quinta-feira, 19 de abril de 2012

A TRAGÉDIA DA FERA QUE NUNCA O FOI



A paga do justo pelo pecador é uma injustiça histórica da qual dificilmente nos livraremos, já que continuamos a vitimar e a condenar inocentes por erros de julgamento fortemente ligados aos medos, à ignorância e à generalização, a quem as conveniências ou convenções não são alheias. E quando se trata de animais, nomeadamente dos cães, o mito do “bicho papão” sempre volta à tona de água. Como tantas vezes já o dissemos, assiste-se no mundo ocidental ao holocausto e ao sacrifício desses animais, como se fossem feras por si mesmos ou oriundos duma savana alienígena nociva e potencialmente criminosa. Queremos dividir convosco a história da White, uma Pastora Alemã adulta com 22 kg de peso, extremamente meiga e carente de afecto, submissa e ligada à brincadeira com outros cães (ela coabita actualmente com uma cocker preta que adora). Segundo o que nos fizeram saber, a White foi primeiro propriedade de um emigrante brasileiro desafortunado, um indivíduo que mal tinha para comer e que a sujeitava a igual sorte, correndo por isso sérios riscos de vir a ser abandonada. Conhecedora da situação, uma vizinha piedosa decidiu adoptá-la, sem mais nem menos, movida somente pela compaixão que o animal lhe provocava. A adaptação da cadela ao novo lar aconteceu sem problemas, facilitada pelo contributo da cocker que já lá morava e pela atenção que a nova dona lhe dispensava, pessoa que ignorava por completo a raça, as suas necessidades e modus operandi, para quem todos os cães eram iguais e todos sedentos em exclusivo de mimos e afectos.


Certo dia, como já vinha sendo hábito (não sabemos com que justiça se enraizou), a dita senhora soltou as duas cadelas num parque para brincarem com os outros cães ali presentes e tudo parecia correr bem. Eis que, vindo não se sabe donde, surge um casal acompanhado por dois filhos, um mais velho e outro ainda bem tenrinho que disputavam entre si uma bola. Espevitada pelo brinquedo e pela algazarra, num ápice, a pastora alemã correu na sua perseguição, e no meio da confusão e do pânico instalados, acabou por mordiscar o infante mais pequeno, causando-lhe ferimentos superficiais, uns pequenos arranhões na pele solucionados pelo recurso ao Betadine. A polícia e o INEM foram chamados e a cadela foi recambiada para o Canil Municipal, identificada como potencialmente perigosa e ali enclausurada durante 24 horas (não ficou lá mais tempo porque tanto a dona como o veterinário do animal assumiram a responsabilidade do sequestro doméstico, num período até 15 dias, apresentando prontamente o seguro de responsabilidade civil e a licença camarária da cadela). Como consequência do ocorrido a White irá ser castrada e ver-se-á obrigada a frequentar uma escola canina, onde deverá ser aprovada na disciplina de obediência e ser alvo de aulas de sociabilização, procedimentos correctos mas tardios diante da esterilização requerida.


Como não se podem dissociar os cães dos seus donos, assistindo-se vezes sem conta a uma transferência física e anímica entre ambos, decorrendo o comportamento dos animais da indução de quem os alimenta e instrói, importa considerar aquilo que geralmente não é considerado – a pessoa dos seus proprietários, a sua contribuição para o dolo alheio e para vitimização dos cães. A actual dona da White é uma pessoa afável, positiva e que busca na energia cósmica a solução para todos os seus problemas (como ela gostaria de ter apertado a mão ao Dailai Lama, pois assim subiria mais um nível que a colocaria mais perto da divindade), uma desempregada de cinquenta e tal primaveras que vive só e que se preocupa com o avanço metafísico dos demais rumo à felicidade eterna. Não obstante, distante do império dos seus sentidos e para além da intuição que a guia, soltou a cadela no parque e gerou o disparate, sabendo que tendencialmente ela corria atrás de quem corresse à sua frente. As convicções e instintos da senhora levaram-na a desconsiderar os instintos presentes no animal, necessitados de regra e controle em prol dos demais e do bem-estar da sua protegida. Quando adquiriu a White, do alto dos seus cento e tal quilos, a piedosa senhora nunca alvitrou da necessidade de a treinar, confiante nos desígnios do bem e na experiência havida com a cocker, não procurando até esse momento qualquer informação sobre pastores alemães ou acerca do comportamento canino, omissões que se revelaram fatais para o funesto desenlace e para o dolo de outrem. Apraz-nos perguntar: quando exigiremos aos donos um atestado de robustez física e psicológica? Outros já não o fizeram? Para quando obrigar todos proprietários caninos à aprovação num curso de obediência básica onde se fariam presentes com os seus cães? O licenciamento não deveria depender disso? Será mais civilizado continuar a castrar e a matar cães?


A White depois de testada não revelou qualquer evidência de impulso à luta, somente excelentes impulsos ao movimento e à defesa, mostrando assim quanto gosta da dona e o quanto lhe está grata. Quando provocada não agride e fica-se pelo aviso, ladrando invariavelmente e nunca se valendo da ameaça que o rosnar gutural indicia. Não avança para as pessoas e receia o castigo, sociabiliza-se sem dificuldade com estranhos e facilmente se incorpora numa matilha animal espontânea e heterogénea. Deixa-se conduzir por crianças e apenas reage à presença das aves, dificuldade que rapidamente ultrapassará. Estaremos na presença de um cão potencialmente perigoso? Será ela a responsável pela violação das regras que jamais alguém lhe houvera ensinado? Certamente que não, mas será ela que pagará a ausência de uma liderança séria e eficaz! Lamentamos que os cães não possam cantar, porque atendendo ao número de castrados que virá, certamente envergonhariam, enquanto eunucos, o mais excelso coro alguma vez presente na Capela Sistina. Resta o silêncio dos inocentes!

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