segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

SIM, EU ACREDITO NO CÃO MACACO!


Pour moi sont tous le même chien et les différences qui peuvent avoir sont dues à différentes sélections opérées dans differents lieux geographiques” – assim falou um canicultor gaulês, à mesa do café, acerca das origens do Cão de Serra de Aires, quando questionado sobre a possível contribuição para a formação da raça dos Cães de Água (portugueses e espanhóis), do Pastor dos Pirinéus e do Briard. Por cá ninguém tem certezas quanto à sua origem, considerando-a uma variante das acima citadas ou resultante do beneficiamento de algum delas, no século passado ou nos anteriores. É evidente que a raça já andava pelas serras do Alentejo muito antes do surgimento dos cães do Conde de Castro Guimarães (briards), muito embora não nos custe acreditar que a sua aparência tenha sido ligeiramente diferente da actual. É nossa convicção e fazendo jus ao que disse o Francês, que o Serra d’Aires, os Briard, o Cão de Gado dos Pirinéus e os Cães de Água, têm uma origem comum e que ela aponta para um cão originalmente destinado à pastorícia, designado por “Turco”, oriundo dos Balcãs e difundido no Mediterrâneo pelos comerciantes otomanos. Quanto a isto, e não sabemos porque ainda não foi feito, suspeitamos que por razões económicas, o levantamento do DNA resolverá todas as dúvidas, as relativas a este cão sem sub-pêlo e às raças suas congêneres.
 
Mas mais importante que a origem é o potencial do cão, a sua extraordinária capacidade de aprendizagem, rusticidade e resistência, factores que aliados à fidelidade incontestável ao dono, à rapidez funcional, rara atenção e forte sentimento territorial, o transformam num excelente cão de trabalho, apesar de pouco visto e muito menos utilizado. A somar a isto, e que é de suma importância, atendendo às variedades cromáticas admitidas no seu estalão, a raça está longe de vir a sofrer os problemas endogâmicos que hoje vitimam a maioria dos cães com pedigree. Esperamos que os seus criadores tenham aprendido com os erros doutros e não optem pela consanguinidade, destruindo desse modo o rico património genético que receberam.
 
