sábado, 28 de junho de 2014

O CÓDIGO

Chama-se código ao conjunto de comandos que garantem a comunicação entre homens e cães, em diferentes linguagens e por diversos meios, para acções instantâneas ou previamente garantidas pelo condicionamento, visando o uso destes animais para tarefas isoladas ou complementares (lúdicas, desportivas, comunitárias, terapêuticas, de segurança, salvamento, resgate, policiais, militares, etc.). Como o próprio nome indica, o código não deverá ser do conhecimento geral, a menos que o cão ou cães tenham sido adestrados para o bem de todos, aceitar diversos condutores ou para valer a um grupo particular de pessoas. Doutro modo, o seu domínio torna-se abusivo e poderá comprometer a salvaguarda, o controlo e o uso dos animais, pelo estabelecimento de vínculos estranhos à unidade binomial, provocando atrasos ou recuos no cumprimento das ordens, pela desatenção que induz à resistência e ao desprezo pela liderança. Caso cada um de nós fosse eterno, diante da melhor prestação canina, justificar-se-ia a entrega do código unicamente ao dono ou tratador, mas como não o somos, é de todo conveniente que uma segunda pessoa o conheça e use se necessário, preferencialmente alguém do agrado do cão, próxima do dono e com maior esperança de vida, para que o desaparecimento do líder não implique na morte ou eliminação do animal, como já aconteceu.
O ensino do código começa logo após a entrada do cachorro na nossa casa, uma aprendizagem comum que não dispensa a mútua observação, fornecida pela coabitação e pelos vínculos afectivos que pouco a pouco se vão estabelecendo entre o dono e o seu cão, responsáveis pela cumplicidade que irá possibilitar o trabalho acessório do animal, baseado em tarefas simples e do seu agrado, pela aceitação e mestria da paternidade pedagógica, que desprovida de despotismo, aproveita a dependência e faz uso da máquina sensorial do infante.
O primeiro comando de obediência a instalar num cachorro é a atribuição do seu nome. A partir dele se estabelecerá a comunicação e sobre ele assentarão os preceitos, normas e acções vindouras, funcionando como um verdadeiro código “PIN” para a sua activação. Diante de tamanha importância, urge perguntar: quem deverá conhecer o seu nome? Certamente não serão aqueles que raptam cães para depois angariarem alguns proventos, intentando ainda assaltar os seus donos, tampouco os que congeminam maltratá-los ou eliminá-los, valendo-se do suborno para os seus intentos. Por precaução, o cão na rua deve ser um “no name” e perante grave insistência, adquirir outro que não lhe diga respeito. O uso do nome do cão encontra-se restrito aos donos. Não obstante, é curioso reparar no número de cães com o seu nome gravado nas coleiras, provavelmente propriedade de gente confiada, que desconsidera o perigo pela inocência que não antevê a maldade. Melhor seria que lá colocassem o número de contacto dos donos e nada mais.
O código constrói-se gradual e pacientemente no lar e depois no treino, a partir dos vínculos afectivos que geram a experiência feliz e que não dispensam a recompensa, mediante o aproveitamento da coabitação, pelo desenvolvimento do impulso ao conhecimento e pela solicitação dos sentidos caninos. Tudo passa pela atribuição de nomes às acções, utensílios, brincadeiras, rotinas, regras e desafios que o cachorro vai conhecendo e que fazem parte do nosso mundo, usando-se em primeira mão a sua memória afectiva para alcançar a mecânica e facilitar a associativa, muito embora subsistam cachorros que só lá chegarão pela maior mecanicidade das acções (repetição).
Por razões ligadas à sobrevivência binomial, à sua operacionalidade e também para se evitar o uso indevido do cão, convém que o código aconteça em diferentes linguagens e que seja para os alheios pouco ou nada perceptível, independentemente da natureza dos comandos. Cada comando verbal deverá ter um equivalente mímico ou sonoro que despolete a mesma acção, operados pela pessoa do seu dono, directamente ou indirectamente, por meios mais sofisticados que garantam a pronta resposta animal à distância, quer o líder (emissor) se encontre presente ou não.
Visando a exclusividade do uso canino, a validade e a supremacia do código, todos os comandos deverão, depois de instalados e assimilados pelo cão, ser aprovados na contra-ordem. A contra-ordem consiste na emissão dos comandos por terceiros, que conhecedores do código, intentam accioná-lo para proveito próprio, tudo fazendo para que o animal lhes obedeça, primeiro na presença do dono e depois na sua ausência. Esta manobra carece de bom senso tendo em conta o seu objectivo e só deverá ser efectuada na certeza do animal se ensurdecer para os outros, já que não é um teste mas uma certificação, pelo que deve acontecer gradualmente para não gerar confusão no animal.
