terça-feira, 14 de abril de 2009

::: O exercício da autoridade no adestramento :::

Não é raro ver-se publicitado o ensino dos cães com menção destacada ao repúdio da violência. E é frequente, da parte dos donos dos instruendos, o receio de que o adestramento comporte desconforto físico para os animais.

Aquela publicitação e este receio têm na sua origem a questão de saber se e como pode ou deve ser exercida a autoridade no adestramento. Uma resposta que satisfaça aos anseios afectivos dos donos poderá indicar, na esteira da referida publicidade, um plano de ensino prenhe de condescendências e de mimos, mas não corresponderá seguramente à realidade do treino, sob pena da sua total ineficácia. Uma outra que apenas se funde na imposição brutal de condutas criará possivelmente submissões, mas sempre no limiar da revolta, à margem da relação empática que cimenta a obediência.

Neste campo, como em muitos outros, a correcção dos procedimentos não se encontra nos extremos e pressupõe que se estabeleçam algumas precisões, sem receio de maus entendimentos. Sem dúvida que não têm hoje cabimento os métodos puramente coercivos, praticados no passado, em que o treino se iniciava na idade adulta em relação a exemplares dominantes. Reconhecida a vantagem e definidos os princípios básicos do método da progressividade, que supõe o treino dos cachorros a partir dos quatro meses e o acompanhamento dos seus ciclos de crescimento, a fórmula do treino reside no aproveitamento evolutivo ou gradual das capacidades dos animais, num ambiente que não lhes seja hostil ou penoso. Mas, ainda assim, a autoridade não pode ser esquecida e é no seu modo de exercício que se colocam dúvidas e surgem equívocos.

O adestramento do cachorro é essencial em diversas perspectivas: a de garantir condições de comportamento “social” no meio humano em que foi inserido; a de o preparar para sobreviver no “habitat” em que se movimenta; a de possibilitar o seu desenvolvimento equilibrado dos pontos de vista físico e psíquico; a de fortalecer o seu temperamento, a de alcançar um determinada utilidade laboral.
Sendo necessário, o adestramento é, em si mesmo, o primeiro factor de violência contra o cão, precisamente porque confronta ou contraria a liberdade natural. Pelo adestramento o cão é forçado a conduzir-se por uma forma adversa às reacções que naturalmente tomaria e, nessa medida, o treino constitui uma violentação da sua liberdade.

Ora esta “violência” do adestramento considerado no seu todo converte-se em outras tantas “violências” quantas as situações concretas do ensino, quantos os casos em que o cão é levado a comportamentos limitativos das suas reacções naturais e espontâneas.

Mas sendo, como se referiu, fundamental para a segurança e para o desenvolvimento harmónico do cachorro, o dono adestrador não deve subalternizar esses objectivos a sentimentos momentâneos de piedade ou semelhantes, desde que, é claro, estejam a ser respeitadas as capacidades do aluno e as boas condições de desenvolvimento do ensino.

A “violência”, tomada no sentido impróprio que se expôs, de contrariedade oposta às reacções naturais de liberdade, não significa nem pressupõe mau trato, mas não exclui o exercício da autoridade pelas formas dissuasoras que lhe pertençam e no caso se justifiquem.

A matilha sobrevive mercê de uma hierarquia rigorosa, pela qual se define o patamar de cada um dos seus elementos. As posições cimeiras não são consensuais, antes conquistadas e mantidas pelo indivíduo mais forte e de perfil mais dominante. O domínio na matilha é alcançado e conservado por imposição, pela força, pela ameaça intimidativa ou, se necessário, pela agressão.

Transposto para o ambiente doméstico da sua família de adopção, o cachorro, ainda que intua a diferenciação de espécies, é levado a considerar-se inserido numa matilha – chamemos-lhe matilha familiar – e, a certo passo do seu desenvolvimento, por força de mecanismos instintivos, a procurar o seu posicionamento relativo, quiçá, por razão do seu temperamento dominante, o estádio mais elevado da chefia suprema.

