Ao tratarmos deste assunto, o relativo á reeducação
dos cães perigosos, vem-nos à memória o já falecido Badaró, um comediante
brasileiro (paulista), naturalizado português, que sempre usava a expressão “Ó
Abreu dá cá o meu”, quando vestia a personagem do “Chinezinho Limpopó”, porque
a reducação canina virou negócio e o que importa é facturar, mesmo que os cães
não beneficiem de qualquer alteração. A marosca anda a ser disfarçada com uma
filiação desportiva ou camuflada num pseudo-estatuto de “utilidade pública”, a
troco de algumas centenas de euros! Costuma dizer-se que um negócio é bom quando
satisfaz as duas partes e parece ser este o caso, já que uns recebem a massa e
os outros livram-se temporariamente de problemas. Quem perderá? Provavelmente
as próximas vítimas e, mais cedo ou mais tarde, os pobres dos cães!
Imagine-se um cão territorial, adulto, propriedade
de um casal, a viver num apartamento, que nas mãos do dono é um anjinho e que
vira o diabo quando a dona se acerca dele, tratando de igual modo,
violentamente, cães e pessoas na via pública. Em casa, dorme com o dono no
mesmo quarto (por vezes na cama deste), e na rua, depois da fixação, aproveita
qualquer distracção para cair sobre os incautos. A dona fica chocada com a
situação e não compreende porque o “seu” cão age assim: “onde é que já se viu
isto?” Mas afinal de quem será o cão, porque agirá assim? Não temos qualquer
dúvida: o cão pertence ao dono e trata a sua companheira como intruso, precisa de regra, exige sociabilização, requer
controle, carece de ser ensinado e necessita duma liderança firme, porque é
fortemente territorial, nasceu com forte impulso ao poder e tem sido por demais
mimado. Caso isso não aconteça, assistir-se-á ao agravamento dos seus ataques,
ao aumento da sua frequência e à possibilidade de maiores desgraças.
O particular da sua instalação doméstica, somado às
suas características individuais, tem agravado o comportamento do cão, que
treinando em casa contra a dona, sai à rua àvido de outras presas e certo do
seu sucesso, o que denuncia a ausência de uma repreensão eficaz e uma liderança
pouco séria, porque toda a regra que não é assimilada dentro de casa,
difilmente o será na rua! Os ataques do cão não sucedem ao aviso ou a ameça e
não resultam da provocação, acontecem directamente da fixação para o ataque, o
que indicia claramente qual o perfil psicológico do animal. E como se isto não
bastasse, ele prefere atacar pessoas e cães pelas costas ou os incautos que lhe
pertendem fazer festas. Nunca foi objecto de algum contra-ataque ou experiência
negativa, apesar de se apavorar diante de certos ruídos, o que denuncia, para
além de outros factores, a ausência de uma experiência variada e rica, tempo
demais dentro de casa e excursões nos mesmos locais.
Virou
moda, talvez pela inexperiência e ausência de modelos, também pela proximidade
do ofício ou especialidade de cada um, operar a reeducação e a troca de alvos
pelo concurso de um brinquedo, subsídio usado para captar a atenção, reforçar a
obediência e atingir a autonomia condicionada. Esta estratégia tem-se revelado
pouco válida em cães deste tipo e será completamente fútil se, em todos os
momentos, fôr operada entre muros, por terceiros e sem os simulacros que
induzem à reeducação, porque o animal não abdicará gratuitamente do seu lugar
social e das prerrogativas que ele lhe confere, vindo a comportar-se em casa
como um diabrete à solta, como sempre se comportou! Se porventura encontrar um
reeducador medroso, o que infelizmente não é raro,” junta-se a fome à vontade
de comer”. È evidente que o brinquedo não irá evitar o ameaço à dona nem a
carga sobre terceiros, a menos que todos eles carreguem um brinquedo e se
disponham a jogar! O pior é se ele começa a defender o brinquedo, o que é fácil
de acontecer.
Mais do que isolar o cão, importa educador o dono,
isto se ele estiver para aí virado, porque, por deslumbramento, ignorância ou
negligência, custa-nos a acreditar que o tenha feito deliberadamente,
contribuiu para a formação do carácter do animal, investindo-o naquilo que
agora o atormenta, apesar de não ser o
único responsável, já que a sua companheira, por falta de imposição, acabou por
aceitar o papel de vítima. Há nisto tudo um amor excessivo, deslocado ou
tresloucado, uma adopção apaixonada e por isso mesmo desregrada, um derrame de sentimentos que o cão aproveita
para a eclosão do fenómeno, pelo que importa combater as suas causas ao invés
das suas manifestações, já que estas cessarão pela ausência de condições, o que
nos remeterá para a importância do papel da dona, pois deverá ser ela a
reeducar o cão, ainda que assistida, para transitar de vítima a líder, mediante
os automatismos que a obediência oferece, tarefa que será facilitada pela
ausência do dono, porque doutro modo, o cão correrá para ele e deliberadamente
resistirá à nova liderança.