Estamos em crer que a pouca proliferação urbana da raça se deve ao falso aviso de que não serve para viver em apartamentos e que necessita de grandes passeios diários. Por outro lado, muita gente tende a confundir rusticidade com falta de higiene, ausência de companheirismo e propensão silvestre, o que sendo mentira se afasta da realidade. Todos os cães necessitam e adoram longos passeios diários, a menos que a selecção humana os haja incapacitado para isso. Precisará um cão caçador de menos exercício diário que um Serra de Aires? E um whippet? O que tanto faz engordar os retrievers? Se nos humanos se aconselha uma caminhada diária de 3km para a conservação dos índices atléticos, os cães na sua generalidade irão precisar de 5, porque são excursionistas e nasceram para bater território. A ausência de uma verdadeira excursão diária é a primeira responsável pelos desacatos ou prejuízos domésticos levados a cabo pelos cães, que espelham dessa forma a sua revolta.
A rusticidade presente no Serra de Aires, por má compreensão dos seus proprietários, tem isentado a raça da cumplicidade necessária à constituição binomial e duma selecção mais consentânea com as disciplinas básicas do adestramento, porque o cão é remetido para a quinta, monte ou rebanho e cresce longe da coabitação necessitária para o desenvolvimento dos vínculos afectivos que denunciarão todo o seu potencial. Será que os cães não sobrevivem pela experiência directa? Assim sendo, o que norteará os beneficiamentos dentro da raça: somente a estética ou também a parceria que garante a utilidade? Uma coisa é certa: os Serra de Aires criados nos apartamentos nada ficam a dever, em termos de prestação laboral e resultados, aos cães mais afamados, rivalizando com eles nos lugares de topo. Apesar disso, porque a obediência dá trabalho e a rusticidade serve de desculpa, poucos são os Serra de Aires que alguma vez frequentaram uma escola canina, como se os cães não fizessem o que querem quando não lhes dizem o que fazer!
Também se diz por aí, à guisa de conselho, numa altura em que já ninguém acredita em papões, que não se devem deixar estes cães sozinhos com as crianças. Será que um cachorro criado ao lado de um bebé se transformará num lobo mau? Com mais facilidade vestiria essa pele quando criado ao lado das ovelhas, facto que nunca aconteceu. A rusticidade da raça é uma vantagem que aponta para a força, recuperação, resistência, qualidade de vida e longevidade, e que nunca deverá servir para o isolamento e ausência de cuidados, quer eles sejam pedagógicos, sociais ou outros. Há quem diga ainda que este cão, enquanto cão de guarda, por ser inteligente e teimoso, é difícil de treinar, o que nos parece absurdo diante daquilo que é e se espera de um verdadeiro guardião, já que essas duas qualidades são essenciais para a sua sobrevivência e serviço, porque doutra maneira não resistiria ao suborno e ao envenenamento, não surpreenderia os intrusos, não assimilaria novos conteúdos de ensino e bem depressa abandonaria as suas funções. Ao contrário de outros cães, devido à fácil sociabilização, o Cão da Serra de Aires, trabalha sem dificuldade com outros cães, o que é uma vantagem quando se procura uma matilha funcional, já que a maioria das heterogêneas tem-se revelado de pouco préstimo e de dúbio resultado.
O verdadeiro problema do Serra de Aires reside no facto de ser tão meigo quanto desconfiado, fenómeno agravado pela pouca resistência à dor e pelo medo ao castigo, isto se intentarmos fazer dele um bom guardião, pressupondo o contra-ataque e a repetição das acções, porque é mais defensivo que ofensivo pelos limites da sua morfologia, particularidade advinda da ligeira envergadura e fraca potência de mordedura, o que o impossibilita de enfrentar alvos substancialmente maiores e mais fortes quando em oposição. Mas é para isso que cá temos os molossos, os alanos e os lupinos. O Serra de Aires nasceu para o bardo, para reunir o rebanho ou para congregar a sua família adoptiva, agregado que avisará atempadamente diante de um perigo iminente ou circunstância estranha. Queira Deus que assim continue! O problema da desconfiança pode ser ultrapassado pela soma de duas estratégias: por uma coabitação mais próxima e incisiva (que permite um estudo mais aprofundado dos cães), e pela contribuição das distintas variedades cromáticas presentes na raça, já que os cães pretos são mais sociáveis e os lobeiros mais arrediços e independentes. Com 3/8 de preto-afogueado na construção a evidência do problema é praticamente nula. Também o Pastor Alemão teve na sua origem cães pastores de pêlo crespo ou de arame, provavelmente descendentes da mesma raiz, legado que os Pastores Belgas ainda conservam através do Laekenois.
No passado recente, por volta dos anos sessenta, época dourada dos marchantes e negociantes de gado, ambos praticamente extintos ou em vias de extinção pelo encerramento das feiras a “céu aberto”, o gado alentejano era encaminhado para os arrabaldes saloios por ser amplamente procurado. Com ele chegavam também os cães do sul, os resultantes do cruzamento entre o Serra de Aires e do Rafeiro Alentejano, molossos na verdadeira acepção da palavra, “finos como aguardente”, conforme se dizia na gíria em função da sua esperteza, bravura e versatilidade. Esses rafeiros foram alcunhados de “4 olhos” por serem pretos e terem por cima de cada olho uma leve pigmentação afogueada, lembrando os antigos Rottweilers. Eram simultaneamente pastores e guardas de camionetas e ainda hoje as suas façanhas são relembradas. Também era comum encontrá-los entre os ciganos, atrelados às carroças e amplamente musculados. Num ápice desapareceram, desaproveitados e sem deixar rasto. Hoje são poucos os cães de raça indefinida resultantes da hibridação com o Serra de Aires, sendo mais fácil encontrar neles alguma ascendência em Podengo, Husky, Pastor Alemão, Pitbull e nalgumas raças miniatura. Falámos deste assunto porque pela hibridação também se conhece uma raça, todo o seu potencial, origem, mutações e história. Mas voltemo-nos para o Serra de Aires, e agora para a sua análise técnico-funcional, tendo como parâmetros os demais cães nacionais e os estrangeiros mais vistos no adestramento, nas vertentes sensorial, psicológica, cognitiva, social, morfológica e atlética.
Do ponto de vista sensorial o olfacto rivaliza com a audição pelo sentido director, havendo cães que usam mais um dos sentidos em prejuízo do outro, constituindo dois grupos distintos, a quem não é a alheio o tipo de instalação doméstica. Por norma, os cães caseiros usam mais o ouvido e os de campo o nariz, muito embora a extraordinária audição da raça, ligada ao tipo de eixos craniofaciais superiores que apresenta, se encontre bem acima da presente no Cão de Água Português, o que garante ao Serra de Aires estar em constante alerta e atenção, condições essenciais para a prontidão de qualquer serviço (em igualdade de circunstâncias com o CPA). O seu campo visual e visão monocular são médios e a sua acuidade aumenta com a transição dos andamentos naturais. Cão de extraordinária sensibilidade, acusa o toque e evita o embate. È propensamente tímido e desconfiado, mais tímido que o Border Collie e mais desconfiado que o Cão de Água. Pode ser arredio e necessita de uma boa instalação doméstica, fixa pouco e prefere observar, evita ser surpreendido e aparece de surpresa. Reage aos estímulos e obriga ao reforço positivo na sua educação e aprimoramento. Quando acossado produz ataques defensivos, desvia-se das provocações e só passa à ofensiva na presença do dono ou dentro do seu reduto. Pode obrigar à exclusividade de tratamento e não vê com bons olhos a repartição do seu espaço e pertences. Tolera bem os fenómenos naturais e as alterações por eles produzidas, é de tendência noctívaga e adora deslocar-se em campo aberto. Assimila sem dificuldade as rotinas e trabalha essencialmente pela memória afectiva, obriga a alguma novidade no trabalho sistemático e tende à autonomia. Precisa de tempo para a sociabilização e tende a eleger o seu líder e o seu grupo.
 
