terça-feira, 1 de outubro de 2013

UMA SEMANA PARA DEIXAR DE LADRAR

Quando a sobrevivência se torna imperativa, tudo aquilo que a dificulta se transforma em traste, assim tem acontecido a muitos cães neste momento de crise e contenção que ninguém poupa e a todos aflige. Todos sabemos que a miséria nunca chega só, que para além de fazer vítimas, sempre procura um ou mais bodes expiatórios, para aliviar de alguma forma aqueles que atinge, porque ninguém gosta de “ficar com elas” (com as ofensas) e todos precisamos de descarregar. Com a penúria no horizonte, subvertem-se velhos valores e criam-se novos princípios, desprezam-se parâmetros e adoptam-se outras posturas, porque o tempo é de guerra e ninguém sabe como acordará amanhã (que o digam os desempregados com mais de 45 anos de idade, novos demais para a reforma e considerados velhos para trabalhar, que nem ousam dizer o que lhes passa pela cabeça). A luta por “um lugar ao sol” exalta os ânimos e a fricção estala entre vizinhos, de algum modo concorrentes uns dos outros e à mão para a refrega (se a Polícia acorresse a todas as solicitações, não lhe sobraria tempo nem agentes).
Um vizinho dum proprietário canino, que não se sabe quem, porque a canalhice nunca foi tão anónima, decidiu queixar-se da cadela desse indivíduo, argumentando que o animal passa os dias a ladrar e que não o deixar descansar, a si e aos seus. A polícia foi chamada e deixou um ultimato ao dono: “O Senhor tem uma semana para que a cadela deixe de ladar. Após esse período seremos obrigados a cumprir com os procedimentos e disposições em vigor!” Perante o que foi dito, não sabemos se foi apresentada uma queixa formal e também ignoramos da sua necessidade processual, muito embora o possamos saber e devamos, já que a ignorância da Lei está longe de ser um factor atenuante (todos somos obrigados a conhecer as leis que nos regem). Logo, logo o saberemos! Pelo mesmo incómodo passou uma ex-aluna nossa, uma jovem a viver sozinha, proprietária de dois cães e com os vizinhos do andar de baixo “à perna” (foram bater-lhe à porta várias vezes), que se queixavam do roçar das unhas dos cães no soalho, tendo também eles cães e por sinal bastante barulhentos. No dia em que ao barulho das unhas dos cães se juntou o troar dos tacões dum homem, a harmonia voltou e as queixas cessaram.
Para melhor se compreender o problema da cadela visada, uma Pastora Alemã de 4 anos de idade, descreveremos em seguida o seu viver até à presente data, algumas das suas características e aquilo que nos foi dado a observar. Estamos a falar de uma cadela grande, de pouca envergadura, logo pernalta, magra de apresentação e com o pêlo queimado, excepcionalmente atenta, desencantada pela trela e amiga dos seus donos, hoje confinada a uma varanda e entregue a si própria, oriunda duma quinta onde até há pouco tempo vivia com a sua família de adopção, mudando-se com ela para o apartamento onde agora se encontra. Apesar de não ter sido sujeita a qualquer tipo de ensino, aprendeu pela convivência as regras que lhe foram estipuladas, mantendo-se fiel e de alguma forma protectora. Inserida num agregado familiar constituído por um casal e dois filhos, sendo que um deles trabalha e o outro ainda não atingiu a puberdade. O pai, um homem dos seus cinquenta bem pesados, recém sofreu um acidente cardiovascular e a mãe denota uma disponibilidade física também condicionada, não obstante todos adoram o animal, o que não implica que sistematicamente levem amiúde a cadela à rua e a passeiem pelo tempo desejável, já que as suas características morfológicas obstam de alguma forma para que isso aconteça, sendo ainda agravadas por questões ligadas à saúde duns e aos afazeres profissionais de outros. Mercê da pressão dos vizinhos, que tudo indica ser sufocante, apesar do apego à cadela, os donos ponderaram o seu descarte, desejando oferecê-la a quem cuidasse bem dela, desejo que ainda não cumpriram.
