Sempre nos perguntam qual o cão ou
raça da nossa preferência, se houve algum cujas façanhas não esquecemos e que
ainda guardamos com saudade no nosso coração. É natural que pensem, pelo tanto
que queremos e admiramos a raça, que seja o Cão de Pastor Alemão o nosso eleito
e nisso não se enganam. Contudo, em termos individuais, vem-nos à memória o cão
mais extraordinário que alguma vez tivemos: o Roger, um Rottweiler mais tarde
alcunhado por “Sargento”, que nos foi oferecido com 1 ano de idade. Por
respeito ao seu canil de origem, por sinal bastante afamado, não iremos aqui
mencionar o seu nome nem tão pouco o número de registo no LOP, porque não
queremos deitar achas para a fogueira num País onde todos tropeçam uns nos
outros, talvez por sermos poucos.
O Roger não era um Rottweiler de
encher o olho, era até pequeno para a raça, mas o que lhe faltava de
apresentação, sobrava-lhe em carácter, força e valentia. Ficámos com ele para
evitar que fosse abatido, já que o seu dono, um brasileiro com uma pizzaria lá
para os lados da IC19, havia colocado o destino do cão nesses termos, depois do
Roger ter atacado o infante lá de casa. Quando o cão nos foi entregue,
avisaram-nos que ele detestava duas coisas: tomar banho e que lhe fizessem
festas na barriga. Desprezando tal aviso, no mesmo dia, porque a reeducação
tardava, fui fazer-lhe festas onde detestava, acabando por levar 18 pontos na
mão esquerda, episódio que não me deixou ressentido e me fez interessar mais
ainda pelo cão. Pouco a pouco, em grande parte pela cumplicidade e pela
comunhão de vida, o cão foi aceitando a nova liderança e começou a revelar-se
um companheiro de valor inestimável.
Certo dia, ainda com poucos dias de
casa, num passeio pelo pinhal, sem que ninguém lhe tenha dado ordem para isso,
começou a abocanhar pinhas e a colocá-las num monte. A pessoa que me
acompanhava admirou-se do facto e tirou uma das pinhas amontoadas, acção que
desagradou ao cão, que de imediato a jogou ao chão, recuperando e transportando
a pinha para onde a havia deixado. A extraordinária territorialidade que
revelava, ao ser convenientemente aproveitada, depois da liderança ter sido
aceite, possibilitou o uso do cão muito para além do esperado.
Tinha por hábito, já com o cão
condicionado nisso, no intervalo das nossas caminhadas, ir comer uma sandwich
ricamente aviada a uma tasca da zona. De propósito, efectuava o pagamento com
uma nota para receber o troco em moedas. Se por acaso o dono da tasca não me
desse o troco, e experimentámos isso algumas vezes, o cão saltava para cima do
balcão, encostava-o à parede e não o largava até que me devolvesse o que era
meu. Certa vez, por ocasião dumas festas populares num lugarejo, porque o cão
já se encontrava sociabilizado e extremamente obediente, um conhecido meu, já
com os copos, diz-me: “Oh pá! Leva daqui o babalú. Ainda se isso fosse um cão a
sério! “. Associei-me à brincadeira e dei o comando de “retrassa” ao Roger, que
ao agarrar e sacudir o banco corrido, pregou com seis convivas no chão,
terminando assim, apressadamente, com a sua gula por sardinhas assadas
Troquei de instalações no alto do
Verão, a temperatura rondava os 35º graus centígrados e eu andava a espetar
paus de madeira tratada com 2.5m de altura e a esticar rede que ainda hoje
perdura. O cão acusava o calor e deitava-se ao meu lado. Sozinho e sem qualquer
tipo de ajuda dizia para mim mesmo: “como seria bom se alguém aparecesse para
me ajudar”. E não é que apareceu! Vindo do nada, chega-me um rapazola dos seus
dezoito anos, disposto a ajudar-me (hoje terá 35). Acertámos em dividir o
trabalho e a ele só caberia o transporte dos paus arrumados por detrás do
barracão. Assim que ele foi buscar o primeiro, e ainda vinha a meio caminho, o
Roger correu para ele e atirou-o ao chão, abocanhou-lhe o pau e levou-o de
volta, exactamente para o mesmo sítio onde antes se encontrava, apesar do peso
e do mau jeito. É evidente que o meu pedido de desculpas não evitou a perca
súbita do tão desejado ajudante.
Se o particular cognitivo do cão era
razão de espanto, a sua capacidade atlética não lhe ficava atrás, pois passava
os dias a nadar dentro da piscina destinada aos cães, saindo de marcha atrás
para não escorregar e a acartar um maço de bater calçada, que exibia amiúde, confiante
e alegre. Ganhou o nome de sargento à conta da frase de um aluno nosso: “O que
escapa ao chefe, não se escapa ao sargento!”, porque quando algum cão se
escapava ou abandonava qualquer figura de imobilização, dentro do círculo de
instrução, o Roger ia buscá-lo e rebocava-o pela trela até à pessoa do
instrutor.
Infelizmente durou pouco e teve uma
morte estúpida, causando-nos um desgosto que ainda hoje perdura.
No final do Verão de 95, quando nos
encontrávamos a delimitar a pista de Agility, estranhamente, o Roger
desapareceu sem deixar rasto. Durante uma semana efectuamos buscas no intuito
de o encontrar, infelizmente sem sucesso. Dez dias depois, um dos nossos
vizinhos diz-nos: “Está ali um cão grande afogado no meu poço, calculo eu que
deve ser vosso!”. Calculámos logo quem fosse e as nossas suspeitas estavam certas, era o Roger que ali
jazia, inchado e inerte, bem diferente do que fora e acabado para sempre.
Morreu a 100 metros de nós, num poço que desconhecíamos, encoberto por silvas e
sem muros, a nadar até à exaustão, aflito e incapaz de pedir socorro. Espero que
haja um céu para os cães, e se houver, eu sei que à entrada dele, a receber os
recém-chegados, estará lá o meu sargento a dar-lhes as boas vindas.
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