“Pour moi sont tous le même chien et les
différences qui peuvent avoir sont dues à différentes sélections opérées dans
differents lieux geographiques” – assim falou um canicultor gaulês, à
mesa do café, acerca das origens do Cão de Serra de Aires, quando questionado sobre
a possível contribuição para a formação da raça dos Cães de Água (portugueses e
espanhóis), do Pastor dos Pirinéus e do Briard. Por cá ninguém tem certezas
quanto à sua origem, considerando-a uma variante das acima citadas ou
resultante do beneficiamento de algum delas, no século passado ou nos
anteriores. É evidente que a raça já andava pelas serras do Alentejo muito
antes do surgimento dos cães do Conde de Castro Guimarães (briards), muito
embora não nos custe acreditar que a sua aparência tenha sido ligeiramente
diferente da actual. É nossa convicção e fazendo jus ao que disse o Francês,
que o Serra d’Aires, os Briard, o Cão de Gado dos Pirinéus e os Cães de Água,
têm uma origem comum e que ela aponta para um cão originalmente destinado à
pastorícia, designado por “Turco”, oriundo dos Balcãs e difundido no
Mediterrâneo pelos comerciantes otomanos. Quanto a isto, e não sabemos porque
ainda não foi feito, suspeitamos que por razões económicas, o levantamento do
DNA resolverá todas as dúvidas, as relativas a este cão sem sub-pêlo e às raças
suas congêneres.
Mas mais importante que a origem é o
potencial do cão, a sua extraordinária capacidade de aprendizagem, rusticidade
e resistência, factores que aliados à fidelidade incontestável ao dono, à
rapidez funcional, rara atenção e forte sentimento territorial, o transformam
num excelente cão de trabalho, apesar de pouco visto e muito menos utilizado. A
somar a isto, e que é de suma importância, atendendo às variedades cromáticas
admitidas no seu estalão, a raça está longe de vir a sofrer os problemas
endogâmicos que hoje vitimam a maioria dos cães com pedigree. Esperamos que os
seus criadores tenham aprendido com os erros doutros e não optem pela
consanguinidade, destruindo desse modo o rico património genético que
receberam.
Estamos em crer que a pouca
proliferação urbana da raça se deve ao falso aviso de que não serve para viver
em apartamentos e que necessita de grandes passeios diários. Por outro lado,
muita gente tende a confundir rusticidade com falta de higiene, ausência de
companheirismo e propensão silvestre, o que sendo mentira se afasta da
realidade. Todos os cães necessitam e adoram longos passeios diários, a menos
que a selecção humana os haja incapacitado para isso. Precisará um cão caçador
de menos exercício diário que um Serra de Aires? E um whippet? O que tanto faz
engordar os retrievers? Se nos humanos se aconselha uma caminhada diária de 3km
para a conservação dos índices atléticos, os cães na sua generalidade irão
precisar de 5, porque são excursionistas e nasceram para bater território. A
ausência de uma verdadeira excursão diária é a primeira responsável pelos
desacatos ou prejuízos domésticos levados a cabo pelos cães, que espelham dessa
forma a sua revolta.
A rusticidade presente no Serra de
Aires, por má compreensão dos seus proprietários, tem isentado a raça da
cumplicidade necessária à constituição binomial e duma selecção mais
consentânea com as disciplinas básicas do adestramento, porque o cão é remetido
para a quinta, monte ou rebanho e cresce longe da coabitação necessitária para
o desenvolvimento dos vínculos afectivos que denunciarão todo o seu potencial.
Será que os cães não sobrevivem pela experiência directa? Assim sendo, o que
norteará os beneficiamentos dentro da raça: somente a estética ou também a
parceria que garante a utilidade? Uma coisa é certa: os Serra de Aires criados
nos apartamentos nada ficam a dever, em termos de prestação laboral e
resultados, aos cães mais afamados, rivalizando com eles nos lugares de topo.
Apesar disso, porque a obediência dá trabalho e a rusticidade serve de
desculpa, poucos são os Serra de Aires que alguma vez frequentaram uma escola
canina, como se os cães não fizessem o que querem quando não lhes dizem o que
fazer!
Também se diz por aí, à guisa de
conselho, numa altura em que já ninguém acredita em papões, que não se devem
deixar estes cães sozinhos com as crianças. Será que um cachorro criado ao lado
de um bebé se transformará num lobo mau? Com mais facilidade vestiria essa pele
quando criado ao lado das ovelhas, facto que nunca aconteceu. A rusticidade da
raça é uma vantagem que aponta para a força, recuperação, resistência,
qualidade de vida e longevidade, e que nunca deverá servir para o isolamento e
ausência de cuidados, quer eles sejam pedagógicos, sociais ou outros. Há quem
diga ainda que este cão, enquanto cão de guarda, por ser inteligente e teimoso,
é difícil de treinar, o que nos parece absurdo diante daquilo que é e se espera
de um verdadeiro guardião, já que essas duas qualidades são essenciais para a
sua sobrevivência e serviço, porque doutra maneira não resistiria ao suborno e
ao envenenamento, não surpreenderia os intrusos, não assimilaria novos
conteúdos de ensino e bem depressa abandonaria as suas funções. Ao contrário de
outros cães, devido à fácil sociabilização, o Cão da Serra de Aires, trabalha
sem dificuldade com outros cães, o que é uma vantagem quando se procura uma
matilha funcional, já que a maioria das heterogêneas tem-se revelado de pouco
préstimo e de dúbio resultado.
