Há algumas décadas atrás, alguém a mando do
Instituto Português de Cinema, questionou-nos via telefone se éramos
amestradores de cães, já que necessitavam dum. Como fomos surpreendidos e
chocados pelo termo “amestrador”, fomos incorrectos com a funcionária que nos
interpelou, adiantando-lhe que amestrador seria provavelmente a senhora sua
mãe, desligando-lhe sem mais delongas o telefone na cara. Se fosse hoje
pensaríamos duas vezes, porque muitos adestradores são meros amestradores e a
confusão entre ambos é mais do que justificada, uma vez que o imediatismo tomou
conta da cinotecnia e as “técnicas” do zoomarine alagam as pistas de treino
canino, como se os cães fossem lobos marinhos, orcas ou golfinhos. Em tempos idos,
talvez por causa desta mesma confusão, determinada instituição, subvencionada
internacionalmente, destinada à preservação duma subvariedade do Lobo Cinzento,
nomeou para directora do seu centro uma bióloga marinha, o que remeteu para o
desastre a constituição das alcateias e condenou os lobos à vasectomia. Ainda
bem que isso só acontece lá fora! Por cá as coisas não vão melhor, porque os
privados do curso de medicina vão para veterinária (mesmo que nunca tenham
convivido com um animal por perto), intenta-se levantar um curso universitário
de adestramento baseado em truques (nem queremos imaginar como seriam as suas
praxes académicas), os etólogos exercem a sua especialidade nos “call-centers”
e o circo desceu às classes de trabalho, apesar dos animais dele terem
debandado.
Quase por
casualidade, porque a curiosidade norteia os nossos passos, deparámo-nos com um
condutor canino a treinar para provas, líder de um lupino a rasar o nanismo, de
seis meses de idade mas a aparentar três, que atrás de uns bagos de ração, o
seguia por toda a parte. Como o rapaz era dado à cavaqueira e certo dos seus
procedimentos, adiantou-nos: “o meu cão só come quando o treino, depois vai
para a box”. Verdade, verdadinha, o cão deglutia a ração como uma galinha papa
carochas! Espantados com a voracidade do bicho, inquirimos qual o nome da
ração, afinal uma já nossa conhecida, de origem peninsular, que usámos para
substituir os biscoitos, com menos 13% de proteína e menos 5.5% de gordura que
o recomendável para a idade do cachorro, o que explicou de imediato a sua perca
de massa corporal e o ar subnutrido que patenteava. Deixámos de utilizar essa
ração para o fim que adiantámos porque viciava os cachorros e impedia que
comecem o seu penso diário, factores que comprometiam o seu salutar
desenvolvimento. O nome dela nos não vem agora à memória mas é algo que rima ou
é parecido com “chilique”.
Temos por norma não julgar os métodos de outros mas
não vamos deixar passar este em
branco. O método do rapaz, à imitação de tantos outros agora
em voga, é um retorno ao passado, às origens da domesticação, jamais um passo
em frente para o melhor entendimento entre homens e cães. E se o método é novo
e erudito, então o circo e os malfadados amestradores circenses nunca
existiram, foram fábulas que criámos e que creditam o “déjà vu” a que
assistimos, uma vez que também eles procediam assim nos seus espectáculos.
Vulnerabilizar para dominar, para além de puro especicismo, é estabelecer a
escravatura pela necessidade de sobrevivência, cobardia que desmente quem se
diz preocupado com o bem-estar animal. Se outra coisa não espelhar, este
“método” rudimentar acaba por desnudar as dificuldades de comunicação entre
homens e cães, sujeitando os últimos a trabalhar para comer, o que transforma
os seus adestradores em tratadores ou em meros amestradores. Pondo de parte as
questões filosóficas e pedagógicas, importa ainda realçar os danos físicos de
tal prática, uma vez que os cães acabarão por sofrer alterações morfológicas,
não se desenvolvendo como até ali, estoirando precocemente pela má qualidade
das dietas, pela sobrecarga do esqueleto e pela substituição forçada dos seus
andamentos preferenciais que induzem à exaustão, violência que nos obriga ao
uso das palavras de outrem: “ se isto é método, esperem um pouco que eu vou ali
e já venho!”, salvaguardando assim a boa educação.
Os
defensores desta prática, por falta de maior erudição, acabam por privilegiar e
disfarçar os cães medíocres e desaproveitar os mais capazes, nos aspectos
físico e psicológico, obrigando os primeiros a figuras obrigatórias (pelo
condicionamento mecânico) e os segundos a não ir para além delas (mesmo que
próprios para outras formas de entendimento), o que acaba também por prejudicar
a selecção, já que a maioria destes praticantes, incapaz de identificar os
principais impulsos herdados nos cachorros, teima em escolhê-los pela
morfologia ou pela genealogia, desconsiderando o particular de cada um deles,
numa política de “parece-me bem!”, não lhes conseguindo ver as diferenças, até
porque valoriza o uso em detrimento do bem-estar e salvaguarda dos animais. O
que mais importará: encontrar o cão dos nossos sonhos ou desvendar os seus segredos,
limites, aptidões e defeitos? De outro modo, como poderemos escolher um melhor?
