quinta-feira, 19 de abril de 2012

A IMAGO MUNDI E A IMAGO ANIME NA CINOTECNIA



Não é nosso propósito tratar aqui da relação entre a pintura ou de outras artes com a cinotecnia, muito embora ela exista e deva ser considerada para uma melhor compreensão da antrozoologia como um todo, uma vez que a arte não se escusou ao retrato e à representação dos animais desde a pré-história, emergindo os cães segundo o que foram e muitas vezes de acordo com o significado que lhes era ou foi atribuído, face à sua utilidade ou segundo a religiosidade de quem os pintou, na ancestral relação entre a natureza dos animais e a preocupação metafísica dos homens, relação essa que ainda subsiste e leva alguns a uma compreensão surrealista dos cães, fortemente ligada aos seus seus sonhos e invariavelmente distante da biologia, bem-estar e potencial individual dos animais, que sujeitos à biodiversidade, podem ou não massificar as expectativas dos seus donos, projectando assim o endeusamento ou desprezo dos cães consoante o grau de cumprimento das suas aspirações. E nalguns casos, quando a plena satisfação acontece, é melhor seguir o conselho: “cuidado com o dono que o cão está preso!”


O homem bem cedo, ao deparar-se com o lobo, viu nesse animal a possibilidade de realizar alguns dos seus sonhos, anseios e necessidades, preocupações fortemente ligadas à sua sobrevivência individual e colectiva, ao aumento dos seus proventos e bem-estar – criou o cão, um lobo que foi transformando para o seu uso e serviço até aos dias de hoje, dando-lhe, aqui e ali, caracterísiticas morfológicas únicas presas à estética de quem o tem vindo a criar e por vezes distantes da qualidade de vida e longevidade que qualquer espécie animal requer, isentando-o assim do peso dos ecossistemas e do relógio biológico que até então regulavam as suas características, viver social, ciclos de vida e proliferação. Também o chacal e outros canídeos têm sido sujeitos ou usados para o mesmo fim ou prestação, na procura de algum atavismo que melhor garanta uma tarefa em particular ou contribua para alguma transformação morfológica agora requerida e já há muito procurada na dicotomia entre a imago mundis e a imago anime.


Se considerarmos a canicultura e a cinotecnia como rebentos ou brotos da cinofilia (enquanto raiz comum), então facilmente vislumbraremos os diferentes critérios de selecção presentes em cada uma delas, preocupações oriundas da diferença de propósitos e ambiguidade de objectivos, ainda que os adeptos de ambos digam disso coisa diversa, reclamando cada um a continuidade genuína das raças que justifica a sua selecção na já gasta controvérsia entre a beleza e o trabalho, onde os sentimentos exacerbados de parte a parte não permitem a harmonia entre o agradável e o útil por força da realidade que obsta ao sonho ou vice versa.


Se entendermos a criação de cães como um acto humano de manipulação genética sobre esses animais e também à luz do actual conceito de beneficiamento, sem grande dificuldade encontraremos criadores mais preocupados com o préstimo objectivo do seu produto e outros profundamente empenhados na massificação dos seus sonhos, uns verdadeiramente apostados nas mais-valias e outros no seu gozo pessoal ou na manifestação das suas inquietudes, o que a ninguém espanta porque o cão se presta a tudo quedo e mudo.


A procura do cunho pessoal na construção das várias raças, marca indubitavel do artista que habita dentro de cada um de nós, continua a levar alguns à perpétuação de insuficiências e incapacidades que obstam à saúde, propósito e rendimento dos cães que colocam em praça, promovendo assim o seu descrédito, desprezo e esquecimento. A menos que pretenda ficar com todos, nenhum criador produz cachorros para si mesmo, mas antes para diferentes destinatários e serviços segundo as expectativas presentes em cada raça que ciclicamente precisam de ser reforçadas para que as caracterísitcas originais se mantenham e saiam exponenciadas, porque a venda de cães deve também ser entendida como uma prestação de serviço.


Remetendo-nos agora em exclusivo à classe de cães de trabalho, importa dizer que a qualidade desses animais é visível, mensurável e objectiva, ainda que se assista a um decréscimo significativo da sua capacidade laboral, porte e robustez, factores ligados à precaridade nas selecções e à teimosia injustificada de uns quantos, que apostados na satisfação pessoal remetem as raças que criam para a história, dando-lhes assim um final trágico e indigno diante dos seus pergaminhos, mercê da escolha arbitrária dos progenitores.


Como na cinotecnia é a realidade que torna possível o sonho, pergunta-se: porque se insiste na escolha de reprodutores desconhecidos e não testados? Serão os cães todos iguais em capacidade e potência? A cinotecnia não pode constituir-se num jogo de sorte e azar, necessita de certezas para que o sucesso aconteça. Desde há muito que se sabe da existência de indivíduos próprios ou impróprios para o trabalho. O cão de trabalho deve descender de cães que nele obtiveram superior aprovação, dimuindo assim os riscos de descalabro e mantendo incólumes os indíces laborais pretendidos, o que para mal dos nossos pecados nem sempre acontece, quase sempre por culpa nossa.

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