Nada do que desejamos de
um cão deverá atentar contra o seu bem-estar social ou induzir à sua
despromoção, a menos que as suas características individuais obstem ao seu
controlo e ponham gratuitamente em risco a integridade dos seus donos ou de
terceiros, sejam estes pessoas ou animais, anomalia por vezes presente nos cães
de carácter dominante, hoje raríssimos e ainda procurados, apesar do
aproveitamento ou adaptação das suas mais-valias não ser fácil e não estar ao
alcance de qualquer um. Exceptuando este caso extremo, todos os cães, caso se
consiga, deverão ser socialmente promovidos para o lugar imediatamente acima ou
conservar o seu status de acordo com o perfil psicológico que o sustenta pela
investidura que o treino oferece.
Determinado cavalheiro, bem casado e com vários filhos, todos menores, com
pouca ou nenhuma experiência em cães, decidiu comprar uma cachorra Pastora
Alemã como mascote prà família. O animal tem agora 5 meses e o dono confiou-nos
a supervisão do seu ensino. Quando inquirido sobre as suas expectativas
relativas ao treino, disse: “Eu quero que a cadela obedeça a todos de igual
modo lá em casa, o que não acontece agora, pois só atenta para mim. Receio que um
dia possa causar dano a algum dos meus filhos mais novos ou apanhar-lhes
aversão”. Compreende-se a preocupação do pai mas estranha-se o seu desejo, porque
ao satisfazê-lo lançaríamos a cachorra numa tremenda confusão, já que
naturalmente resistiria a ser um “pau mandado”: a aceitar todos lá em casa como
líderes.
Dificilmente se conseguirá
treinar um cão assim, encontrar um com tamanha humildade que rase humilhação,
que haja nascido tão submisso ao ponto de vir a comportar-se como um robot,
como se fosse máquina e isento de vontades e afectos. Cães mais velhos e
experimentados conseguem fazê-lo, ainda que sem entusiasmo e contrariados,
satisfazendo as vontades alheias para não serem incomodados, para serem objecto
de recompensa ou para agradarem aos seus donos. A inserção de um cão numa
família humana é facilitada pelo instinto gregário canino (há quem lhe chame
sentimento) que o leva a viver em grupo e a entender os humanos ao seu redor
como membros da sua matilha. Caso estivesse nela e ocupasse o último lugar da
escala social, certamente seria infeliz e a todos temeria, porque a sua vontade
jamais seria respeitada (seria o último a comer, comeria as sobras quando as
houvesse, impedi-lo-iam de copular ou abusariam sexualmente dele e viveria
debaixo de constante intimidação), lugar geralmente destinado aos cães inibidos
e de menor préstimo, tanto para si quanto para os outros, geralmente ocupado
por uma fêmea. Ora, uma investidura destas é no mínimo ambígua para quem diz
gostar de cães e por isso mesmo abominamos a castração, medida higienista agora
em voga que mais apateta os animais do que os aproveita.
Diante deste cenário, melhor seria àquele pai ter adquirido um rafeiro
(há tantos à espera de serem adoptados), animais geralmente mais dóceis,
comunitários e que normalmente são entregues já castrados, não uma cadela
territorial e de linha laboral, como é o caso da sua cachorra pastora alemã:
activa, explosiva, curiosa e dada a tropelias típicas da sua idade e peso
genético. Porém, nada está perdido e ele verá satisfeitos os seus desejos,
porque o animal irá prestar-se a isso, não do modo que ele pensa mas de acordo
com o seu particular racial e propósito existencial, uma vez que a cachorra
nasceu para cuidar dos seus, muito embora não dispense o treino para nisso se
aprimorar e para não entrar em excesso de zelo ou noutros exageros, o que não
irá dispensar o ensino do dono enquanto líder da matilha, zelador da sua
harmonia e escalonamento social.
E se assim acontecer, pode
o nosso homem dormir descansado, porque a Pastora Alemã com auxílio da
coabitação, da aquisição de rotinas adequadas, do treino e da idade considerará
todos os membros da sua família como seus, dispensando maior cuidado aos mais
frágeis e agindo com eles cautelosamente como sempre temos testemunhado,
prestando-se à sua salvaguarda e impedindo inclusive que corram riscos
desnecessários, movida pelo instinto maternal e pelo impulso herdado à defesa:
pastoreando-os literalmente!
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