Um Chefe
de Esquadra da PSP nosso conhecido, afável de trato e pessoa experimentada no
seu serviço, disse-nos que há pessoas que vão deliberadamente às esquadras para
apanhar um par de estalos, o que muito nos espantou, adiantando ainda que
alguns o fazem com certa regularidade. E quando não são bem sucedidos nos seus
intentos, tudo fazem para saírem de lá saciados. Do mesmo modo,
inexplicavelmente, à gente que necessita de ir para a rua barafustar, porque
doutra maneira não se sente bem e poderá rebentar. Que grande descaramento tem
aquele que mandou castrar os seus cães, os mantém encerrados e isolados a maior
parte dos dias, não sai com eles à rua, distribui-lhes rações de má qualidade,
tem as suas vacinas em atraso e ainda por cima lhes dá fome para que obedeçam,
quando vai para as portas da Praça do Campo Pequeno insurgir-se contra o
sofrimento dado aos toiros. As touradas (que também não aprovamos) e esse
tratamento dado aos cães remontam à Antiguidade e mais recentemente ao Circo
Romano, onde até as feras passavam fome para devorarem os condenados. Poder-se-á
distinguir-se o grau de sofrimento de uns e de outros, mas não se poderá ilibar
quem violenta, abusa e atenta contra o bem-estar de todos os animais para
benefício próprio.
Como os
termos “amestrador” e “adestrador” aparecem como sinónimos um do outro no nosso
dicionário, importa clarificar a diferença entre ambos, valendo-nos para isso
do histórico de cada um deles, intrinsecamente ligado à sua prática e
objectivos. Amestrador é aquele que procura o domínio dos animais, sem se
preocupar com a sua salvaguarda, a partir dos seus instintos mais básicos no
intuito de alcançar para si proveito, aproveitando-se das suas respostas
naturais para fins diversos da coabitação, tarefa que começou com a
domesticação dos cães ou com a transformação do lobo em cão e que culminou com
os cães de espectáculo. Exemplos de amestradores são o mágico que tira o coelho
da cartola, o músico de rua que põe o cão a transportar a caixa das esmolas e
até aquele que põe os pombos a comer na sua mão.
Adestrador
é aquele que forma, torna hábil e ensina determinado animal para além das suas
respostas naturais e que transporta o seu viver social para a coabitação, valendo-se
para isso de uma relação de cumplicidade. Tem como objectivo dotar os animais
de meios que garantam a sua salvaguarda. Se subtrairmos ao adestramento esta
preocupação e seu objectivo principal, sobram apenas habilidades de cariz
circense ou a ele equivalentes. Qualquer disciplina cinotécnica digna desse
nome não dispensa esse cuidado, independentemente do serviço que é esperado do
cão. Para que isso aconteça torna-se imperativo o controlo dos instintos
caninos e o aproveitamento dos seus impulsos herdados, para que os cães possam
defender-se, não corram risco e vivam por mais tempo, o que irá obrigar ao uso
de diferentes linguagens e à aquisição de diferentes posturas para que os animais
apreendam a mensagem.
Atendendo ao sentimento gregário canino, isso só
será possível pela aceitação da liderança humana, aqui efectuada pela
coabitação, norteamento, cumplicidade, ajuda, exemplo, cuidado e reparo. Sempre
será abusivo, para além de cobarde, trabalho de amestrador, o treino canino que
se aproveita das carências e vulnerabilidade dos animais para alcançar o seu
domínio e que faz prática do suborno para extrair os seus objectivos. O
adestramento não se pode reduzir a uma ida à prateleira dos biscoitos no
supermercado e a uns quantos “chios” quando as coisas correm mal. Ao invés, enquanto
processo pedagógico que visa a capacitação binomial, ele adapta homens e cães
para o alcance doutros tipos de comunicação, exigindo dos primeiros maior
transformação para que sejam ouvidos e melhor compreendidos.
Que
transformações exige o adestramento dos comuns donos que se tornam condutores
dos seus cães? A primeira alteração é de natureza cultural e a mais difícil de
alcançar, porque o tratamento que hoje damos aos cães é relativamente recente e
muitos persistem em entendê-los como outros faziam até há bem pouco tempo,
sobrevalorizando o seu uso diante das suas necessidades, pressuposto geralmente
escondido por detrás duma manifesta indisponibilidade e que acaba também por
tramar o treino canino enquanto novidade. A transformação seguinte, também nada
fácil, é fazer de cada dono um líder responsável, obrigando-o ao uso acertado
da emoção e da ração enquanto pedagogo e de acordo com as respostas do seu fiel
amigo. A terceira transformação aponta para a substituição da linguagem e para
a aquisição da técnica que obrigam ao concurso de outras formas de comunicação,
diferentes entoações e novas posturas, o que geralmente leva os mais
resistentes à exclamação de ausência de dom, jeito, habilidade e a toda a sorte
de desculpas, nunca à falta de humildade, à ausência de curiosidade e empenho.
