Não é nosso propósito tratar aqui da
relação entre a pintura ou de outras artes com a cinotecnia, muito embora ela
exista e deva ser considerada para uma melhor compreensão da antrozoologia como
um todo, uma vez que a arte não se escusou ao retrato e à representação dos
animais desde a pré-história, emergindo os cães segundo o que foram e muitas vezes
de acordo com o significado que lhes era ou foi atribuído, face à sua utilidade
ou segundo a religiosidade de quem os pintou, na ancestral relação entre a natureza
dos animais e a preocupação metafísica dos homens, relação essa que ainda
subsiste e leva alguns a uma compreensão surrealista dos cães, fortemente ligada
aos seus seus sonhos e invariavelmente distante da biologia, bem-estar e
potencial individual dos animais, que sujeitos à biodiversidade, podem ou não
massificar as expectativas dos seus donos, projectando assim o endeusamento ou
desprezo dos cães consoante o grau de cumprimento das suas aspirações. E
nalguns casos, quando a plena satisfação acontece, é melhor seguir o conselho:
“cuidado com o dono que o cão está preso!”
O homem bem cedo, ao deparar-se com o
lobo, viu nesse animal a possibilidade de realizar alguns dos seus sonhos,
anseios e necessidades, preocupações fortemente ligadas à sua sobrevivência
individual e colectiva, ao aumento dos seus proventos e bem-estar – criou o
cão, um lobo que foi transformando para o seu uso e serviço até aos dias de
hoje, dando-lhe, aqui e ali, caracterísiticas morfológicas únicas presas à
estética de quem o tem vindo a criar e por vezes distantes da qualidade de vida
e longevidade que qualquer espécie animal requer, isentando-o assim do peso dos
ecossistemas e do relógio biológico que até então regulavam as suas
características, viver social, ciclos de vida e proliferação. Também o chacal e
outros canídeos têm sido sujeitos ou usados para o mesmo fim ou prestação, na
procura de algum atavismo que melhor garanta uma tarefa em particular ou
contribua para alguma transformação morfológica agora requerida e já há muito
procurada na dicotomia entre a imago
mundis e a imago anime.
Se considerarmos a canicultura e a
cinotecnia como rebentos ou brotos da cinofilia (enquanto raiz comum), então
facilmente vislumbraremos os diferentes critérios de selecção presentes em cada
uma delas, preocupações oriundas da diferença de propósitos e ambiguidade de
objectivos, ainda que os adeptos de ambos digam disso coisa diversa, reclamando
cada um a continuidade genuína das raças que justifica a sua selecção na já
gasta controvérsia entre a beleza e o trabalho, onde os sentimentos exacerbados
de parte a parte não permitem a harmonia entre o agradável e o útil por força
da realidade que obsta ao sonho ou vice versa.
Se entendermos a criação de cães como
um acto humano de manipulação genética sobre esses animais e também à luz do
actual conceito de beneficiamento, sem grande dificuldade encontraremos
criadores mais preocupados com o préstimo objectivo do seu produto e outros
profundamente empenhados na massificação dos seus sonhos, uns verdadeiramente apostados
nas mais-valias e outros no seu gozo pessoal ou na manifestação das suas
inquietudes, o que a ninguém espanta porque o cão se presta a tudo quedo e mudo.
A procura do cunho pessoal na
construção das várias raças, marca indubitavel do artista que habita dentro de
cada um de nós, continua a levar alguns à perpétuação de insuficiências e
incapacidades que obstam à saúde, propósito e rendimento dos cães que colocam
em praça, promovendo assim o seu descrédito, desprezo e esquecimento. A menos
que pretenda ficar com todos, nenhum criador produz cachorros para si mesmo, mas
antes para diferentes destinatários e serviços segundo as expectativas
presentes em cada raça que ciclicamente precisam de ser reforçadas para que as
caracterísitcas originais se mantenham e saiam exponenciadas, porque a venda de
cães deve também ser entendida como uma prestação de serviço.
Remetendo-nos agora em exclusivo à
classe de cães de trabalho, importa dizer que a qualidade desses animais é
visível, mensurável e objectiva, ainda que se assista a um decréscimo
significativo da sua capacidade laboral, porte e robustez, factores ligados à
precaridade nas selecções e à teimosia injustificada de uns quantos, que apostados
na satisfação pessoal remetem as raças que criam para a história, dando-lhes
assim um final trágico e indigno diante dos seus pergaminhos, mercê da escolha
arbitrária dos progenitores.
Como na cinotecnia é a realidade que
torna possível o sonho, pergunta-se: porque se insiste na escolha de
reprodutores desconhecidos e não testados? Serão os cães todos iguais em
capacidade e potência? A cinotecnia não pode constituir-se num jogo de sorte e
azar, necessita de certezas para que o sucesso aconteça. Desde há muito que se
sabe da existência de indivíduos próprios ou impróprios para o trabalho. O cão
de trabalho deve descender de cães que nele obtiveram superior aprovação,
dimuindo assim os riscos de descalabro e mantendo incólumes os indíces laborais
pretendidos, o que para mal dos nossos pecados nem sempre acontece, quase
sempre por culpa nossa.
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