terça-feira, 22 de setembro de 2009

::: Dono que se passa, Cão que se perde! :::

Em tempos ídos, quando os picadeiros eram escuros e austeros como templos, funcionando como escolas iniciáticas, uma frase repetia-se pelas suas paredes: “todo o cavaleiro que se excede, perde o direito a ser obedecido.” Desconhecemos o autor do pensamento, mas para além da nossa ignorância, o seu conteúdo introduz-nos perfeitamente ao tema de hoje, intencionalmente ligado à relação causa-efeito, quando o líder perde as estribeiras e desanca sobre o cão. Afortunadamente a situação é cada vez mais rara, porque a sociedade evoluiu, a filosofia de ensino mudou, a pedagogia é outra e a violência tende a ser banida. Não obstante, na confusão ordinária entre a emoção e a razão, porque os proprietários de cães são gente sensível, sempre aparece alguém que se equivoca e atraiçoa os seus próprios sentimentos, que exasperado, descarrega no animal aquilo que não consegue suportar. De facto, nenhuma lei consegue alterar a natureza do homem, ela apenas identifica, desnuda e sanciona os seus erros, dando voz às vítimas e operando o seu reparo. Mas como podemos sossegar os cães, quando vivem presos ao passado e não conseguem abraçar a esperança?

Ainda antes da resposta, importa identificar e compreender os intervenientes no processo, trazer à tona o seu particular, as suas emoções e sentimentos mais ocultos, para que a exposição do desaire opere o seu desaparecimento. Se tal não for possível, pelo menos que diminua ou atrase a sua ocorrência, pela explanação das razões que induzem o inteligente à mudança, face ao desnudo dos seus actos criminosos. E como gente desta laia luta contra si própria, num combate desigual, o reparo deve ser constante e toda a atenção é pouca. É isso que diz a sabedoria popular: “cesteiro que faz um cesto, faz um cento”. Dependendo da gravidade da agressão, segundo a NEP nº 2 em uso na Acendura, a expulsão do condutor pode acontecer por reincidência ou ser automática. Aproveita-se a ocasião para relembrar aos alunos da existência das NEP’S (Normas de Execução Permanente), que fazem parte do nosso Regimento Interno e devem ser do conhecimento geral.

A obrigação de se fazer entender pelo cão e a exigida relação de paridade entre os condutores escolares, causam transtornos aos mais competitivos e afectam os socialmente melhor sucedidos, pelo incómodo do lugar comum e pelo reclamado direito à diferença. Como o desconforto obsta à humildade, perante o insucesso, alguns desnudam a sua natureza agressiva, encapotada na máscara quotidiana e geralmente invisível aos outros. Mercê da contrariedade que os vulgariza, porque a impotência é manifesta, a impropriedade dos seus actos leva-os à procura de outros culpados. Sempre que nos debruçamos sobre esta situação, lembramo-nos de uma história, contada por alguém que já esquecemos. Ela começa por uma pergunta: “Sabe qual é a diferença entre o soldado de infantaria e do cavalaria? É muito simples! Na infantaria o capitão manda vir com o tenente, este com o sargento, o sargento descarrega no cabo, o cabo desanca o soldado e este aguenta-se à bronca. Mas na cavalaria é diferente! O soldado ainda tem o cavalo para lhe dar um valente pontapé na pança!“

Desaguisados deste tipo podem ter uma origem psicológica, encontrando-se relacionados com o locus de controlo externo, geralmente cativo a uma predisposição inata ou adquirido por influências ambientais. Gente com estas características, raramente aceita as suas culpas e atribui aos outros a causa dos seus erros ou desaires. Ainda que os cães tenham um reclamado uso terapêutico, não podemos pactuar com adultos que se comportam como crianças, consentindo na sua agressão aos cães. Contrariamente aos animais, a maioria dos condutores chegam-nos já adulta, com os méritos e lacunas próprias da sua individualidade, segundo o seu legado genético e particular pedagógico. Ensinar cães é fácil, reeducar adultos é que é difícil!
E perante a “façanha”, como se sentirão os cães?
A agressão é geralmente perpetrada por um cobarde, que certo dos seus intentos, sabe que não será respondido à letra. Doutro modo, pensaria duas vezes ou pediria ajuda, salvaguardando-se e dispensando a justiça privada. Por causa disto, as agressões sobre indivíduos muito-dominantes ou dominantes são raras! Como a maioria dos cães pertence ao grupo dos submissos, o exercício da violência física, pela alteração ou quebra dos vínculos afectivos, leva-os à desconfiança e ao temor, à alteração de sentimentos visível nos animais de carroça. Se eu bato num cão para correr, o que sucederá? Duas coisas podem acontecer: ou o animal põe-se em fuga ou cada vez corre menos! Se eu agrido um animal porque não vem, quando o chamo, o que se seguirá? Das duas uma: ou virá cabisbaixo ou fugirá cada vez mais! A porrada é um remanescente primitivo, uma tendência animal que nos expõe e envergonha, colocando-nos abaixo daqueles que pretendemos ensinar.

Gente mesquinha sempre visa comparações, nem que seja para se justificar. Assim torna-se importante relembrar a Pedagogia Geral de Ensino, os Princípios Fundamentais do Treino Canino, nomeadamente o Princípio da Individualização que diz: “Cada cão possui uma individualidade biológica e psicológica, que reage e se adapta de forma diferente a exercícios de treino semelhantes”. Isto remete-nos para a 1ª Fase, já que qualquer exercício ou figura se encontra dependente da tarefa anterior, do seu sucesso ou insucesso, da carga horária dispendida, do seu reavivamento e modus operandi. Sempre que um objectivo não é alcançado, há que retornar às metas anteriores que o viabilizam. À paulada não se educam cães nem crianças!

E já agora: poderá o Adestrador usar de violência física contra os cães que lhe são confiados?
Se for conhecedor do seu ofício, certamente repudiará esse procedimento, usando-o somente quando se tornar imperativo e depois de esgotados todos os procedimentos, como medida excepcional: quando a integridade de condutores e cães estiver em risco ou o seu socorro for urgente. Tal qual um comandante de um navio, o adestrador deve ser o último a abandonar o barco e o primeiro a tomar a sua defesa. Nenhum adestrador pode ter medo de cães, porque a liberdade dos cobardes leva a extrema submissão dos inocentes. Até na reeducação a violência física é desprezível, porque se procura ensinar e evitar a confrontação. A supremacia da inteligência deve imperar sobre a mecânica instintiva. Nisto assentam os pilares do adestramento.
Mal comparados, alguns condutores de cães são como cavaleiros iniciados, que ao desprezarem o volteio, quando sofrem de desequilíbrio, clamam pelas esporas e sonham com epopeias. E como só a cumplicidade gera a parceria, só a capacitação dos condutores pode engrandecer o ensino canino. Um gesto impensado praticado por um líder, pode neutralizar todas as suas acções positivas, anteriores ou posteriores, e comprometer definitivamente a união binomial, porque os cães são essencialmente a experiência que têm!

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