sexta-feira, 20 de junho de 2014

SÓ COME NOS TREINOS!

Há algumas décadas atrás, alguém a mando do Instituto Português de Cinema, questionou-nos via telefone se éramos amestradores de cães, já que necessitavam dum. Como fomos surpreendidos e chocados pelo termo “amestrador”, fomos incorrectos com a funcionária que nos interpelou, adiantando-lhe que amestrador seria provavelmente a senhora sua mãe, desligando-lhe sem mais delongas o telefone na cara. Se fosse hoje pensaríamos duas vezes, porque muitos adestradores são meros amestradores e a confusão entre ambos é mais do que justificada, uma vez que o imediatismo tomou conta da cinotecnia e as “técnicas” do zoomarine alagam as pistas de treino canino, como se os cães fossem lobos marinhos, orcas ou golfinhos. Em tempos idos, talvez por causa desta mesma confusão, determinada instituição, subvencionada internacionalmente, destinada à preservação duma subvariedade do Lobo Cinzento, nomeou para directora do seu centro uma bióloga marinha, o que remeteu para o desastre a constituição das alcateias e condenou os lobos à vasectomia. Ainda bem que isso só acontece lá fora! Por cá as coisas não vão melhor, porque os privados do curso de medicina vão para veterinária (mesmo que nunca tenham convivido com um animal por perto), intenta-se levantar um curso universitário de adestramento baseado em truques (nem queremos imaginar como seriam as suas praxes académicas), os etólogos exercem a sua especialidade nos “call-centers” e o circo desceu às classes de trabalho, apesar dos animais dele terem debandado.
Quase por casualidade, porque a curiosidade norteia os nossos passos, deparámo-nos com um condutor canino a treinar para provas, líder de um lupino a rasar o nanismo, de seis meses de idade mas a aparentar três, que atrás de uns bagos de ração, o seguia por toda a parte. Como o rapaz era dado à cavaqueira e certo dos seus procedimentos, adiantou-nos: “o meu cão só come quando o treino, depois vai para a box”. Verdade, verdadinha, o cão deglutia a ração como uma galinha papa carochas! Espantados com a voracidade do bicho, inquirimos qual o nome da ração, afinal uma já nossa conhecida, de origem peninsular, que usámos para substituir os biscoitos, com menos 13% de proteína e menos 5.5% de gordura que o recomendável para a idade do cachorro, o que explicou de imediato a sua perca de massa corporal e o ar subnutrido que patenteava. Deixámos de utilizar essa ração para o fim que adiantámos porque viciava os cachorros e impedia que comecem o seu penso diário, factores que comprometiam o seu salutar desenvolvimento. O nome dela nos não vem agora à memória mas é algo que rima ou é parecido com “chilique”.
Temos por norma não julgar os métodos de outros mas não vamos deixar passar este em branco. O método do rapaz, à imitação de tantos outros agora em voga, é um retorno ao passado, às origens da domesticação, jamais um passo em frente para o melhor entendimento entre homens e cães. E se o método é novo e erudito, então o circo e os malfadados amestradores circenses nunca existiram, foram fábulas que criámos e que creditam o “déjà vu” a que assistimos, uma vez que também eles procediam assim nos seus espectáculos. Vulnerabilizar para dominar, para além de puro especicismo, é estabelecer a escravatura pela necessidade de sobrevivência, cobardia que desmente quem se diz preocupado com o bem-estar animal. Se outra coisa não espelhar, este “método” rudimentar acaba por desnudar as dificuldades de comunicação entre homens e cães, sujeitando os últimos a trabalhar para comer, o que transforma os seus adestradores em tratadores ou em meros amestradores. Pondo de parte as questões filosóficas e pedagógicas, importa ainda realçar os danos físicos de tal prática, uma vez que os cães acabarão por sofrer alterações morfológicas, não se desenvolvendo como até ali, estoirando precocemente pela má qualidade das dietas, pela sobrecarga do esqueleto e pela substituição forçada dos seus andamentos preferenciais que induzem à exaustão, violência que nos obriga ao uso das palavras de outrem: “ se isto é método, esperem um pouco que eu vou ali e já venho!”, salvaguardando assim a boa educação.
Os defensores desta prática, por falta de maior erudição, acabam por privilegiar e disfarçar os cães medíocres e desaproveitar os mais capazes, nos aspectos físico e psicológico, obrigando os primeiros a figuras obrigatórias (pelo condicionamento mecânico) e os segundos a não ir para além delas (mesmo que próprios para outras formas de entendimento), o que acaba também por prejudicar a selecção, já que a maioria destes praticantes, incapaz de identificar os principais impulsos herdados nos cachorros, teima em escolhê-los pela morfologia ou pela genealogia, desconsiderando o particular de cada um deles, numa política de “parece-me bem!”, não lhes conseguindo ver as diferenças, até porque valoriza o uso em detrimento do bem-estar e salvaguarda dos animais. O que mais importará: encontrar o cão dos nossos sonhos ou desvendar os seus segredos, limites, aptidões e defeitos? De outro modo, como poderemos escolher um melhor?
