos meios para a reabilitação destes cães.
Podemos transformar um valente num
cobarde, acorbardá-lo parcial ou totalmente? Sim! Certo tipo de condicionamento
criminoso a isso induz, através de retrocessos pedagógicos que procuram respostas
instintivas parciais ou absolutas. No entanto, duvidamos das intenções desses
“pedagogos” e pomos em causa, como é óbvio, o seu amor pelos cães, que não deve
ser nenhum! Se à ausência da sociabilização (inter pares, com outros animais e
com os humanos), que já é mal que chegue, somarmos o isolamento forçado, a
restrição absoluta de contacto, um encarceramento austero, prolongado e mal
iluminado, a prática sistemática de maus tratos, a proibição de algumas
expressões verbais, a alteração das rotinas, o recurso à fome e à sede, a substituição
das dietas e a proibição de sair à luz do dia, qualquer cão se acobardará e
virará bicho! Há ainda para além disto, engenhosos que adicionam,
esporadicamente, pequenas quantidades de salitre, carvão e enxofre à razão de
75, 15 e 10%, sujeitando os cães a convulsões dolorosas no intuito de lhes
reavivarem os instintos, chegando alguns a padecer. A castração continua a ser
o meio mais “limpo” e usado para quebrar o ímpeto aos valentes e tem agravado a
insegurança e a dependência dos cobardes, limitando-lhes de sobremaneira a
autonomia, e tudo isto em abono da comodidade dos donos!
Não é difícil condenar o que acima se
descreveu, mas há muita gente que continua deliberadamente a encerrar os seus
cães em espaços exíguos e mal iluminados, por razões estéticas ou
pseudo-funcionais, enjaulados dentro de
boxes por horas a fio e cães condenados à morte por causa disso, ou por outra:
por serem considerados perigosos! Mesmo sem a terapia de choque adiantada no
parágrafo anterior (que rasa a tortura), qualquer cão pode manifestar acções
cobardes, quer elas sejam herdadas, aproveitadas, induzidas ou disfarçadas. Temos
por norma usar o treino para dar combate à cobardia, muito embora possa ser usado para a aproveitar ou escamotear.
O seu aproveitamento, por exemplo, facilita a ocultação e o ataque de surpresa
de alguns cães, que geralmente atacam pelas costas e quando menos se espera. A
habilidade de dissimular a cobardia, própria dos adestradores mais engenhosos,
passa pela familiarização que evita o pânico e que garante a experiência feliz
pela recompensa. Ao longo da vida temos ouvido enaltecer aqueles cães que, não
mordendo à entrada, só atacam os visitantes á saída. A maioria destes animais,
por muitos entendidos como extraordinários, não foi objecto de algum treino
específico ou capacitação para isso, antes arranca movida por um ou mais
instintos. Se por acaso for mal sucedida, bem depressa abandonará a façanha e
permanecerá escondida por mais tempo. É evidente que qualquer valente, depois
árduo trabalho e uma vez o alcançado o condicionamento, poderá comportar-se de
igual modo e se necessário contra-atacar. É importante relembrar, nesta
caminhada que tem dezenas de milhares de anos, que ontem como hoje, a escolha
dos cães tem assentado sobre os indivíduos mais dóceis e manobráveis, o que
muito tem facilitado o treino e as suas prioridades: o controlo dos instintos,
a potenciação dos impulsos herdados e o robustecimento do carácter canino. Não
obstante, porque é mais fácil e exige menos empenho, nesta era “do aqui” e
“agora”, há quem procure cães mais instintivos e use métodos que apenas visam o
seu aproveitamento, cambiando a verdade objectiva pela subjectiva que a muitos
engana e satisfaz, já que a maioria das pessoas tem medo de cães, ainda que o
não diga e que acabe por adquirir um.
Poderá um dono cobarde induzir,
voluntária ou involuntariamente, um cão à cobardia? Sim, sem dúvida, por
inacção, desprendimento, refreamento, punição ou castigo. No entanto, os donos
mais medrosos tendem a fazer cães valentes e os donos mais tesos a subjugá-los em
demasia, uns pela impropriedade da liderança e os outros pelo abuso da
autoridade. Só a regra poderá evitar os ataques instintivos, mormente os
cobardes e de difícil controlo, o que nos obriga a dizer que o treino de guarda
é mais do que necessário para certo tipo de cães, porque põe em pé de igualdade
a prontidão e a cessação dos ataques, induz à escolha certa dos alvos,
estabelece protocolos e submete as acções caninas à ordem expressa, factores
que aumentam exponencialmente o domínio sobre o lobo doméstico, tornando-o
eficaz e quase absoluto. O antropomorfismo presente nalguns donos, que os leva
a considerar os cães seus iguais, quando lamechas, tem um efeito contrário,
porque pode suscitar protecção desnecessária e motivar os cães para ataques
instintivos, inesperados e de surtida. A verdadeira relação de paridade é aquela
que reconhece as diferenças, distribui as tarefas e procura a complementaridade.
O combate à cobardia canina está por
detrás de todos os métodos presentes no adestramento, quer se ensine obediência
ou outra das suas disciplinas clássicas. O aproveitamento da cobardia pressupõe
acções fratricidas, tiradas a partir dos instintos caninos, desconsidera os
seus efeitos e despreza o bem-estar animal. Os cães que se tornaram cobardes,
reflectem a ausência duma liderança objectiva e o abandono de que foram vítimas,
muito embora a cobardia de alguns resulte da falta de escrúpulos dos seus
proprietários, mais apostados no dolo do que na coabitação pacífica, sendo
também eles cobardes, gatos escondidos com o rabo de fora! Não nos custa acreditar que grande número dos
cães abatidos ou era cobarde ou foi vítima de algum tipo de cobardia. Voltaremos
a este assunto.