quarta-feira, 8 de abril de 2009

::: Reflexão sobre a perigosidade dos Cães :::

§ 1º

O Decreto-Lei n.º 312/2003, de 17 de Dezembro (alterado pela Lei n.º 49/2007, de 31 de Agosto), estabelece o regime jurídico de detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos como animais de companhia, visando a que lhes “sejam proporcionados os meios de alojamento e maneio adequados, de forma a evitar-se, tanto quanto possível, a ocorrência de situações de perigo não desejáveis”. Sustenta-se o diploma na “convicção de que a perigosidade canina, mais que aquela que seja eventualmente inerente à sua raça ou cruzamento de raças, se prende com factores muitas vezes relacionados com o tipo de treino que lhes é ministrado e com a ausência de socialização a que os mesmos são sujeitos”.

§ 2º

Animal perigoso, para efeito da lei, é qualquer animal que tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa, que tenha ferido gravemente ou morto outro animal fora da propriedade do detentor; que tenha sido declarado, voluntariamente, pelo seu detentor, à junta de freguesia da sua área de residência, como possuindo carácter e comportamento agressivos ou que tenha sido considerado pela autoridade competente como um risco para a segurança de pessoas ou animais, devido ao seu comportamento agressivo ou especificidade fisiológica.

Desta sorte, no que respeita aos cães, nenhum é por definição animal perigoso, mas qualquer um pode, por ocorrência de uma das circunstâncias anteriormente referidas, vir a ser qualificado como tal.

Observa-se que a perigosidade, no que respeita a atitudes agressivas relativamente a pessoas, decorre da mordida, do ataque ou da de lesão do corpo ou da saúde de uma pessoa sem qualquer referência às circunstâncias concretas da ocorrência, colocando na mesma situação o animal que age inopinadamente e sem justificação e o que reage a provocações ou a estímulos por parte do lesado que desencadeiem a conduta agressiva.

Por outro lado, para a definição legal são indiferentes a intensidade e as consequências do comportamento considerado perigoso. Basta-lhe a mordida, o ataque ou a ofensa ao corpo e saúde de uma pessoa, ainda que se trate de conduta sem efeito danoso grave, como resulta da falta de menção a “ofensas graves à integridade física”.

Estas “ofensas” ao corpo ou saúde de uma pessoa são as que ocorrem de modo a privá-la de órgão ou membro ou a desfigurá-la grave e permanentemente; a tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem; a provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou a provocar-lhe perigo para a vida.
Seja ligeira ou grave (e independentemente das condições concretas em que se produz), a ofensa determina sempre a consideração do cão como perigoso, interessando a distinção, apenas, para o destino a dar ao animal. No primeiro caso (ofensa ligeira), a hospedagem por período determinado em centro de recolha, por determinação da autoridade competente, com posterior entrega ao dono com eventual obrigação de realização, em certo prazo, de provas de socialização e ou treino de obediência; no segundo caso (ofensa grave), o abate obrigatório.

São também qualificados como perigosos os animais que tenham ferido gravemente ou morto outro animal fora da propriedade do detentor. Não se trata, agora, pois, de perigosidade em função das pessoas. Objecto da protecção são os outros animais mas, apenas, quando se trate de lesões graves ou causais da morte ocorridas fora da propriedade do detentor. Pela inversa (e algo estranhamente): um cão que, dentro daquela propriedade, fira ou mate outros animais, ainda que repetidamente, mesmo que com demonstração de selvajaria, não é, para o legislador, um animal perigoso.

Note-se que, neste âmbito, apenas revelam as lesões graves, cujo sentido a lei não esclarece (ao invés do que sucede com as ofensas graves infligidas a pessoas), não sendo difícil, porém, a determinação dos casos passíveis de integrar o conceito: privação de membros ou órgãos, diminuição das capacidades funcionais, perigo de morte, etc.

“Detentor” não é, apenas, o dono, mas, sim, “qualquer pessoa, individual ou colectiva, que mantenha sob a sua responsabilidade, mesmo que a título temporário, um animal perigoso ou potencialmente perigoso”. ”Propriedade do detentor”, por seu lado, deve ser, segundo penso, entendida em sentido muito amplo, de modo a compreender os locais objecto de direito de propriedade titulado pelo detentor, a par de outros sobre os quais exerça, a título diverso, poderes de gozo e de fruição (arrendamento, comodato, posse) ou de que seja mero detentor. Se a expressão fosse tomada em sentido técnico as situações ficariam reduzidas ao direito de propriedade, com manifesto esvaziamento do dispositivo legal.

São ainda considerados perigosos, à margem de quaisquer lesões ou ofensas praticadas, os animais voluntariamente declarados como agressivos pelo detentor à junta de freguesia da sua área de residência e os que a entidade competente considere como risco para a segurança de pessoas ou animais. Por “autoridade competente” entende-se “a Direcção-Geral de Veterinária (DGV), enquanto autoridade veterinária nacional, as direcções regionais de agricultura (DRA), enquanto autoridade veterinária regional, os médicos veterinários municipais, enquanto autoridade veterinária local, as câmaras municipais e as juntas de freguesia, a Guarda Nacional Republicana (GNR), a Polícia de Segurança Pública (PSP) e a Polícia Municipal (PM)”.



§ 3º

Animal potencialmente perigoso, por seu turno, é “qualquer animal que, devido às características da espécie, comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às raças que venham a ser incluídas em portaria do Ministro da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas, bem como os cruzamentos de primeira geração destas, os cruzamentos destas entre si ou cruzamentos destas com outras raças, obtendo assim uma tipologia semelhante a algumas das raças ali referidas”.