No nosso entender, o latir da cadela, aqui mal entendido como ladrar, deve-se à alteração da sua vida social e à troca forçada de território, factores ligados à ausência dos líderes e ao sentimento territorial presente na maioria dos cães. O confinamento na varanda agrava substancialmente a situação, porque impossibilita o contacto com os donos, deixando o animal entregue a si próprio, exposto e vulnerável, num território exíguo, desprotegido, desconfortável e estranho para a cadela, isto se ali passar a maior parte do tempo. O latir do animal espelha a sua infelicidade e descontentamento - a sua má sorte, porque a sua adaptação não é automática e não irá acontecer sem a ajuda dos donos, mercê da alteração das  rotinas e perante tamanha novidade. Estamos em crer que a dita varanda é por demais ensolarada ou a dieta da cadela tem sido muito pobre (magra). Pode ser que as duas condições se conjuguem, uma vez que o animal apresenta o manto avermelhado apesar de ser de coloração negra uniforme. Observámos a cadela 3 dias e 2 noites, sujeitámo-la a dormir com um dos donos numa tenda e não lhe ouvimos qualquer pedido de súplica ou manifestação de descontentamento, somente vimos que trazia fome e que não hesitava em ir aos caixotes do lixo (vimo-la comer 1 kg de ração, ir roubar ossos de frango e ainda lutar pela posse do suplemento vitamínico). De extraordinário a relatar, só a ausência de sociabilização com os outros cães, manifesta em vários ataques à dentada e sem pré-aviso, o que não causa estranheza atendendo ao seu isolamento anterior na quinta.
Sensíveis ao problema da cadela e ao drama dos donos, até porque instámos com eles para que não se desfizessem do animal, o que a acontecer não lhe traria maior felicidade ou sorte (muito pelo contrário), adiantámos para eles as seguintes medidas que agora dividimos com os nossos leitores, foram elas: o treino da cadela, a alteração da sua instalação doméstica, a prática de passeios com maior duração, formação do espólio do animal e a fixação de novas rotinas familiares, procedimentos que no nosso entender produzirão a alteração necessária para a melhor integração do animal, que irão contribuir para que deixe de latir, se sinta feliz e bem instalada.
Aconselhámos o treino da cadela porque não apresenta dificuldades de aprendizagem e ainda é relativamente nova, para o operar da sua sociabilização e substituir a autonomia silvestre que patenteia pela cativação à liderança. Sugerimos a alteração da sua instalação doméstica para que não se sinta só e passe a maior parte do tempo junto à família, indo somente para a varanda quando quiser ou se tornar imperativo. Recomendámos passeios mais longos e com maior duração para diminuir o fardo do encarceramento e tornar assim mais desejável o seu reduto, enquanto abrigo e local de observação e descanso. Propusemos a criação de um espólio para o animal como meio para se sentir feliz, vendo-se desse modo rodeada de objectos da sua eleição que funcionarão como troféus. Apelámos à fixação de novas rotinas familiares para que os horários da cadela venham a ser respeitados e as rotinas familiares se transformem de fácil leitura para ela, o que facilitará a sua aceitação mercê da experiência que induz ao condicionamento.
Não dissemos, mas podíamos ter dito e não nos acanhamos: a maneira mais rápida para fixar uma fêmea adulta num local, quando tal fôr possível e daí não resulte maior transtorno, é a de fazer que ali tenha uma ninhada, pois o instinto maternal e o impulso à defesa facilitarão a sua adopção, desde que ele apresente o mínimo de condições (o bem-estar da mãe, a proximidade do alimento, a ocultação dos cachorros  e por aí adiante). Não duvidamos que o problema será solucionado, mesmo desprezando esta última opção, que é extremada, desde que os donos observem e ponham em prática o que atrás dissemos. Oxalá assim procedam!

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