O verdadeiro problema do Serra de
Aires reside no facto de ser tão meigo quanto desconfiado, fenómeno agravado
pela pouca resistência à dor e pelo medo ao castigo, isto se intentarmos fazer
dele um bom guardião, pressupondo o contra-ataque e a repetição das acções,
porque é mais defensivo que ofensivo pelos limites da sua morfologia,
particularidade advinda da ligeira envergadura e fraca potência de mordedura, o
que o impossibilita de enfrentar alvos substancialmente maiores e mais fortes quando
em oposição. Mas é para isso que cá temos os molossos, os alanos e os lupinos.
O Serra de Aires nasceu para o bardo, para reunir o rebanho ou para congregar a
sua família adoptiva, agregado que avisará atempadamente diante de um perigo
iminente ou circunstância estranha. Queira Deus que assim continue! O problema
da desconfiança pode ser ultrapassado pela soma de duas estratégias: por uma
coabitação mais próxima e incisiva (que permite um estudo mais aprofundado dos
cães), e pela contribuição das distintas variedades cromáticas presentes na
raça, já que os cães pretos são mais sociáveis e os lobeiros mais arrediços e
independentes. Com 3/8 de preto-afogueado na construção a evidência do problema
é praticamente nula. Também o Pastor Alemão teve na sua origem cães pastores de
pêlo crespo ou de arame, provavelmente descendentes da mesma raiz, legado que
os Pastores Belgas ainda conservam através do Laekenois.
No passado recente, por volta dos anos
sessenta, época dourada dos marchantes e negociantes de gado, ambos
praticamente extintos ou em vias de extinção pelo encerramento das feiras a
“céu aberto”, o gado alentejano era encaminhado para os arrabaldes saloios por
ser amplamente procurado. Com ele chegavam também os cães do sul, os
resultantes do cruzamento entre o Serra de Aires e do Rafeiro Alentejano,
molossos na verdadeira acepção da palavra, “finos como aguardente”, conforme se
dizia na gíria em função da sua esperteza, bravura e versatilidade. Esses
rafeiros foram alcunhados de “4 olhos” por serem pretos e terem por cima de
cada olho uma leve pigmentação afogueada, lembrando os antigos Rottweilers.
Eram simultaneamente pastores e guardas de camionetas e ainda hoje as suas
façanhas são relembradas. Também era comum encontrá-los entre os ciganos,
atrelados às carroças e amplamente musculados. Num ápice desapareceram,
desaproveitados e sem deixar rasto. Hoje são poucos os cães de raça indefinida
resultantes da hibridação com o Serra de Aires, sendo mais fácil encontrar
neles alguma ascendência em Podengo, Husky, Pastor Alemão, Pitbull e nalgumas
raças miniatura. Falámos deste assunto porque pela hibridação também se conhece
uma raça, todo o seu potencial, origem, mutações e história. Mas voltemo-nos
para o Serra de Aires, e agora para a sua análise técnico-funcional, tendo como
parâmetros os demais cães nacionais e os estrangeiros mais vistos no
adestramento, nas vertentes sensorial, psicológica, cognitiva, social,
morfológica e atlética.
Do ponto de vista sensorial o olfacto
rivaliza com a audição pelo sentido director, havendo cães que usam mais um dos
sentidos em prejuízo do outro, constituindo dois grupos distintos, a quem não é
a alheio o tipo de instalação doméstica. Por norma, os cães caseiros usam mais
o ouvido e os de campo o nariz, muito embora a extraordinária audição da raça,
ligada ao tipo de eixos craniofaciais superiores que apresenta, se encontre bem
acima da presente no Cão de Água Português, o que garante ao Serra de Aires estar
em constante alerta e atenção, condições essenciais para a prontidão de
qualquer serviço (em igualdade de circunstâncias com o CPA). O seu campo visual
e visão monocular são médios e a sua acuidade aumenta com a transição dos
andamentos naturais. Cão de extraordinária sensibilidade, acusa o toque e evita
o embate. È propensamente tímido e desconfiado, mais tímido que o Border Collie
e mais desconfiado que o Cão de Água. Pode ser arredio e necessita de uma boa
instalação doméstica, fixa pouco e prefere observar, evita ser surpreendido e
aparece de surpresa. Reage aos estímulos e obriga ao reforço positivo na sua
educação e aprimoramento. Quando acossado produz ataques defensivos, desvia-se
das provocações e só passa à ofensiva na presença do dono ou dentro do seu
reduto. Pode obrigar à exclusividade de tratamento e não vê com bons olhos a
repartição do seu espaço e pertences. Tolera bem os fenómenos naturais e as
alterações por eles produzidas, é de tendência noctívaga e adora deslocar-se em
campo aberto. Assimila sem dificuldade as rotinas e trabalha essencialmente
pela memória afectiva, obriga a alguma novidade no trabalho sistemático e tende
à autonomia. Precisa de tempo para a sociabilização e tende a eleger o seu
líder e o seu grupo.