Disto resulta que os cães não são, como espécie, considerados como animais potencialmente perigosos, senão, apenas: a) os indivíduos que, devido às características da espécie (canina), comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possam causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais; b) certas raças de cães ou indivíduos cruzados de semelhante tipologia, discriminados em portaria.

A Portaria n.º 422/2004, de 24 de Abril, determinou, como raças de cães e cruzamentos de raças potencialmente perigosas, as seguintes: Cão de fila brasileiro; Dogue argentino; Pit bull terrier; Rottweiller; Staffordshire terrier Americano; Staffordshire bull terrier; Tosa inu;

E o Despacho n.º 10819/2008, de 1 de Abril, do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, sustentado em “acontecimentos recentes relativos a agressões provocadas por cães de raças potencialmente perigosas e seus cruzamentos”, veio proibir “a reprodução ou criação de quaisquer cães das raças constantes da Portaria n.º 422/2004, de 24 de Abril, incluindo os resultantes dos cruzamentos daquelas raças entre si ou com outras”, bem como a sua “entrada no território nacional, por compra, cedência ou troca directa”, com excepção, em ambos os casos, dos “cães cuja inscrição conste em livro de origem oficialmente reconhecido (LOP e outros).”


§ 4º

A aplicação a certas raças de cães do rótulo “potencialmente perigosas” suscita alguma controvérsia.

Nenhuma raça é, como tal, potencialmente perigosa para além da perigosidade que advém das características da própria espécie. Ora a domesticação da espécie canina perde-se no tempo; o cão é um animal doméstico, milenarmente condicionado ao convívio humano, pelo que na espécie não se encontrará qualquer traço marcante de perigosidade. Potencialmente perigosos poderão ser os indivíduos, em resultado das condições do meio e, nunca, por decorrência de matriz especial.

Pela inversa, argumenta-se que determinadas raças foram produzidas de modo a revelar particulares qualidades morfológicas e temperamentais para finalidades de guarda, de combate ou outras; que os casos de agressão grave conhecidos se reconduzem com alguma insistência a indivíduos dessas raças; que, por isso, estes devem ser considerados pelo todo, o que só pode significar a inclusão prévia da raça a que pertencem na classe “potencialmente perigosa”.

O legislador português seguiu a segunda corrente. Considerando embora, como acima se referiu, que a perigosidade canina se prende mais “com factores muitas vezes relacionados com o tipo de treino que lhes é ministrado e com a ausência de socialização”, não deixou de admitir, que também se prende, ainda que em menor medida, com a “eventualmente inerente à sua raça ou cruzamento de raças”. Parecendo, pois, admitir que a perigosidade não é inerente à espécie, assenta o dispositivo nas características dos indivíduos e, porque descobre essas características em certas raças, define-as, desde logo, como potencialmente perigosas.

Em meu entender a solução adoptada é conforme aos pressupostos legislativos. Não obstante a domesticação da espécie, permanecem nela, em natureza, os factores que, em determinadas condições, despoletam acções agressivas e, por isso, potencialmente perigosas, tanto mais quanto mais propício ao efeito danoso for a morfologia e o temperamento do indivíduo. Ora reconhecendo-se características de perigosidade (morfológicas e temperamentais) na generalidade dos indivíduos de certa raça, haverá que desde logo a destacar das demais, como potencialmente perigosa.

O erro poderá estar na eleição das raças e cruzamentos, por excesso ou deficiência.

Disto não resulta (ou não deve resultar) qualquer estigma para os animais das raças ou cruzamentos nomeados. O que o legislador prevê, ao fim e ao cabo, é que todas as limitações, restrições e obrigações expressas para os animais potencialmente perigosos sejam, sem qualquer margem para dúvidas de qualificação, aplicáveis aos indivíduos das raças ou cruzamentos referidos. Nomeadamente a necessidade de obtenção de licença de detenção; a inclusão do animal no cadastro; a obrigatoriedade de manutenção de medidas de segurança reforçadas; a afixação de placa de aviso da presença e perigosidade do animal; a obrigatoriedade de acompanhamento por condutor e de uso de meios de contenção adequados; o treino destinado à domesticação e socialização do animal; a formalização de seguro de responsabilidade civil; eventuais proibições de reprodução ou criação, restrição de entrada no território nacional ou determinação de esterilização.



§ 5º

O pressuposto legislativo referido aos factores relacionados com o tipo de treino e com a ausência de socialização aponta para a necessidade do correcto adestramento, ainda que considerando, apenas, o comportamento “social” do cão entre humanos e outros animais. Mas há mais exigências, para além, naturalmente, das que respeitem à preparação para trabalhos ou tarefas específicas de apoio ou auxílio a actividades humanas (guarda, salvamento, condução, detecção de substâncias, policiamento, etc.). São a de assegurar o bem-estar e o desenvolvimento físico e psíquico do indivíduo e a de garantir a sua sobrevivência face aos perigos do meio em que se insere, com especial relevo para os meios urbanos.

O adestramento não é tarefa simples que possa ser deixada a cargo de pessoas mal preparadas, pelo que se impõe ao dono do cão especial cuidado na escolha da escola ou centro de ensino, tendo em conta os métodos ou critérios de treino propugnados. O objectivo é, pelo menos, o de fortalecer o carácter do cão, o de o dotar de capacidade física adequada ao porte, à idade e à raça e o de o condicionar a regras de comportamento, assim contribuindo para a formação de cães saudáveis, adaptados ao meio, às pessoas e às coisas, confiantes mas conhecedores de limites impostos e merecedores de apreço e de respeito, ainda que sejam, na expressão legal, potencialmente perigosos.

JGAR

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