A quarta transformação aponta para o aumento da disponibilidade física, psicológica
e cognitiva dos condutores, para que melhor possam acompanhar os seus cães,
libertar-se dos seus entraves e conhecê-los tão qual são. A última
transformação, que muitos alcunham de transcendental e que poucos alcançam,
levá-los-á à alteração do seu modo de vida: à coabitação com os cães, à
aquisição de rotinas comuns, à avidez de conhecimento, ao apego aos
procedimentos, ao desejo de mais treinar e ao alcance de novos objectivos – o
adepto torna-se membro do clã!
Para que
o adestramento cumpra o seu objectivo principal, a salvaguarda dos cães, é
imperativo que a todos consiga valer, produzindo neles alteração por força dos
simulacros empregues, advindos de uma experiência feliz, variada e rica, próprios
para lhes fazer esquecer as experiências negativas anteriores ao treino e
capazes de os robustecer física e psicologicamente. Essas alterações passam
pela correcção de aprumos (quando tal é possível), pela melhoria dos seus
ritmos vitais, pelo aumento dos seus índices atléticos, pelo desenvolvimento da
envergadura, pela constituição binomial, pela sociabilização, pelo desempenho
em diferentes ecossistemas, pelo encorajar constante e pelo recurso sistemático
à supercompensação, porque importa transformar os fracos em fortes, regrar os
valentes, valer aos melhores e não desprezar nenhum cão, descobrindo em cada um
deles a sua genuína vocação e tornar todos impolutos e incorruptíveis. E se
isto é adestramento, facilmente se compreende porque são tantos os amestradores
e tão poucos os adestradores.
Como a palavra de ordem no adestramento é
“robustecer para resistir” e não “vulnerabilizar para dominar” (como tantos
outros entendem), importa preparar os cães para viverem ao nosso lado e
torná-los aptos para os desafios do nosso quotidiano, sempre em constante
novidade e com maior risco para eles. Assim, como primeira meta, há que
suavizar e se possível eliminar impropriedades de origem racial que obstem ao
salutar equilibro dos cães, tarefa altamente meritória que não dispensa, dentro
e fora de portas, tanto a familiarização quanto a sociabilização. Por outro
lado, porque todos os cães devem saber defender-se e alguns continuam a ser
adquiridos também para defesa dos donos e dos seus bens, importa dotá-los de
subsídios que lhes garantam essas condições em prol da sua sobrevivência,
subsídios muitas vezes para além da simples devolução da violência ou do comum
ataque à dentada, mais igualmente válidos e dissuasores.
Tudo o
que dissemos só é possível porque o adestramento é um processo de ensino
continuado, que se estende do nascimento até à morte dos cães, acompanhando-os
e adequando-os de acordo com os seus ciclos etários e com as dificuldades que
vão encontrando. Como o cão cai no nosso mundo quase de pára-quedas, é também
obrigação do adestramento suscitar-lhe respostas para além das naturais,
soluções que eventualmente encontraria em desespero, ainda que tiradas do
treino aturado, uma vez considerado o seu manancial genético, respeitada a sua
biomecânica e observados os princípios gerais da pedagogia relativos ao ensino
canino, visando a sua salvaguarda, prestação e auxílio, já que é criminoso usar
qualquer cão para além dos seus limites (ludibriado ou não) ou não o preparar
para os perigos que irá encontrar. Estamos em crer e julgamos não estar enganados,
que deveria ser o adestramento, tanto o geral quanto o específico, o primeiro
responsável pela escolha dos progenitores das distintas raças caninas, para que
através dos mais aptos, melhor se garantisse a transmissão das qualidades
inerentes ao bem-estar e desempenho de todos os cães, o que hoje infelizmente
raramente acontece e que no passado foi deveras observado.
Como garante da salvaguarda, do bem-estar, uso
exclusivo e superior prestação dos cães ao seu encargo, também para defesa e
resguardo dos donos, o adestramento deve oferecer e ensinar aos seus binómios
outras formas de linguagem para além da verbal, garantindo assim um ou mais
canais de comunicação limpos e abertos, já que as paredes têm ouvidos, a
transmissão telepática não é comum e a percepção extra-sensorial raramente
visita os binómios. Queremos aproveitar, agora que estamos a falar de
comunicação não verbal, para a agradecer o trabalho e o desempenho da Sr.ª
Margarida Jales com a Nail, uma pastora alemã lobeira já finada, porque durante
anos engrandeceu as nossas hostes e honrou o nosso ensino pelo uso da linguagem
gestual, transformando a obediência em arte e os movimentos caninos em bailado. O adestramento
é um trabalho oficinal que por vezes parece de outro mundo, muito embora
aconteça já neste, uma manifestação de amor que se estende a todos os animais
que alberga, porque os educa e ensina para que vivam felizes ao nosso lado sem
temores e certos do nosso auxílio. Tudo o que dissemos acerca do adestramento
não procurou consensos ou aplausos, quisemos somente fazer saber que existem
alternativas e estabelecer as diferenças entre adestradores e amestradores. A
propósito: os nossos cães comem em casa depois do treino, para não lutarem pela
posse do alimento, não aceitarem comida de qualquer um e não se acostumarem a
comer por lá (por vezes todo o cuidado é pouco).
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