Do ponto de vista cognitivo é um
assombro, não tanto como o Poodle, mas anda lá perto. Associa sem dificuldade
os objectos às acções, tende a compreender os donos pelas suas expressões
mímicas, responde muito bem aos comandos sonoros, não necessita de muito treino
para a assimilação dos comandos ou figuras, consegue absorver em média 32
comandos e dentro deles um sem número de variantes. É um transportador nato e
um exímio pastor. Como cão territorial que é, a sua sociabilização deve ser
levada a sério, porque se ela for por água abaixo o aproveitamento do cão é
nulo ou quase nulo, porque a desconfiança que gera o stress irá impedir a
concentração necessária ao seu desempenho e ofuscar as mais-valias do seu
manancial genético. Mais desconfiado do que belicoso, ele é mais arisco com os
cães do que com os humanos. Não apresenta grandes dificuldades de
sociabilização com os restantes animais domésticos, isto se desde cedo se
familiarizar com eles.
A morfologia do Cão de Serra de Aires propicia
andamentos leves e de fácil transição, tendo ainda a particularidade de
transitar directamente do passo para o galope. O cão é pouco rectangular, forte
de espádua (com uma flexibilidade extraordinária) e a sua garupa é ligeiramente
descaída. As angulações traseiras são de média angulação e as suas patas estão
preparadas para os pisos mais duros, acidentados e irregulares, porque a sua
constituição é forte e assenta em “pé de gato”, vantagens que lhe garantem
também uma marcha suspensa, rasgada e quase inaudível, segundo as características
lupino-molossóides que apresenta. Apesar de ser rápido, é na resistência que
reside a sua maior virtude, não só contra as doenças, mas também nas grandes
caminhadas onde a sua marcha dificilmente abranda, porque normalmente apresenta
baixa frequência de batimentos cardíacos. Mais do que para o Agility, o Cão de
Serra de Aires poderá alcançar destaque no canicross ou na endurance e constituir-se
num excelente cão de detecção tanto em terra como no mar. No que à disciplina
de guarda diz respeito, este cão pastor terá melhores desempenhos como cão de
alarme e defesa pessoal. Sempre será melhor na obediência dinâmica do que na
linear e mais depressa absorverá os automatismos direccionais do que os de
imobilização. Para além de tudo isto, ainda consegue manter os índices laborais
em amplitudes térmicas entre os - 6 e os 45º centígrados. A velocidade que
também o caracteriza, é advinda do seu coeficiente de envergadura que oscila
dos machos para as fêmeas de 2.7 para 3.3 (índice de massa corporal), o que o
coloca em igualdade com os Pastores Belgas e abaixo do peso atlético da maioria
das raças caninas de médio porte. E muito mais haveria para dizer!
Para os cidadãos que não dispensam a
coabitação de cães dentro dos seus lares, o Serra de Aires apresenta duas
vantagens pouco comuns na maioria das raças caninas, uma higiénica e outra
económica que importa considerar. A higiénica pretende-se com o facto de não
ter subpêlo, não estando assim sujeito aos períodos de muda e à desagradável
queda de pêlo a que obriga. A económica reside no facto de desnecessitar de uma
dieta muito rica e por isso mesmo mais dispendiosa, já que se satisfaz e responde
plenamente com rações de índice calórico mais baixo, o que lhe permite suportar
(por mais tempo) períodos de austeridade, o que nos tempos que correm é como
ouro sobre azul. Para além de não atentar contra a saúde e de não castigar a
carteira, este cão, por ser leve e de andamentos pouco denunciados, irá
poupar-nos incómodos junto dos vizinhos, o que o torna mais do que recomendável
nesta crise, pródiga em fazer tempestades dentro de copos de água e em
confrontos “por dá cá aquela palha!”
Eu
acredito no cão macaco, assim designado por expressões, atitudes e movimentos
tipicamente simiescos, factores intimamente ligados ao formato da sua cabeça, distância
interocular, jogo de mãos, disposição da espádua e elasticidade de movimentos,
enquanto cão de companhia, desporto e utilidade. Também acredito nele porque
ainda respira saúde e dificilmente virá a ser estragado ou adulterado pelas mutações
que afectam grande número das actuais raças caninas. Sei que sobreviverá, por
muitos e longos anos, graças à sua rusticidade, resistência e adaptabilidade,
características extraordinárias que ligam a longevidade doutros tempos à actual
persistência na novidade de desafios. Temos cão!