Mais ou menos francamente, com arrogância ou usando de subterfúgios, o cachorro pode ascender a essa posição, na presença de um dono complacente, despreocupado ou simplesmente ignorante dos processos evolutivos da mentalidade canina. E quando tal suceder, subvertidos os termos, o dono é relegado para uma posição hierárquica inferior, perdendo os atributos de autoridade que lhe deveriam pertencer.

Nesta situação o adestramento canino é impossível. Ainda que não seja condição suficiente, a autoridade hierárquica sobre o cão é condição necessária para o ensino. A que deverão juntar-se - se acaso pudermos conceber que o cão experimenta estados emocionais equivalentes ou próximos dos humanos - a confiança no dono e a afectividade pelo dono.

Seja como for, a subversão da autoridade é impeditiva do adestramento, precisamente porque o cachorro, julgando-se dono do bastão, não aceitará sem rebeldia o condicionamento dos seus comportamentos.

De modo que, como acima se referiu, a “violência” ínsita no adestramento (condicionamento contrário às reacções naturais de liberdade) é necessariamente prosseguida através da autoridade.

Ora é no exercício desta que pode residir – e penso que muitas vezes reside – o equívoco que a questão inicialmente formulada encerra.

O exercício da autoridade em qualquer situação da vida pressupõe o acesso a métodos de conformação, a meios de execução ou cumprimento e a processos de sancionamento, que podem ser mais ou menos extensos e diversos na sua natureza, consoante o ambiente que se considere. Isto é dizer, nomeadamente, que a autoridade não se exercita simplesmente por actos de “imperium”, determinativos, coercivos, senão também, por actos de indução, de dissuasão, enformados, porém, por uma característica especial, a de que, ainda assim, não se reconhece no visado a liberdade de escolha. Seja pela ordem ou comando, seja pela orientação esclarecedora, na base encontra-se sempre a prerrogativa de impor. Por outras palavras e numa súmula, o estabelecimento de certos padrões de conduta mediante o exercício da autoridade pode passar pela dissuasão, pelo acto determinativo e pela sanção.
E assim será tanto no relacionamento humano como no animal. Como acima se referiu, a chefia da matilha é obtida pelo cão dominante e por este assegurada através de actos disciplinadores que poderão ser de aviso (dissuasores ou indutores de certo comportamento) ou de penalização de desvios da conduta requerida, por via da agressão mais ou menos intensa (sanção).

Transposta a dominância do chefe da matilha para o dono adestrador, não encontro diferenças fundamentais quanto ao exercício da autoridade, que deve passar pelo cumprimento da vontade do dono, por via, conforme as situações, de persuasão, ordem e sanção. Diferenças haverá, obviamente, nos meios concretamente utilizados e, ainda, na atribuição de recompensas pelo cumprimento, que eventualmente não se verificará em matilhas naturais.

A persuasão constituirá, decerto, o meio primário de exercício da autoridade, conduzindo o cachorro à prática dos exercícios ou figuras desejadas como que num convite forçado. Parece-me que todo o adestramento inicial com uso da trela se insere neste princípio básico de persuasão, em que o castigo está ausente. O cão, por exemplo, é motivado a caminhar junto ao dono por via dos movimentos da trela determinados pela rotação do pulso e acompanhado por palavras de censura proibitiva (“não”), de convite à correcção (“junto”) ou carinhosas de estímulo (“muito bonito”), no que se traduz, a meu ver, a ideia de persuasão. A repetição de transposição de um obstáculo após um insucesso que atemorize o animal, acompanhado de atitudes de estímulo e entusiasmo, é ainda, parece-me, uma forma de exercer a autoridade de modo persuasivo.

Numa fase em que o animal já tem assimilada a acção pretendida, mediante vocalização ou gesto, a autoridade exerce-se através da ordem pura. Se o cão já conhece o comportamento que dele se requer em situações determinadas, a autoridade manifesta-se sem necessidade de expressão, por razão do condicionamento efectuado.

