segunda-feira, 4 de maio de 2009

::: A história dos 3 Amigos ou o destino do Kasan :::

A maior tarefa de um adestrador é a transmissão cognitiva. Para que ela aconteça é necessário que o conceito passe à prática. A história que se segue procura avaliar a capacidade interpretativa dos líderes binomais, para que se encontrem os veículos próprios para a transmissão da mensagem. Conhecer os alunos é primordial, tão importante como conhecer os cães.


A HISTÓRIA DOS 3 AMIGOS OU
O DESTINO DO KASAN:

Esta é uma história sem um final feliz, nenhum dos seus intervenientes o teve, nada ficaram a dever à sorte.


Estamos no princípio da década de 40 do século passado, altura em que as espanholas adornavam os clubes nocturnos de Lisboa e Porto, foragidas da Guerra Civil e apostadas na sobrevivência. Nunca se ouviu tanta cantilena castelhana, as castanholas pareciam vir para ficar e a promiscuidade tornava-se bênção. O país tacanho invadia-se de lascívia, o “portunhol” sobrevoava o fumo dos cigarros e grassava a caça às senhoritas. Os muitos “olés” que se ouviam, eram explosões de pasmo e de desejo incontido, gritos de liberdade sobre quem fugia à guerra. Amores distantes, agora à mão, apaixonavam os mais ardentes, e por meia dúzia de tostões, transpunha-se a fronteira, quebravam-se as barreiras, levantava-se o ginete lusitano.

Para os jovens estudantes universitários abastados, vindos da província, esta agitação era um el dorado, uma hipótese de descobrir novos mundos, de demonstrar a supremacia portuguesa e a sua valentia, ainda que num quarto cheio de percevejos e com uma companheira que não parava de fumar. Ao redor das nuestras hermanas, muitas amizades perduraram, graças à cerimónia iniciática que funcionou como recruta. Assim foi o caso de três amigos, um estudante de arquitectura, um de medicina e outro de direito, que entrincheirados no mesmo desejo, se transformaram em irmãos. Quando as espanholas partiram, a sua amizade continuou, tornaram-se íntimos uns dos outros por força dos interesses comuns. Casaram e descasaram, viveram mil aventuras, e quando chegaram à meia-idade, tornaram-se vizinhos num lugarejo perto de Bucelas, proprietários de casas rústicas que embelezaram a seu gosto, sem destruir a traça original. Um deles chegou a constituir matrimónio por seis vezes, tratando as ex-companheiras com a maior deferência e com os devidos reparos legais.

Quando chegaram à idade da reforma, por unanimidade, tal qual confraria, cada um deles decidiu ter um cão. Foram a um criador e adquiriram três cachorros da mesma ninhada, três Lobos da Alsácia. Os bichos tornaram-se seus iguais, e em tudo eram idênticos. Não seria exagero dizer que se constituíram em seus confidentes, apesar do desaprovo das suas companheiras e da reprovação popular, mais acostumada aos burros e às vacas do que a reis de quatro patas. Como alunos de faculdade para a terceira idade, também como fisioterapia, levaram os seus cães à Escola e apostaram no seu adestramento. E sabem que mais? Não, não defraudaram, conseguiram educar os seus companheiros e levar a sua tarefa até ao fim, revivendo no treino o que a vida insistia em roubar-lhes. Os condutores mais novos adoravam-nos, ouviam as suas histórias e aprendiam com a sua experiência - eram os seus heróis.

Da 2ª Guerra, por contacto com os súbditos de Sua Majestade, a Rainha de Inglaterra, herdaram o hábito do five o’clock tea, bebendo caprichosamente chá de hortelã-pimenta com leite. O cerimonial acontecia debaixo de um pinheiro manso, circundado por uma pedra de mó que lhes servia de mesa, numa claridade distante das cinzentas abadias inglesas. Para além do chá, habituaram-se ao cachimbo e ao lenço de seda por debaixo do casaco. Eram na verdade uns autênticos dandies.

No ritual do chá punham em dia as suas conversas, comentavam as tendências sociais e falavam dos seus anseios e preocupações. Certo dia veio à baila o destino a dar aos cães, caso os animais lhes sobrevivessem. Apesar de acesa discussão, não chegaram a nenhum consenso acerca do bem-estar futuro dos seus companheiros. Cada um pensava de modo diverso e cada opinião era de imediato contestada. O arquitecto foi o mais censurado, ouviu coisas que não esperava ouvir, porque defendia o abate do seu cão, logo após o seu falecimento. Chamaram-lhe egoísta e cruel, para além de outras coisas que só se dizem em privado aos amigos. Entendia ele, que ninguém estava à altura para o substituir na tarefa, que o animal iria sofrer horrores, e que morreria de desgosto. Que mais valia abatê-lo do que sujeitá-lo a tal sofrimento. O assunto nunca mais foi retomado, porque havia causado algum azedume entre eles.

Na década de 90 eram assíduos frequentadores dos Pub’s em S. Pedro de Sintra, porque ofereciam música portuguesa ao vivo, o ambiente era reservado e a clientela seleccionada. Ali ainda arranjaram alguns namoricos inconsequentes, particularmente enquanto esperavam que as baladas do Zeca Afonso, cedessem lugar às cantigas tradicionais. Eram generosos para quem os servia e as suas maneiras encantavam os demais. De cachimbo aceso e olhos penetrantes, tudo observavam, ainda que de modo descontraído e respeitoso.

Certa noite, como já vinha cedo hábito, rumaram a S. Pedro de Sintra. Comeram, beberam e cantaram até ao fechar das portas. Saíram inspirados e alegres, teimando em regressar às suas casas. Tinham vindo num só carro, no mesmo em que haveriam de regressar. Sentiam-se moços e libertos do peso dos anos. No regresso, porque a lua brilhava, decidiram abandonar a estrada principal, optando por uma secundária, mais fresca e de paisagem luxuriante.

Numa ponte estreita, o velho Rover despistou-se, os seus passageiros caíram ao rio, inanimados para sempre, num lugar onde “Judas perdeu as calças” e que dificilmente consta nos mapas: Ribeira dos Tostões.

Após os funerais, conforme vontade do seu dono, o cão do arquitecto foi abatido. Chamava-se Kasan e repousa debaixo da pedra de mó que servira de mesa para o five o’clock tea.

A viúva do médico entregou o cão do defunto a um dos seus pacientes, que morava no Sobral de Monte Agraço, para ser guardião de quinta. Quinze dias passados, o animal conseguiu moer o destorcedouro da corrente e rumou para casa. Morreu atropelado a 500 metros da porta donde havia crescido.

A viúva do advogado, que não nutria qualquer sentimento pelo cão do marido, teve dificuldades em se livrar dele, porque o bicho odiava estranhos e resistia a novas amizades. Acabou por o dar a um matilheiro que o destinou à batida do Javali. Enjaulado com mais cinco, o animal era atacado pelos demais, especialmente à hora da refeição. Pouco a pouco, a sua resistência foi quebrando, ficou famélico e transformou-se num inibido. Quando foi solto na batida, esgueirou-se aos outros e foi descansar junto a uma das “portas”, porque ouviu pessoas e procurava o dono. À passagem do Javali, debaixo da saraivada, tombaram os dois.

Esta é uma história real. Apenas se alteraram as profissões dos donos e os nomes de alguns lugares, por respeito aos seus intervenientes, homens e cães.

Sem comentários:

Enviar um comentário