Entende-se por “recusa de engodos” o
condicionamento que permite ao cão não aceitar comida da mão de estranhos ou
comer aquela que é jogada no chão (intencionalmente ou não), assim como outra
distribuída por alguém que não o dono, na presença deste ou não. Como este
condicionamento aponta para a sobrevivência dos cães (ao evitar o seu
envenenamento), convém que todos eles, independentemente da sua raça, tamanho,
sexo ou serviço, sejam aprovados insofismavelmente na recusa de engodos para se
constituirem em companheiros impolutos e incorruptíveis, já que doutro modo
jamais o serão, a menos que os guardemos numa redoma de vidro ou os conservemos
para sempre atrelados a nós e debaixo de olho. Todos os anos morrem cães
envenenados.
O treino da recusa de engodos é um
trabalho gradual que evolui das medidas preventivas para o condicionamento
objectivo, que não dispensa tanto o trabalho doméstico como o seu complemento
escolar. As medidas ou protocolos mais comuns são: o comer e beber em pratos
reguláveis de acordo com a altura de cada cão (logo após a entrada do cachorro
em nossa casa, 5cm abaixo da altura encontrada à cernelha ou garrote); manter a
mesma ração ou penso diário (para que não se acostume a comer de tudo); exclusividade
do dono na distribuição da comida (para que o animal desconfie do aliciamento);
proibição de dar comida ao cão com os donos á mesa, restos de comida ou
petiscos suplementares (para que não se torne guloso); evitar nos passeios
exteriores os locais passíveis de ter comida (para não tentar o cachorro, já
que é um animal de hábitos); comer sempre no mesmo local (para que não se
acostume a comer por todo o lado); consentir que outros lhe deem de comer (para
que não se habitue a comer da mão de estranhos); regrar o convívio com
estranhos (para que não se sinta à vontade para pedir comida); não aceitar
biscoitos com o odor de outras pessoas ou animais (para que resista à
pedinchice); aguardar comando para comer (para que só coma debaixo de ordem); a
interrupção da refeição (para que não se torne sôfrego); bater em minúcia os
territórios onde o irá soltar (para que não acostume a procurar comida); não
consentir que coma conjuntamente com outros cães do mesmo prato (para evitar a
sofreguidão); estabelecer o dia de jejum semanal (só para cães adultos e para o
aumento da resistência); Tudo isto é trabalho doméstico que muito beneficiará e
facilitará o vindouro trabalho escolar. Convém ainda relembrar que o dono da
comida é o patrão do cão (foi assim que transformámos o lobo silvestre em
familiar), e que com a vida dos cães não se brinca.
O cumprimento das medidas preventivas
que atrás discrimámos poderá dispensar algumas das tarefas escolares que
adiantaremos e poderá tornar mais célere o processo pedagógico que garante a recusa
de engodos. È evidente que ensiná-la a um cão portador de fraco impulso ao
alimento é tarefa fácil, pode até correr-se o risco de o tornar ainda mais
biqueiro, o que ninguém aproveitaria. Animais com estas caracterísiticas
deverão quedar-se pelas medidas preventivas e nem todas lhe deverão ser
aplicadas considerando o seu particular. Os cães que felizmente foram ensinados
pela recorrência ao biscoito, depois da instalação objectiva dos comandos,
deverão ser objecto da recusa de engodos atendendo à sua sobrevivência. A
recusa de engodos pode implicar na morte do cão após o desaparecimento do dono,
facto já acontecido e que não deseja ver repetido. Para que isso não suceda e o
animal venha a ser vítima de um penoso processo de reeducação, válido ou não, convém
que o cão beba em bebdouro automático e coma em doseador de ração. Neste último
caso é imperativo que a ração não fique com o odor de quem a abastece. Os cães
urbanos, depois de aprovados na recusa de engodos, deverão ficar condicionados
a ser alimentados por uma segunda pessoa.
Os exercícios escolares que oferecem a
recusa de engodos, geralmente levados a cabo no exterior (passeios e parques
públicos), e posteriormente nas moradias e quintas onde os cães se encontram
instalados, acontecem primeiro na presença dos donos e depois na sua ausência
visando a capacitação pretendida. Independentemente do local dos trabalhos,
proceder-se-á à prévia instalação do
comando de “perigo” que alertará e melhor prepará o animal para o sucesso nas
acções.