É neste estádio que se colocam mais problemas no exercício da autoridade, tendo em conta que esta tem por objecto a obediência e que, neste particular, o conceito é absoluto. A obediência supõe o pronto cumprimento da ordem ou a omissão de conduta perante uma situação em que a passividade corresponda a comportamento adquirido. À voz de “aqui” o cão deve imediata e rapidamente dirigir-se para o seu dono, à voz de “alto” imobilizar-se prontamente. À passagem de um cão desconhecido ou perante um gato em corrida provocadora, deve manter-se em absoluta passividade, independentemente da voz ou da presença do dono. De uma iguaria apetitosa encontrada no chão deve afastar-se, mesmo que o dono não esteja ao alcance dos seus sentidos.

O cão que desobedece a uma ordem assimilada confronta a autoridade do dono e justifica a sanção. Sobremaneira quando estiverem em causa pressupostos da sua segurança ou da sua integridade física. Há, todavia, que qualificar rigorosamente a conduta do animal como desobediência, dado que, muitas vezes, a não execução de certa figura resulta da incapacidade do animal ou da deficiência dos comandos ou “ajudas”.

A sanção tem de corresponder, necessariamente, a um desconforto, a uma penosidade, a algo que crie no animal uma relação de natureza negativa com o incumprimento. Poderá ser, por exemplo, o afastamento do dono, em jeito de desprezo, face à desobediência do comando de “aqui”, o que lhe criará ansiedade e desejo de proximidade. Poderá ser a prisão com a trela a um poste, afastado do dono. Mas poderá ir mais longe?

A diferença entre o líder humano e o dominante da matilha animal está na impossibilidade deste de reagir para além das formas de domínio físico absoluto, da agressão física, da mordedura. O dono adestrador terá de assumir, quando imprescindível, reacções de eficácia semelhante mas não necessariamente iguais às que se observam na matilha animal. O cão dominante que afasta da comida o guloso atrevido não excede, na sua conduta agressiva, o necessário para a produção desse resultado. Castiga a impertinência na medida necessária à reposição da obediência quebrada. Não se retrai, nem se excede. Ora é este equilíbrio, esta proporcionalidade, que deve enformar a conduta punitiva e tal supõe, da parte do dono adestrador um afinado sentido de oportunidade, uma imensa serenidade. Mas, mais, porque beneficia dos atributos da inteligência, o repúdio da violência.

Castigo nunca poderá converter-se em sevícia, em mau trato gratuito. E só se compreende na medida em que, simultaneamente, seja preventivo de futuras desobediências. O castigo, para corresponder a estes requisitos de proporcionalidade e de eficácia, tem de ser aplicado no momento oportuno (na presença de uma desobediência verdadeira e própria) e sem descontrole emocional por parte do dono. Estão arredados, assim, todos os castigos exógenos aos objectivos pedagógicos do adestramento, injustificados face à conduta do cão, excessivos em presença das concretas finalidades repressivas ou preventivas ou causadores de sequelas físicas ou psicológicas. Estão, por isso, proibidas, em qualquer circunstância, as agressões corporais por qualquer meio ou modo, com a trela, uma vara ou qualquer outro instrumento, os murros e os pontapés ou outra de natureza semelhante, sempre reveladoras, quando infelizmente acontecem, do desequilíbrio emocional do dono adestrador.

Querendo reunir em parágrafos conclusivos as ideias essenciais que pretendi transmitir e guardei no decurso da minha formação na Acendura Brava, termino referindo que:

1º- O adestramento só é possível se o dono adestrador se situar numa posição de supremacia hierárquica relativamente ao cão e exercer, quanto a este, a sua autoridade.

2ª- O exercício da autoridade, fundado na faculdade de impor, desenvolve-se através de processos de persuasão, de ordens ou comandos puros e do sancionamento da desobediência, mediante sanções cautelosas, proporcionadas, certeiras (oportunas) e despidas de envolvimentos emocionais.

3ª- A sanção deve corresponder a uma conduta que cause no animal, por via do fenómeno da memória afectiva, uma relação desconfortável com a desobediência praticada, de modo a prevenir práticas futuras semelhantes, estando liminarmente arredados os castigos físicos ou corporais, permissivos de sequelas físicas e medos ou traumas inibitórios.

JGAR

Sem comentários:

Enviar um comentário