Quando a sobrevivência se torna imperativa, tudo
aquilo que a dificulta se transforma em traste, assim tem acontecido a muitos
cães neste momento de crise e contenção que ninguém poupa e a todos aflige.
Todos sabemos que a miséria nunca chega só, que para além de fazer vítimas,
sempre procura um ou mais bodes expiatórios, para aliviar de alguma forma
aqueles que atinge, porque ninguém gosta de “ficar com elas” (com as ofensas) e
todos precisamos de descarregar. Com a penúria no horizonte, subvertem-se
velhos valores e criam-se novos princípios, desprezam-se parâmetros e
adoptam-se outras posturas, porque o tempo é de guerra e ninguém sabe como
acordará amanhã (que o digam os desempregados com mais de 45 anos de idade,
novos demais para a reforma e considerados velhos para trabalhar, que nem ousam
dizer o que lhes passa pela cabeça). A luta por “um lugar ao sol” exalta os
ânimos e a fricção estala entre vizinhos, de algum modo concorrentes uns dos
outros e à mão para a refrega (se a Polícia acorresse a todas as solicitações,
não lhe sobraria tempo nem agentes).
Um vizinho dum proprietário canino, que não se sabe
quem, porque a canalhice nunca foi tão anónima, decidiu queixar-se da cadela
desse indivíduo, argumentando que o animal passa os dias a ladrar e que não o
deixar descansar, a si e aos seus. A polícia foi chamada e deixou um ultimato
ao dono: “O Senhor tem uma semana para que a cadela deixe de ladar. Após esse
período seremos obrigados a cumprir com os procedimentos e disposições em
vigor!” Perante o que foi dito, não sabemos se foi apresentada uma queixa
formal e também ignoramos da sua necessidade processual, muito embora o
possamos saber e devamos, já que a ignorância da Lei está longe de ser um
factor atenuante (todos somos obrigados a conhecer as leis que nos regem).
Logo, logo o saberemos! Pelo mesmo incómodo passou uma ex-aluna nossa, uma
jovem a viver sozinha, proprietária de dois cães e com os vizinhos do andar de
baixo “à perna” (foram bater-lhe à porta várias vezes), que se queixavam do
roçar das unhas dos cães no soalho, tendo também eles cães e por sinal bastante
barulhentos. No dia em que ao barulho das unhas dos cães se juntou o troar dos
tacões dum homem, a harmonia voltou e as queixas cessaram.
Para melhor se compreender o problema da cadela
visada, uma Pastora Alemã de 4 anos de idade, descreveremos em seguida o seu
viver até à presente data, algumas das suas características e aquilo que nos
foi dado a observar. Estamos a falar de uma cadela grande, de pouca
envergadura, logo pernalta, magra de apresentação e com o pêlo queimado,
excepcionalmente atenta, desencantada pela trela e amiga dos seus donos, hoje
confinada a uma varanda e entregue a si própria, oriunda duma quinta onde até
há pouco tempo vivia com a sua família de adopção, mudando-se com ela para o
apartamento onde agora se encontra. Apesar de não ter sido sujeita a qualquer
tipo de ensino, aprendeu pela convivência as regras que lhe foram estipuladas,
mantendo-se fiel e de alguma forma protectora. Inserida num agregado familiar
constituído por um casal e dois filhos, sendo que um deles trabalha e o outro
ainda não atingiu a puberdade. O pai, um homem dos seus cinquenta bem pesados, recém
sofreu um acidente cardiovascular e a mãe denota uma disponibilidade física
também condicionada, não obstante todos adoram o animal, o que não implica que
sistematicamente levem amiúde a cadela à rua e a passeiem pelo tempo desejável,
já que as suas características morfológicas obstam de alguma forma para que
isso aconteça, sendo ainda agravadas por questões ligadas à saúde duns e aos
afazeres profissionais de outros. Mercê da pressão dos vizinhos, que tudo
indica ser sufocante, apesar do apego à cadela, os donos ponderaram o seu
descarte, desejando oferecê-la a quem cuidasse bem dela, desejo que ainda não
cumpriram.