Um Chefe de Esquadra da PSP nosso conhecido, afável de trato e pessoa experimentada no seu serviço, disse-nos que há pessoas que vão deliberadamente às esquadras para apanhar um par de estalos, o que muito nos espantou, adiantando ainda que alguns o fazem com certa regularidade. E quando não são bem sucedidos nos seus intentos, tudo fazem para saírem de lá saciados. Do mesmo modo, inexplicavelmente, à gente que necessita de ir para a rua barafustar, porque doutra maneira não se sente bem e poderá rebentar. Que grande descaramento tem aquele que mandou castrar os seus cães, os mantém encerrados e isolados a maior parte dos dias, não sai com eles à rua, distribui-lhes rações de má qualidade, tem as suas vacinas em atraso e ainda por cima lhes dá fome para que obedeçam, quando vai para as portas da Praça do Campo Pequeno insurgir-se contra o sofrimento dado aos toiros. As touradas (que também não aprovamos) e esse tratamento dado aos cães remontam à Antiguidade e mais recentemente ao Circo Romano, onde até as feras passavam fome para devorarem os condenados. Poder-se-á distinguir-se o grau de sofrimento de uns e de outros, mas não se poderá ilibar quem violenta, abusa e atenta contra o bem-estar de todos os animais para benefício próprio.
Como os termos “amestrador” e “adestrador” aparecem como sinónimos um do outro no nosso dicionário, importa clarificar a diferença entre ambos, valendo-nos para isso do histórico de cada um deles, intrinsecamente ligado à sua prática e objectivos. Amestrador é aquele que procura o domínio dos animais, sem se preocupar com a sua salvaguarda, a partir dos seus instintos mais básicos no intuito de alcançar para si proveito, aproveitando-se das suas respostas naturais para fins diversos da coabitação, tarefa que começou com a domesticação dos cães ou com a transformação do lobo em cão e que culminou com os cães de espectáculo. Exemplos de amestradores são o mágico que tira o coelho da cartola, o músico de rua que põe o cão a transportar a caixa das esmolas e até aquele que põe os pombos a comer na sua mão.
Adestrador é aquele que forma, torna hábil e ensina determinado animal para além das suas respostas naturais e que transporta o seu viver social para a coabitação, valendo-se para isso de uma relação de cumplicidade. Tem como objectivo dotar os animais de meios que garantam a sua salvaguarda. Se subtrairmos ao adestramento esta preocupação e seu objectivo principal, sobram apenas habilidades de cariz circense ou a ele equivalentes. Qualquer disciplina cinotécnica digna desse nome não dispensa esse cuidado, independentemente do serviço que é esperado do cão. Para que isso aconteça torna-se imperativo o controlo dos instintos caninos e o aproveitamento dos seus impulsos herdados, para que os cães possam defender-se, não corram risco e vivam por mais tempo, o que irá obrigar ao uso de diferentes linguagens e à aquisição de diferentes posturas para que os animais apreendam a mensagem.
Atendendo ao sentimento gregário canino, isso só será possível pela aceitação da liderança humana, aqui efectuada pela coabitação, norteamento, cumplicidade, ajuda, exemplo, cuidado e reparo. Sempre será abusivo, para além de cobarde, trabalho de amestrador, o treino canino que se aproveita das carências e vulnerabilidade dos animais para alcançar o seu domínio e que faz prática do suborno para extrair os seus objectivos. O adestramento não se pode reduzir a uma ida à prateleira dos biscoitos no supermercado e a uns quantos “chios” quando as coisas correm mal. Ao invés, enquanto processo pedagógico que visa a capacitação binomial, ele adapta homens e cães para o alcance doutros tipos de comunicação, exigindo dos primeiros maior transformação para que sejam ouvidos e melhor compreendidos.
Que transformações exige o adestramento dos comuns donos que se tornam condutores dos seus cães? A primeira alteração é de natureza cultural e a mais difícil de alcançar, porque o tratamento que hoje damos aos cães é relativamente recente e muitos persistem em entendê-los como outros faziam até há bem pouco tempo, sobrevalorizando o seu uso diante das suas necessidades, pressuposto geralmente escondido por detrás duma manifesta indisponibilidade e que acaba também por tramar o treino canino enquanto novidade. A transformação seguinte, também nada fácil, é fazer de cada dono um líder responsável, obrigando-o ao uso acertado da emoção e da ração enquanto pedagogo e de acordo com as respostas do seu fiel amigo. A terceira transformação aponta para a substituição da linguagem e para a aquisição da técnica que obrigam ao concurso de outras formas de comunicação, diferentes entoações e novas posturas, o que geralmente leva os mais resistentes à exclamação de ausência de dom, jeito, habilidade e a toda a sorte de desculpas, nunca à falta de humildade, à ausência de curiosidade e empenho. A quarta transformação aponta para o aumento da disponibilidade física, psicológica e cognitiva dos condutores, para que melhor possam acompanhar os seus cães, libertar-se dos seus entraves e conhecê-los tão qual são. A última transformação, que muitos alcunham de transcendental e que poucos alcançam, levá-los-á à alteração do seu modo de vida: à coabitação com os cães, à aquisição de rotinas comuns, à avidez de conhecimento, ao apego aos procedimentos, ao desejo de mais treinar e ao alcance de novos objectivos – o adepto torna-se membro do clã!