Do ponto de vista cognitivo é um assombro, não tanto como o Poodle, mas anda lá perto. Associa sem dificuldade os objectos às acções, tende a compreender os donos pelas suas expressões mímicas, responde muito bem aos comandos sonoros, não necessita de muito treino para a assimilação dos comandos ou figuras, consegue absorver em média 32 comandos e dentro deles um sem número de variantes. É um transportador nato e um exímio pastor. Como cão territorial que é, a sua sociabilização deve ser levada a sério, porque se ela for por água abaixo o aproveitamento do cão é nulo ou quase nulo, porque a desconfiança que gera o stress irá impedir a concentração necessária ao seu desempenho e ofuscar as mais-valias do seu manancial genético. Mais desconfiado do que belicoso, ele é mais arisco com os cães do que com os humanos. Não apresenta grandes dificuldades de sociabilização com os restantes animais domésticos, isto se desde cedo se familiarizar com eles.
A morfologia do Cão de Serra de Aires propicia andamentos leves e de fácil transição, tendo ainda a particularidade de transitar directamente do passo para o galope. O cão é pouco rectangular, forte de espádua (com uma flexibilidade extraordinária) e a sua garupa é ligeiramente descaída. As angulações traseiras são de média angulação e as suas patas estão preparadas para os pisos mais duros, acidentados e irregulares, porque a sua constituição é forte e assenta em “pé de gato”, vantagens que lhe garantem também uma marcha suspensa, rasgada e quase inaudível, segundo as características lupino-molossóides que apresenta. Apesar de ser rápido, é na resistência que reside a sua maior virtude, não só contra as doenças, mas também nas grandes caminhadas onde a sua marcha dificilmente abranda, porque normalmente apresenta baixa frequência de batimentos cardíacos. Mais do que para o Agility, o Cão de Serra de Aires poderá alcançar destaque no canicross ou na endurance e constituir-se num excelente cão de detecção tanto em terra como no mar. No que à disciplina de guarda diz respeito, este cão pastor terá melhores desempenhos como cão de alarme e defesa pessoal. Sempre será melhor na obediência dinâmica do que na linear e mais depressa absorverá os automatismos direccionais do que os de imobilização. Para além de tudo isto, ainda consegue manter os índices laborais em amplitudes térmicas entre os - 6 e os 45º centígrados. A velocidade que também o caracteriza, é advinda do seu coeficiente de envergadura que oscila dos machos para as fêmeas de 2.7 para 3.3 (índice de massa corporal), o que o coloca em igualdade com os Pastores Belgas e abaixo do peso atlético da maioria das raças caninas de médio porte. E muito mais haveria para dizer!
Para os cidadãos que não dispensam a coabitação de cães dentro dos seus lares, o Serra de Aires apresenta duas vantagens pouco comuns na maioria das raças caninas, uma higiénica e outra económica que importa considerar. A higiénica pretende-se com o facto de não ter subpêlo, não estando assim sujeito aos períodos de muda e à desagradável queda de pêlo a que obriga. A económica reside no facto de desnecessitar de uma dieta muito rica e por isso mesmo mais dispendiosa, já que se satisfaz e responde plenamente com rações de índice calórico mais baixo, o que lhe permite suportar (por mais tempo) períodos de austeridade, o que nos tempos que correm é como ouro sobre azul. Para além de não atentar contra a saúde e de não castigar a carteira, este cão, por ser leve e de andamentos pouco denunciados, irá poupar-nos incómodos junto dos vizinhos, o que o torna mais do que recomendável nesta crise, pródiga em fazer tempestades dentro de copos de água e em confrontos “por dá cá aquela palha!”

Eu acredito no cão macaco, assim designado por expressões, atitudes e movimentos tipicamente simiescos, factores intimamente ligados ao formato da sua cabeça, distância interocular, jogo de mãos, disposição da espádua e elasticidade de movimentos, enquanto cão de companhia, desporto e utilidade. Também acredito nele porque ainda respira saúde e dificilmente virá a ser estragado ou adulterado pelas mutações que afectam grande número das actuais raças caninas. Sei que sobreviverá, por muitos e longos anos, graças à sua rusticidade, resistência e adaptabilidade, características extraordinárias que ligam a longevidade doutros tempos à actual persistência na novidade de desafios. Temos cão!

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