No nosso
entender, o latir da cadela, aqui mal entendido como ladrar, deve-se à
alteração da sua vida social e à troca forçada de território, factores ligados
à ausência dos líderes e ao sentimento territorial presente na maioria dos
cães. O confinamento na varanda agrava substancialmente a situação, porque
impossibilita o contacto com os donos, deixando o animal entregue a si próprio,
exposto e vulnerável, num território exíguo, desprotegido, desconfortável e
estranho para a cadela, isto se ali passar a maior parte do tempo. O latir do
animal espelha a sua infelicidade e descontentamento - a sua má sorte, porque a
sua adaptação não é automática e não irá acontecer sem a ajuda dos donos, mercê
da alteração das rotinas e perante
tamanha novidade. Estamos em crer que a dita varanda é por demais ensolarada ou
a dieta da cadela tem sido muito pobre (magra). Pode ser que as duas condições
se conjuguem, uma vez que o animal apresenta o manto avermelhado apesar de ser
de coloração negra uniforme. Observámos a cadela 3 dias e 2 noites,
sujeitámo-la a dormir com um dos donos numa tenda e não lhe ouvimos qualquer
pedido de súplica ou manifestação de descontentamento, somente vimos que trazia
fome e que não hesitava em ir aos caixotes do lixo (vimo-la comer 1 kg de
ração, ir roubar ossos de frango e ainda lutar pela posse do suplemento
vitamínico). De extraordinário a relatar, só a ausência de sociabilização com
os outros cães, manifesta em vários ataques à dentada e sem pré-aviso, o que
não causa estranheza atendendo ao seu isolamento anterior na quinta.
Sensíveis ao problema da cadela e ao drama dos
donos, até porque instámos com eles para que não se desfizessem do animal, o
que a acontecer não lhe traria maior felicidade ou sorte (muito pelo
contrário), adiantámos para eles as seguintes medidas que agora dividimos com
os nossos leitores, foram elas: o treino
da cadela, a alteração da sua instalação doméstica, a prática de passeios com
maior duração, formação do espólio do animal e a fixação de novas rotinas familiares,
procedimentos que no nosso entender produzirão a alteração necessária para a
melhor integração do animal, que irão contribuir para que deixe de latir, se
sinta feliz e bem instalada.
Aconselhámos o treino da cadela porque não
apresenta dificuldades de aprendizagem e ainda é relativamente nova, para o
operar da sua sociabilização e substituir a autonomia silvestre que patenteia pela
cativação à liderança. Sugerimos a alteração da sua instalação doméstica para
que não se sinta só e passe a maior parte do tempo junto à família, indo
somente para a varanda quando quiser ou se tornar imperativo. Recomendámos
passeios mais longos e com maior duração para diminuir o fardo do
encarceramento e tornar assim mais desejável o seu reduto, enquanto abrigo e
local de observação e descanso. Propusemos a criação de um espólio para o
animal como meio para se sentir feliz, vendo-se desse modo rodeada de objectos
da sua eleição que funcionarão como troféus. Apelámos à fixação de novas
rotinas familiares para que os horários da cadela venham a ser respeitados e as
rotinas familiares se transformem de fácil leitura para ela, o que facilitará a
sua aceitação mercê da experiência que induz ao condicionamento.
Não
dissemos, mas podíamos ter dito e não nos acanhamos: a maneira mais rápida para
fixar uma fêmea adulta num local, quando tal fôr possível e daí não resulte
maior transtorno, é a de fazer que ali tenha uma ninhada, pois o instinto
maternal e o impulso à defesa facilitarão a sua adopção, desde que ele apresente
o mínimo de condições (o bem-estar da mãe, a proximidade do alimento, a
ocultação dos cachorros e por aí adiante).
Não duvidamos que o problema será solucionado, mesmo desprezando esta última
opção, que é extremada, desde que os donos observem e ponham em prática o que atrás
dissemos. Oxalá assim procedam!
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