Para que o adestramento cumpra o seu objectivo principal, a salvaguarda dos cães, é imperativo que a todos consiga valer, produzindo neles alteração por força dos simulacros empregues, advindos de uma experiência feliz, variada e rica, próprios para lhes fazer esquecer as experiências negativas anteriores ao treino e capazes de os robustecer física e psicologicamente. Essas alterações passam pela correcção de aprumos (quando tal é possível), pela melhoria dos seus ritmos vitais, pelo aumento dos seus índices atléticos, pelo desenvolvimento da envergadura, pela constituição binomial, pela sociabilização, pelo desempenho em diferentes ecossistemas, pelo encorajar constante e pelo recurso sistemático à supercompensação, porque importa transformar os fracos em fortes, regrar os valentes, valer aos melhores e não desprezar nenhum cão, descobrindo em cada um deles a sua genuína vocação e tornar todos impolutos e incorruptíveis. E se isto é adestramento, facilmente se compreende porque são tantos os amestradores e tão poucos os adestradores.
Como a palavra de ordem no adestramento é “robustecer para resistir” e não “vulnerabilizar para dominar” (como tantos outros entendem), importa preparar os cães para viverem ao nosso lado e torná-los aptos para os desafios do nosso quotidiano, sempre em constante novidade e com maior risco para eles. Assim, como primeira meta, há que suavizar e se possível eliminar impropriedades de origem racial que obstem ao salutar equilibro dos cães, tarefa altamente meritória que não dispensa, dentro e fora de portas, tanto a familiarização quanto a sociabilização. Por outro lado, porque todos os cães devem saber defender-se e alguns continuam a ser adquiridos também para defesa dos donos e dos seus bens, importa dotá-los de subsídios que lhes garantam essas condições em prol da sua sobrevivência, subsídios muitas vezes para além da simples devolução da violência ou do comum ataque à dentada, mais igualmente válidos e dissuasores.
Tudo o que dissemos só é possível porque o adestramento é um processo de ensino continuado, que se estende do nascimento até à morte dos cães, acompanhando-os e adequando-os de acordo com os seus ciclos etários e com as dificuldades que vão encontrando. Como o cão cai no nosso mundo quase de pára-quedas, é também obrigação do adestramento suscitar-lhe respostas para além das naturais, soluções que eventualmente encontraria em desespero, ainda que tiradas do treino aturado, uma vez considerado o seu manancial genético, respeitada a sua biomecânica e observados os princípios gerais da pedagogia relativos ao ensino canino, visando a sua salvaguarda, prestação e auxílio, já que é criminoso usar qualquer cão para além dos seus limites (ludibriado ou não) ou não o preparar para os perigos que irá encontrar. Estamos em crer e julgamos não estar enganados, que deveria ser o adestramento, tanto o geral quanto o específico, o primeiro responsável pela escolha dos progenitores das distintas raças caninas, para que através dos mais aptos, melhor se garantisse a transmissão das qualidades inerentes ao bem-estar e desempenho de todos os cães, o que hoje infelizmente raramente acontece e que no passado foi deveras observado.
Como garante da salvaguarda, do bem-estar, uso exclusivo e superior prestação dos cães ao seu encargo, também para defesa e resguardo dos donos, o adestramento deve oferecer e ensinar aos seus binómios outras formas de linguagem para além da verbal, garantindo assim um ou mais canais de comunicação limpos e abertos, já que as paredes têm ouvidos, a transmissão telepática não é comum e a percepção extra-sensorial raramente visita os binómios. Queremos aproveitar, agora que estamos a falar de comunicação não verbal, para a agradecer o trabalho e o desempenho da Sr.ª Margarida Jales com a Nail, uma pastora alemã lobeira já finada, porque durante anos engrandeceu as nossas hostes e honrou o nosso ensino pelo uso da linguagem gestual, transformando a obediência em arte e os movimentos caninos em bailado. O adestramento é um trabalho oficinal que por vezes parece de outro mundo, muito embora aconteça já neste, uma manifestação de amor que se estende a todos os animais que alberga, porque os educa e ensina para que vivam felizes ao nosso lado sem temores e certos do nosso auxílio. Tudo o que dissemos acerca do adestramento não procurou consensos ou aplausos, quisemos somente fazer saber que existem alternativas e estabelecer as diferenças entre adestradores e amestradores. A propósito: os nossos cães comem em casa depois do treino, para não lutarem pela posse do alimento, não aceitarem comida de qualquer um e não se acostumarem a comer por lá (por vezes todo o cuidado é pouco).

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