Um código é tanto ou mais rico quanto o número de comandos que comportar. Em média, somando a prestação dos seis grupos morfológicos caninos, os códigos albergam entre 27 e 35 comandos, muito embora alguns indivíduos de certas raças possam ultrapassar uma centena e outros se quedem apenas entre os 15 e os 18. Como testámos vários indivíduos de todas as raças portuguesas, exceptuando o Cão de Gado Transmontano, o Cão da Serra de Aires foi o que mais se notabilizou, fornecendo indivíduos capazes de absorver mais 80 comandos em diferentes linguagens, sendo nisto seguido pelo Cão de Fila de S. Miguel, a despeito de faltar firmeza ao primeiro e algum equilíbrio ao segundo diante do exercício da contra-ordem, porque o primeiro tende para a letargia e o segundo para o ataque. Das raças estrangeiras testadas, e só testámos as mais comuns entre nós, a que mais se evidenciou foi o Border Collie, seguido muito à distância pelo Cão de Pastor Alemão. Se tomarmos em consideração o valor médio dos códigos a instalar nos cães (de 27 a 35 comandos), 20% deles deverão reportar-se à sua salvaguarda, porque doutro modo estaríamos a valorizar o uso em detrimento da sobrevivência dos animais.
O aumento dos comandos a inserir num código irá depender do impulso ao conhecimento de cada indivíduo canino, do aproveitamento dos seus ciclos infantis e da sua plasticidade, do tipo de instalação doméstica de que foi alvo, da diversidade das suas experiências, da cumplicidade havida e da riqueza do treino, o que justifica o início da instalação do código logo após os 2 meses de idade nos cachorros. A escolha dos comandos a instalar deverá considerar a vocação de cada cão para o fim a que se destina e a instalação de cada um deles só deverá acontecer depois da peremptória instalação daquele que o antecedeu. O código, a seu tempo, à imitação da obediência que se deseja inquestionável mesmo nas circunstâncias mais extraordinárias, deve ser usado nas situações menos vantajosas e onde a comunicação é mais difícil, o que muito irá contribuir para o desenvolvimento da máquina sensorial dos cães e para a acuidade técnica dos seus líderes. Todo e qualquer código instalado num cão necessita de reavivamento e treino, particularmente os comandos menos utilizados e os ligados à salvaguarda dos animais. Por outro lado, tanto a sua reciclagem quanto a sua actualização, podem tornar-se indispensáveis perante a novidade de tarefas, perigos e desafios. 
Para que um código mais depressa se instale, não se veja encurtado e surta efeito, torna-se imprescindível que os donos usem a mesma ordem para determinado exercício ou figura e não comandos diferentes para a mesma acção, para que o erro não usurpe o lugar dos acertos e o vício o dos comandos, já que o primeiro dos entraves prá instalação dum código resulta da confusão de quem emite as ordens e compromete as respostas. Atribuir diferentes signos para a mesma ordem é diminuir o seu número no código, tornando-o mais pobre e menos abrangente, criar barreiras à comunicação e perplexidade nos animais.
Falar de códigos é falar também de descodificação, processo ligado à reeducação que procura a transformação, alteração, substituição ou eliminação de códigos indesejáveis, trabalho árduo, demorado e de difícil sucesso, quando se transformaram em modo de vida, foram tirados a partir dos instintos, restritos à pessoa dos donos e enraizados pelo peso dos anos. Sempre será mais fácil transformá-los do que eliminá-los, tendo em conta a sobrevivência dos animais seus portadores, uma vez que o ensurdecimento de alguns pode induzi-los à morte. Primeiro há que destrinçar o que é natural do que é produto ambiental e depois, a partir do peso genético, libertar os cães do condicionamento anterior, dando-lhe outro final pela troca de alvos. Nos casos mais graves e entre cães mais rijos, a descodificação não dispensará a alteração do viver social, a novidade das rotinas e a troca de alojamento destes indivíduos, confusão que normalmente os torna dependentes e por demais vulneráveis. Este processo não se encontra isento de confrontações e sempre acarreta algum risco para o reeducador e outros agentes de ensino, pelo que deve ser entregue a um adestrador experimentado, paciente e precavido, hábil na instalação de códigos para que não venha a ser iludido pelas pequenas vitórias de fácil retrocesso.
O adestramento outra coisa não é que um processo de codificação, porque ensina uma nova linguagem para o entendimento recíproco entre homens e cães. A erudição dos códigos sempre estará ligada à dos seus criadores, emissores e executantes. Os homens apossam-se dos cães pelo contributo dos códigos e os cães absorvê-los-ão como modo de vida, honrando-os mais do que a maioria dos homens, porque vieram para servir e nisso buscam aprovação.

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