sábado, 14 de junho de 2014

ALIMENTAÇÃO, MORFOLOGIA E COMPORTAMENTO

Inquiria o Capuchinho Vermelho ao Lobo Mau porque tinha ele a boca tão grande, ao que o outro respondeu ser para o comer. Com este conto de fadas de origem europeia, que nos chegou através de Charles Perraut e dos Irmãos Grimm, introduzimos o tema de hoje: a possível relação entre a alimentação, a morfologia e o comportamento dos cães. Todos sabemos que um cão que mal usa os dentes para comer dificilmente os usará para sua defesa ou de terceiros, o que de imediato nos lança para a escolha acertada dos cachorros. Os cães com fraco impulso ao alimento, são por norma mais pequenos e com menor ossatura e envergadura, são mais instáveis e mais carentes do que os seus iguais que não apresentam dificuldades em comer, podendo intimidar-se injustificadamente e morder por medo, daí também a importância das tabelas de crescimento das raças, que nos indicam qual peso ideal para determinada altura e idade, segundo um padrão que reclama e sustenta determinadas características físicas e psicológicas. Convém não esquecer que o impulso ao alimento de um cachorro se encontra ligado a outros (também herdados) que lhe garantem a luta pela comida.
Disto cientes, os criadores caninos mais experimentados, depois de estabilizarem as suas linhas, depressa sabem calcular a partir das matriarcas e do peso dos cachorros à nascença, os seus pesos ideal, aceitável e reprovável até às 8 semanas, procedendo a desmames diversos de acordo com o peso encontrado, para que nenhum lá chegue com menos de 20% do seu peso aos 12 meses, o que a acontecer comprometeria a sua morfologia, comportamento e aptidão. Por outro lado, sabendo-se que o volume do estômago é sensivelmente igual ao do crânio dos cachorros, aproveitando-se da fase de maior plasticidade dos infantes, eles sabem que se os cachorros comerem mais, aumentando o seu estômago, o seu crânio também aumentará, contrariando quanto possível limitações de ordem genética. Infelizmente muitos criadores não sabem do seu ofício, havendo outros que sacam lucro a partir da magreza dos seus pupilos, pelo que por vezes mais vale comprar cachorros a particulares do que a criadores profissionais, já que uma criação séria dificilmente dará lucro, muito menos em épocas de crise.
Comida em excesso, obesidade, desaprumos, indisponibilidade e desinteresse sempre andaram de mãos dadas, contribuindo para o selamento do dorso, para a divergência de mãos, para o pé chato, para o jarrete de vaca, para o aparecimento de bolsas de líquido sinovial, para a displasia ambiental e para o agravamento da genética, assim como para o aumento dos ritmos vitais caninos (cardíaco e respiratório). A transformação de um animal côncavo em convexo é possível pela obesidade na fase de crescimento dos cães e está normalmente associada à ausência de exercício apropriado. As dietas mais ricas são destinadas aos cães que trabalham, consomem mais energia e que têm maior desgaste, não aos que não se mexem e cujos donos resistem a passeá-los. Um cão portador de um forte impulso ao alimento é obrigado ao exercício diário e a um conjunto de tarefas que o obriguem a mexer, porque doutro modo aprenderá ser manhoso, tornar-se-á bonacheirão, perderá atenção, refugiar-se-á para que não o aborreçam e poderá reagir negativamente ao incómodo, quer rosnando quer atacando, muito embora este comportamento pouco castigue os cães submissos e seja mais comum entre os dominantes.
As rações de baixo teor calórico são próprias para os cães menos activos, idosos ou castrados, são geralmente mais baratas, mais procuradas e têm maior saída, apesar de impróprias para cachorros em crescimento e para cães em constante actividade ou serviço. As dietas pobres para além de implicarem negativamente no crescimento e desenvolvimento dos cães, diminuindo o seu tamanho, porte, envergadura, autonomia e prestação, por insatisfação, tornam-nos quezilentos, ladrões e esquivos, mais sensíveis, menos resistentes, amedrontados e desconfiados, o que os coloca permanentemente em risco de lesão ou fractura, quando usados para além da sua vontade, podendo daí sobrar um ou mais traumas de difícil eliminação. A precariedade das dietas, um verdadeiro atentado ao bem-estar dos cães saudáveis e activos, é ainda responsável pelo rebentar do esqueleto, pela perca progressiva de actividade e pelo envelhecimento precoce dos animais.