Enquanto o treino não surtir efeito, porque importa
proteger a dona e não provocar o cão, convém proceder a um conjunto de
alterações domésticas relativas à instalação do animal, que não deverá dormir
no quarto ou na cama dos donos, muito menos em parceria com o dono, pessoa que
elegeu como líder e a quem somente reconhece autoridade. E depois, quanto mais
pequeno é um espaço, mais pronta é a sua defesa e os cães junto dos donos, sem
dificuldade, servem-se deles como pretexto. A distribuição da comida e a
condução nos passeios diários deverão passar para o caderno de encargos da
dona, porque o patrão da comida é o dono do cão e o seu líder quem o segura
pela trela. Deixar comida à descrição nesta fase é o pior dos disparates,
porque mais serve à autonomia do animal do que à sua submissão. A dona não
deverá soltá-lo nos passeios diários, porque importa proteger terceiros e não
deixar escapar a autoridade, e muito menos brincar com ele em pé de igualdade,
para não dar azo à rebeldia e expôr a sua vulnerabilidade. Quando assim se
procede, com o decorrer do tempo, o rosnar transforma-se em gemido e a ameaça
em súplica. Os passeios deverão ser variados e a primazia deverá recair sobre
aqueles onde o cão se sente mais instável e menos confiante, o que o fará
procurar apoio, constituir equipa e aceitar a nova líder, vantagens que a
permanência nos mesmos trajectos não oferece, por força do forte sentimento
territorial presente no cão, que o ensurdecerá para as ordens e levá-lo-á, automaticamente, á procura de intrusos. Nesta
fase ainda, o cão deverá permanecer de estrangulador posto e nunca deverá ser
arrancado do dono, para que menos resista ao trabalho, não adivinhe intenções e
acabe por atacar a dona.
A reeducação propriamente dita, que tem como
objectivo a coabitação harmoniosa do cão na sociedade, terá como metas a
sociabilização inter pares, com os humanos e com os outros animais, tanto os domésticos
como os silvestres, não dispensará as manobras de sociabilização animal e terá
como agentes de ensino, para além da dona e do adestrador, os restantes
condutores e cães escolares, já que acabará conduzido por todos e induzido ao
convívio com os seus pares, até se inserir na matilha escolar. Numa primeira
fase, o treino será dentro da escola, entre muros ou em locais que não
comprometam a segurança de terceiros.
Depois, deverá estender-se a outros ecossistemas e à sua variedade, para que a
liderança em tudo seja soberana. A disciplina maioritária a ministrar será a da
obediência, debaixo do pressuposto que o treino é por definição rigor e que ela se caracteriza pelo cumprimento
pronto e imediato das ordens. O cão deverá primeiro trabalhar isolado, e só
depois dos benefícios da obediência, deverá ser integrado nas classes. No
início trabalhar-se-á debaixo do princípio pedagógico da sobrecarga e depois
debaixo do equilíbrio com os restantes que constituem o todo dos princípios
fundamentais do treino canino, enquanto decorrentes da pedagogia geral de
ensino (princípios: da individualização, da progressão, da variação, da
adaptação, da reversabilidade, da continuidade, da relação óptima entre
preparção especial e geral e da actividade apreensível). Nomalmente dispensamos
2 meses para o trabalho isolado e 3 para o trabalho integrado, e dizemos isto
porque alguns cães, logo final do primeiro mês, já que encontram prontos para a
integração nas classes comuns. De qualquer modo, nunca declaramos ninguém apto antes
das 100 lições e das 150 horas de trabalho, o que não dispensa os binómios
recuperados da recapitulação previamente agendada (de 3 em 3 meses durante o
primeiro ano, num total de 24 lições extras e gratuitas, com uma duração de 90
minutos cada).
Essa
idéia de mandar o cão receber umas “lições” numa escola, já fortemente
enraizada entre nós, é um pró-forma que melhor serve aos donos do que aos cães,
que atenta contra a intergridade de terceiros e que vai contra o espírito da
lei, porque raramente produz alteração no comportamento dos animais e pouco
capacita os donos no exercício da liderança. Também é irrelevante só por si,
que o cão faça tudo bem nas mãos do treinador, porque aquilo que se exige é que
se comporte de igual modo nas mãos do dono. Como continuam a sobreviver por cá
concepções infundadas sobre a reeducação, importa dizer que ela não passa em
exlusivo pela correcção dos cães, é mais abrangente e pode considerar a
capacitação dos donos, em particular quando os actos dos animais são reflexo do
seu despreparo ou negligência, quando a sua causa é de indubitável natureza
ambiental. O que fem feito engordar as fileiras da reeducação é a ignorância
dos donos, já que o aumento de informação não tem gerado uma maior procura.
Certamente voltaremos a estes assunto, tão certo como a esta hora, estar alguém
a ser atacado por um cão. Oxalá que não!
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