Pergunta-se. Quando é que devemos
levar a cabo a recusa de engodos num cão? A resposta não é simples porque irá
depender das características individuais de cada cão e daquilo que dele se
espera (atribuições). Normalmente deixamos para o final do adestramento esta
capacitação e esperamos pela maturidade emocional dos animais, quando já se
encontram robustos e “aguentam” a inibição que possibilita o controle de
instintos e o desenvolvimento do seus
impulsos herdados. Aos cães mais frágeis de carácter, visando o seu
bem-estar e autonomia, quedamo-nos somente pelas medidas preventivas e
isentamo-los dos exercícios mais duros, porque isso lhes bastará, pois não
queremos que nenhum susto se venha a constituir num trauma irreversível.
Voltando aos exercícios escolares,
começam sempre pelo reforço da autoridade do dono (liderança), com um biscoito
colocado por ele sobre uma das patas dianteiras do cão, que aguarda ordem para
o comer permanecendo imóvel. Por vezes, usamos um em cada pata e guardamos o
intervalo julgado conveniente entre a ordem para comer o primeiro e
o segundo. Depois pediremos a um auxiliar que proceda do mesmo modo e coloque o
biscoito ou biscoitos sobre as mãos do animal, convidando-o para comer, o que
não deverá acontecer por força do comando de “perigo”. Sucerá a comida entregue
à mão e a jogada no chão (biscoitos, ração, leite, carne, frango, enchidos,
salsichas, queijos e toda a casta de iguarias do agrado do cão) que não as
deverá comer, tanto com o dono presente como ausente. Este trabalho obrigará a
várias sessões e será objecto de repetição ou recapitulação ao longo da vida do
cão. Só depois da aprovação nestes exercícios o cão será testado em casa,
quando em serviço de vigilança e num período mais ou menos longo. O que se
deseja e que sempre acaba por se conseguir, é o desprezo por toda a comida não
administrada pelo dono, independentemente dos convites e dos locais onde se encontre.
A existência de cães particularmente
gulosos, uns pelo forte impulso ao alimento e outros por razões ambientais,
pode obrigar ao uso de ratoeiras e de armadilhas (mecânicas ou eléctricas) para
a obtensão da recusa de engodos, o que felizmente é raríssimo. Nestes casos
excepcionais, a desobediência só acontece nos exercícios em que o dono se
encontra ausente, quando o cão se encontra só e em percursos mais ou menos
longos, distantes do policiamento do dono e da sua correcção. Diante destas
dificuldades, não nos resta outro remédio do que armadilhar determinado
perímetro com armadilhas de pardal, evoluindo, se for caso disso, para as
ratoeiras (simples ou americanas), e destas para os dispositivos eléctricos com
reguladores de potência. No nosso historial apenas dois cães não dispensaram o
recurso aos dispositivos eléctricos, sendo os dois machos: um Perdigueiro
Português e os um Rottweiler.
A necessidade da pronta intervenção do
cão de guarda para escorraçar os intrusos obriga-nos ao ataque às mãos dos
aliciadores. No treino esse papel cabe aos colaboradores escolhidos para esse
efeito, que normalmente, para além da indução, simulam moderadas agressões
sobre os cães, surgindo o contra-ataque dos animais como prémio ou resposta ao
castigo, o que é deveras importante para o equilíbrio dos guardiões, apresentando-se o ataque ao
aliciador como recompensa para o cumprimento dos animais. Os colaboradores
escolhidos para este trabalho deverão ir munidos de protecções ocultas e luvas
de aço para sua protecção.
Como a recusa de engodos é um trabalho
oficinal e digno de vários workshops, porque cada cão é um caso e exige
diferentes reparos na sua instalação, omitimos propositadamente grande números
dos exercícios escolares que desenvolvemos em classe. Já no que concerne às
medidas preventivas procedemos doutro modo, enumerando-as quase todas para salvaguarda dos cães e chamar à atenção para
a necessidade urgente da recusa de engodos, pois se tirarmos os comandos de
sobrevivência animal do adestramento o que sobrará? Provavelmente circo e
alguns momentos descontraídos!
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