Hoje mais do que nunca, os cães comem de tudo por toda a parte, como se vivêssemos no mundo ideal, o perigo não rondasse e toda a gente gostasse deles. São recompensados com biscoitos no treino, recebem iguarias nos espaços públicos, saltam para pegar comida e muitos intentam em dar-lhes de comer, despropósitos que lhes poderão ser fatais e que os colocam à mercê de qualquer envenenador, que tanto pode ser o vizinho do andar de cima como alguém que passa junto ao portão do nosso quintal. Infelizmente todos os anos morrem cães envenenados. Esta prática, que alguns julgam soberana na pedagogia do adestramento, tem facilitado a vida a muitos donos, que doutro modo dificilmente conseguiram educar os seus cães, por lhes faltar afeição, constância, disponibilidade, habilidade, liderança, paciência e técnica, tem vindo a formar cães gulosos e mais facilmente corruptíveis pela avidez de alimento, menos valias que abominamos diante da salvaguarda canina. Assim, entendemos que a distribuição de qualquer alimento cabe ao dono e deve acontecer dentro do espaço doméstico, preferencialmente no local destinado ao penso diário do cão ou dentro do prato para esse efeito, para que o animal despreze o suborno e não sucumba precocemente, meta e objectivo difíceis de alcançar quando acostumado a comer fora de portas.
A mais excelente das rações jamais suplantará um penso de comida bem confeccionada, se esta tiver os ingredientes apropriados, o percentual de proteína e gordura adequados, as vitaminas recomendadas e os minerais necessários aos cães. Contudo, como é mais dispendioso, carece de mais tempo e é menos prático, a esmagadora maioria dos proprietários caninos opta pela ração, que outra coisa não é que comida de substituição. E para que não restem dúvidas, basta dizer que os cães acostumados a pensos confeccionados, dificilmente transitarão para a ração e os acostumados à ração depressa a desaprovarão, se provarem comida confeccionada. Os cachorros criados com manjares confeccionados desenvolvem-se mais rápido e atingem maior envergadura e robustez do que os criados só a ração, melhorando a sua apresentação e aprumos, sem o concurso de qualquer fármaco. E como temos experiência disto, recomendamos para os cachorros um suplemento diário de comida confeccionada (reforço), particularmente para os menos desenvolvidos, tanto do ponto de vista físico como do psicológico, uma vez que qualquer cão defenderá mais depressa um prato de carne ou um osso que uma gamela de ração. Não estamos com isto a desaconselhar a ração, porque sempre a consumimos, ainda que déssemos prioridade às compostas por carne de borrego.
Por todo o lado há quem opte por dar carne ou carcaças cruas aos cães, alguns para recriarem o “Cão dos Baskerville” e outros para reencarnarem o “lobisomem das charnecas”, mas todos na esperança de tornarem os seus cães mais bravos pelo retorno ao atavismo. E nisto não estão completamente enganados e a empreitada sai-lhes de feição, porque esses manjares são produtos excedentes, logo baratos (quando não doados), sendo do agrado dos cães. Os alimentos crus apelam ao lobo por detrás de cada cão e possuem ainda o “condão” de despertar aqueles que se encontram adormecidos. Pelo contributo da carne crua podemos induzir os cães a ataques cirúrgicos e a distribuição de ossos opera o desenvolvimento do crânio e o aumento da capacidade de mordedura canina, vantagens que não dispensam uma liderança forte e um maior cuidado com os animais, porque podem comprometer a sua sociabilização, assilvestrar-se, revoltar-se, agir a moto próprio, adoecerem ou serem vítimas de várias parasitoses e intoxicações, uma vez que a carne em decomposição é o melhor dos chamarizes para toda a sorte de insectos. O consumo exclusivo de carne crua dota os cães de menor autonomia laboral, porque os obriga à ingestão de grandes quantidades e retarda a sua prontidão. Para além disso a sua imunidade é menor. E se a presença ostensiva canina não pode ser desprezada, os cães sujeitos a esta dieta intimidam pouco, porque por norma permanecem magros e tendem a esconder-se.
A qualidade da alimentação a distribuir aos cães, quer provenha da ração, da comida confeccionada ou do contributo de ambas, sempre influirá na sua apresentação, morfologia e comportamento, porque eles como nós vivem daquilo que comem. Se o aforismo “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és” tem alguma verdade, com menos margem de erro podemos afirmar: “vejo como estás e adivinho o que comes!” Alimente convenientemente o seu cão e tê-lo-á saudável e por mais tempo.

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