terça-feira, 14 de abril de 2009

::: O Ti Manel, o Benfica e as Vacas-Meias :::

Ao longo destas três décadas e meia dedicadas à observação, ao estudo e ao treino dos cães, muitas são as histórias que conservo na memória, relatos verídicos do protagonismo canino. O seu número é imenso, teria mais do que uma para cada dia do ano. Mas como estamos na Páscoa, relembro um episódio acontecido há trinta e tal anos atrás, exactamente nesta festa do calendário litúrgico judaico-cristão. Os tempos eram outros, a maioria das pessoas teimava numa economia de sobrevivência, cativa à agricultura e à pecuária. Nessa época, os programas radiofónicos rurais iam para o ar ao nascer do dia, o Engº Sousa Veloso aparecia na televisão e ouvíamos a sua frase emblemática: “ Sr.s espectadores, despeço-me com amizade até ao próximo programa”. A acção decorre na zona saloia, numa localidade citada no filme “ Aldeia da Roupa Branca”.

Vacas-meias era uma forma de concertação que envolvia dois interessados: o comprador e o tratador dos animais. O primeiro comprava as vacas e o segundo obrigava-se a sustentá-las. Quando elas atingiam o peso ideal eram vendidas, dividindo-se os lucros pelos dois intervenientes no processo. Invariavelmente, lucrava mais o que as tinha comprado, contentando-se com as sobras, o que não tinha capital disponível. Também graças a isto, é comum ouvir-se entre os saloios: “ as meias são para os pés”.


Passemos à história. O Ti Manel era um homem de meia-idade, trigueiro, baixo e franzino, de olhos pequenos e muito desconfiado. Quem olhasse para ele, jamais lhe adivinharia a força e a vontade, a sua capacidade de trabalho e experiência de vida. E isto apesar, de só por uma vez ter ido a Lisboa, por alturas da inspecção militar. Ficou livre e voltou à terra que o viu nascer, nunca mais saiu dela e repousa ao lado dos campos que lavrou. A sua mulher, a Maria, era “unha com carne”, branca e maior, trabalhava como um homem, era empreendedora e dominada pela ambição. O Benfica era o cão da casa, um mestiço de Serra da Estrela que veio numa carrada de gado. O bicho fazia parte da família tal qual o burro Jacob, tinha cara de poucos amigos e guardava o Casal. Estava sempre acorrentado, porque tinha um apetite especial por ovos e galinhas. Passou a vida inteira à entrada do portão, ora na barraca, ora estendido ao sol, num raio de um metro e meio.

Numa manhã, de modo inesperado, entrou pelo Casal o Henrique Tenente, um conhecido negociante de gado, sempre bem arreado, de chapéu à espanhola e trajo a condizer. “ Ò Manel tás bom, tenho um negócio do teu interesse, em ti eu posso confiar. Ganhamos os dois e toca de andar para a frente! Estava com ideias de comprar cinco vacas charolesas, vindas do Alentejo e sem defeito. Como a tratar de animais não há ninguém como tu, pensei cá com os meus botões: a pessoa indicada é o Manel. Entramos em vacas-meias, o que é que achas?”.

O pequeno lavrador tirou o chapéu e coçou a cabeça, olhou para o céu e mordeu os beiços, fechou os olhos e inspirou. Depois de algum silêncio, só perturbado pelas cotoveladas da mulher, lá respondeu: “ Sabe, o negócio parece bom, mas sempre ouvi dizer que a noite é boa conselheira. Deixe-me dormir sobre o assunto e amanhã lhe darei a resposta”.

“ Parece que estás a desconfiar de mim, homem? Há quanto tempo me conheces tu? Mas tá bem, amanhã passarei por cá. Mas não te esqueças: quando uns n’a querem, tão outros estalando”. Após estas palavras, o negociante despediu-se e dirigiu-se ao portão. Quando ia a sair, o Benfica cai-lhe em cima, lança-o no chão e rasga-lhe as calças. O Manel, depois de mandar o cão prá barraca, levanta o homem e ajuda-o a sacudir-se. Depois das desculpas, diz: “ são animais, vá-se lá saber! “.

Ao contrário do desejável, a noite não foi tranquila e lavrador não teve direito a pregar olho. A mulher não o deixava dormir : “ q’ol é a tua dúvida, comida pró gado temos e o trabalho não nos mete medo, temes andar prá a frente, ó quê?”. O Manel lá lhe ia dizendo que aquilo do cão era uma mensagem, que o animal era perito a identificar pessoas e que raramente se enganava. “ Tu tás mas é maluco, a força de lidares com animais, ouve-sos mais do que a mim. Qoquer dia ainda aprendes a zurrar!”. Apesar de ser Primavera, o lavrador precisava de quem lhe aquecesse os pés no Inverno, que o acompanhasse nas lides em todas as Estações. Contrariado, lá concordou.
As vacas vieram e fizeram-se, foram o espanto da feira e foi fácil vendê-las. Naquele tempo, em que a palavra era para valer, podia-se confiar, comprar primeiro e pagar depois. Assim aconteceu com o comprador, que mandou o sócio do Manel ir receber o dinheiro a sua casa, por volta do meio-dia. “ Ò Manel ouviste o trato, ao meio-dia eu vou lá, almoço, e às duas tou no Casal!”

Passaram as horas e dias, e o dinheiro nunca chegou. O negociante abotoou-se com o dinheiro do Manel e de outros tantos, fugindo para o Brasil sem deixar rasto. “ Olha mulher, vale mais o cão a ladrar que o teu cantar, fui atrás de ti e enganei-me. O cão nunca me enganou! Já dava, mas daqui prá a frente, ainda vou dar mais ouvidos ao Benfica!”.

MORAL DA HISTÓRIA : Devido ao sentimento gregário e à dependência, os cães tornam-se exímios observadores dos homens, identificando-os mais rápido do que os seus iguais, adivinhando as suas intenções pelo comportamento manifesto. A percepção canina detecta facilmente as tensões humanas, as suas descargas de adrenalina e o seu despropósito entre a mímica e a acção. De certa forma, os cães são detectores de mentira mais fiáveis, auxiliares que a dialéctica não leva de vencida e que apostam na nossa protecção. Apesar da percepção extra-sensorial canina ser um facto, a maioria dos seus acertos fica a dever-se à observação. Não dar ouvidos a um cão pode ser fatal. Não os recrutamos como vigias?

JLSGarrido

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