quinta-feira, 3 de outubro de 2013

UM AMIGO CHAMADO CHEYENNE

Por norma não publicamos relatos ou histórias alheias, abominamos o plágio e não gostamos de publicar artigos sem saber a sua origem. O artigo que publicaremos a seguir chegou-nos através de um amigo, um companheiro do Campus e de carteira na Escola Superior de Teologia do então Instituto Concódia de São Paulo (IELB), estando hoje, ao que tudo indica, colocado como Pastor-Missionário num país fronteiriço com o Brasil. O texto chegou-nos em castelhano, muito embora se anteveja a sua origem norte-americana. Na impossibilidade de o traduzirmos do original, o que o tornaria mais fidedigno e gratificante para nós, ousámos traduzi-lo da sua versão castelhana: “Un padre, una hija y un perro”, tendo o cuidado de menos o desvirtuar e de lhe manter as enfases, certos da sua actualidade e importância, enquanto relato que expõe uma das mais-valias da terapia canina. Oxalá o tenhamos conseguido, seja ele elucidante e do agrado de todos.
“Cuidado! Quase bateste no carro ao teu lado. Porque será que não fazes nada bem feito?” Olhei para ele e de imediato não lhe disse nada, aquelas palavras magoaram-me imenso, mais do que me houvesse dado uma bofetada. Depois fitei-o, estava sentado ao meu lado, pronto a desafiar-me e à espera de resposta. Senti um nó na garganta e desviei o olhar, porque não queria alimentar e não aguentava mais discussões. “Eu vi o carro, Pai. Por favor, não grite comigo quando estou a conduzir”- disse-lhe comedida e calmamente, com uma calma que verdadeiramente não sentia. Ele olhou para mim, virou a cabeça e permaneceu em silêncio o resto da viagem. Já em casa, abandonei o televisor e saí para ordenar os meus pensamentos e reflectir. Ressoou um trovão distante como se a minha agitação interna nele ecoasse. Uma dúvida me atormentava: como deveria proceder com o meu pai?
Ele tinha sido lenhador nos Estados de Washington e Oregon. Estava acostumado a viver ao ar livre e em contacto com a natureza e gostava de medir foças com ela. Entrou em várias competições extenuantes para lenhadores e ganhou muitas delas. As prateleiras da sua casa estavam cheias de troféus que provavam a sua capacidade. Entretanto os anos passaram implacáveis. A primeira vez que não conseguiu levantar um pesado tronco, fez disso uma piada, mas em seguida, no mesmo dia, vi-o lá fora sozinho a tentar levantá-lo. Ficava irritado quando alguém brincava com facto de estar a ficar velho ou quando não era capaz de fazer algo que em jovem fazia. Quatro dias antes dos seus sessenta e sete anos de idade, teve um ataque cardíaco. Foi levado para o hospital de ambulância, enquanto um paramédico tratava da ressuscitação dos seus ritmos vitais. No hospital foi levado para as urgências, teve sorte e sobreviveu. No entanto algo dentro dele havia morrido: o seu entusiasmo pela vida havia desaparecido. Negava-se obstinadamente a cumprir as ordens do médico, rejeitando com sarcasmos e insultos as sugestões e ofertas de ajuda. O número dos seus visitantes diminuiu e finalmente ficou só.
Eu e o meu Marido Dick convidámo-lo para vir viver connosco na nossa granja, esperando que a vida no campo o fizesse ganhar alento. Uma semana depois lamentámos o convite, porque nada lhe parecia bem e criticava tudo aquilo que eu fazia. Senti-me frustrada e deprimida, acabando por descarregar a minha raiva no meu marido. Alarmado, Dick procurou o Pastor e explicou-lhe a situação. Ele deus-nos algumas orientações e conselhos. No final de cada consulta, ele orava, pedindo a Deus para acalmar a mente perturbada do meu pai. Mas os meses passaram e Deus ficou em silêncio, pelo menos podia dizer-me o que fazer.
No dia seguinte à última consulta pastoral, sentei-me com a lista dos telefones á frente e liguei para cada um dos hospitais psiquiátricos que nela se encontravam. Expliquei o meu problema para todas as vozes simpáticas que me atenderam. Quando já estava a perder a esperança, uma dessas vozes amigas de repente exclamou: “ Acabei de ler algo que a pode ajudar, deixe-me ir buscar o artigo…”. Ouvi tudo o que ela lia. O artigo descrevia um estudo surpreendente feito numa clínica geriátrica. Nele se dizia que todos os idosos tratados contra a depressão crónica melhoraram excepcionalmente o seu comportamento, quando lhes foi dada a responsabilidade de cuidarem dum cão.
Fui à cidade para ver os cães destinados à adopção. Depois de preencher um formulário, fui levada por um funcionário fardado até às boxes onde se encontravam os animais. O cheiro a desinfectante encheu-me o nariz quando entrei nos corredores repletos de canis. Cada um continha de 5 a 7 cães. Havia-os de pelo comprido, encaracolado, negros e outros que pulavam, tentando alcançar-me. Observei meticulasomente cada um deles, mas nenhum me agradou, por serem grandes ou pequenos, ou por terem demasiado pêlo e  assim por diante. Quando cheguei à última box, deparei-me com um Pointer que se levantou com alguma dificuldade, veio na minha direcção e sentou-se. Aquele cão pertencia a uma das raças mais aristocráticas do mundo canino, apesar da sua apresentação parecer uma caricatura dela. Os anos tinham-lhe mesclado o focinho e a cabeça de cinzento, os ossos dos seus quadris sobressaíam da sua pele como triângulos irregulares. Mas foram os seus olhos que me chamaram à atenção, calmos e límpidos, olhando fixamente para mim.
O que me diz deste? O funcionário intrigado, olhou para o cão e abanou a cabeça. “Ele é um pouco estranho. Apareceu não se sabe donde e sentou-se junto ao nosso portão da frente. Deixámo-lo entrar na esperança de que alguém o viesse reclamar. Já lá vão duas semanas e ninguém veio reclamá-lo. O seu tempo acaba amanhã”, disse ele como se não houvesse mais nada a fazer. À medida que aquelas palavras entravam na minha cabeça, virei-me para o homem horrorizada e perguntei-lhe: “Está dizer que vai ser morto? Baixando a voz, ele respondeu-me: “Minha Senhora, são as regras. Não há lugar para todos os cães não reclamados”. Olhei para o Pointer mais uma vez. Os seus calmos olhos castanhos aguardavam a minha decisão. “Vou levá-lo”, disse-lhe eu, conduzindo depois até casa, com o cão sentado no banco dianteiro ao lado do meu.
Ao chegar a casa, toquei a buzina duas vezes e quando ajudava o cão a descer, apareceu o meu pai na varanda da frente. “Olha o que eu te troiuxe, Papá!”, disse-lhe entusiasmada. O meu pai olhou para o cão e pôs uma cara de desgosto, retorquindo: “ Se eu quisesse um cão, já o teria ido buscar e escolheria um bem melhor do que esse saco de ossos. Fica tu com ele, eu não o quero”, agitando o seu braço com desdém e dirigindo-se para casa. A raiva cresceu dentro de mim, os músculos da minha garganta apertaram-se e senti o pulsar do meu coração nas têmporas. “É melhor que te acostumes com ele, Papá, porque ele vai ficar connosco! “ Ele pura e simplemente me ignorou. “Ouviste o que te disse, Papá?  Gritei-lhe. Ao ouvir estas palavras, ele ficou danado, apertou as mãos uma contra a outra e fechou-as, enquanto os seus olhos transbordavam ódio.
Ficámos parados a olhar um para o outro, fixamente como dois duelistas, quando de repente, o Pointer me escapou da mão, e mancando, se acercou do meu pai, sentando-se na sua frente. Então, devagar e com muito cuidado, levantou a sua pata dianteira. A mandíbula do meu pai tremeu ao reparar naquela pata levantada, a confusão substituiu a ira presente nos seus olhos, enquanto o Pointer esperava pacientemente. O meu pai depressa se ajoelhou, abraçando o animal. Foi o princípio de uma forte e intíma amizade. Pôs-lhe o nome de Cheyenne e juntos exploraram as redondezas, passando longas horas a caminhar por trilhos empoeirados, a pescar saborosas trutas nas margens dos rios, usufruindo assim de longos momentos de reflexão. Até para a igreja iam juntos, meu pai sentado num banco e o Cheyenne deitado silencioso a seus pés. Tornaram-se inseparáveis nos três anos seguintes, a amargura do meu pai desapareceu e os dois fizeram muitos amigos.
Então, numa noite, já bem tarde, estranhei sentir o nariz frio de Cheyenne, revolvendo os nossos cobertores. Ele nunca tinha entrado no nosso quarto à noite. Acordei o Dick, coloquei o meu robe e corri para o quarto do meu pai. Ele estava na sua cama com a face serena, mas o seu espírito já havia partido silenciosamente, nalgum momento durante a noite. Dois dias mais tarde, a minha dor foi ainda mais profunda, quando descobri o Cheyenne estendido e morto, junto à cama do meu pai. Envolvi o seu corpo no tapete sobre o qual sempre dormiu. Enquanto eu e o Dick o enterrávamos, perto do seu lugar favorito de pesca, agradeci-lhe pela ajuda que me havia dado, por ter devolvido a paz e a tranquilidade ao meu pai.
A manhã do funeral do meu pai, amanheceu nublada e sombria. O dia estava como eu me sentia, pensei, enquanto caminhava em direcção à fila dos bancos destinados á família. Fiquei surpreendida por ver a quantidade de amigos que o meu pai e o Cheyenne tinham feito. O Pastor começou o elogio do falecido. Foi um tributo a meu pai e ao cão que havia transformado a sua vida. Depois o Pastor citou Hebreus 13.2: “Não vos esqueçais da hospitalidade, porque através dela alguns, não o sabendo, hospedaram anjos”. “Muitas vezes agradeci a Deus por me ter enviado um anjo”, disse. Então percebi como tudo se encaixava, completando as peças dum puzzle que eu não havia concluído: aquela amável e simpática voz que me leu o artigo sobre a clínica geriátrica. A inesperada aparição do Cheyenne no lugar dos cães para adopção. A sua calma aceitação e completa devoção ao meu pai, e a proximidade das suas mortes. E de repente compreendi, dei-me conta que, certamente, Deus ouviu as minhas orações que pediam a Sua ajuda.
A vida é muito curta para se fazer dela um drama: Ri com força. Ama com sinceridade e perdoa rapidamente. Vive enquanto estás vivo. Perdoa agora, àqueles que te fazem chorar. Ninguém sabe se terás uma segunda oportunidade. Deus responde às nossas orações segundo o Seu propósito… Não à nossa maneira.


Sem comentários:

Enviar um comentário