terça-feira, 1 de maio de 2012

GINÁSTICA CINOTÉCNICA: A FORMAÇÃO DO CÃO-GATO



Desde cedo se percebeu, quando se pretendeu usar o cão como guerreiro nos tempos modernos e treiná-lo como militar, da necessidade de um adestramento específico visando a supressão de algumas dificuldades e a potenciação das suas capacidades ou complementaridades, da emergência de pistas tácticas com obstáculos próprios e capazes para o simulacro do teatro operacional, nascendo assim, um pouco por toda a parte, o conceito e elaboração da pista táctica (nalguns casos tratada como pista de fogo), requisito que viria a revelar-se fundamental para o treino do cão de guerra. O modo diverso de fazer a guerra e a perca galopante de atribuições militares por parte dos cães, levaram ao desuso e desaparecimento das outrora famosas pistas tácticas, que subsistiriam ainda até aos alvores do cão-polícia, transição natural que tanto creditou algumas raças e uma ou duas em particular.

E como não estamos aqui a tratar do fenómeno de Tunguska e tudo tem o seu início, todas as pistas que hoje vemos tiveram a sua origem comum nas pistas militares, a menos que consideremos a actividade circense como madre de algumas modalidades ou disciplinas caninas, o que nos parece pouco provável. Apesar da novidade de propósitos ter levado a diferentes filosofias e outros tantos objectivos, o hábito sistemático de treinar cães é um legado militar sobre os cães ditos de utilidade ou de trabalho, mesmo que eles se tenham vindo a transformar em simples guardiões, caçadores ou companheiros, porque ainda definimos o treino como rigor, apostamos na constância das acções, buscamos o condicionamento, procuramos a uniformidade, o apego aos procedimentos e temos como base de todo e qualquer adestramento a disciplina de obediência, ainda que os meios para o seu alcance tenham mudado, diga-se que felizmente, em abono dos cães, na defesa da sua integridade e individualidade, defesa operada pelo reforço positivo e pelo uso requerente à memória afectiva presente nestes animais.

A passarelle já existia e dela se fazia uso antes de um “sonhador” ter inventado o agility pela observação das provas equestres, o mesmo aconteceu com os esconderijos hoje usados para o treino do cão de guarda e os retrievers são anteriores aos novos métodos de ensino. Valerão as pistas tácticas somente como referência para os actuais cães paisanos ou serão também importantes para a sua formação e capacitação? Estamos em crer que elas não perderam a sua actualidade e que muito podem subsidiar os actuais cães de trabalho, considerando o alcance dos seus indices atléticos, superior capacitação, bem-estar e longevidade, enquanto preparação específica para o trabalhado vindouro, alvos muitas vezes aquém das pistas em voga e que se transformaram no melhor dos marketings para quem tem rações ou acessórios para vender, porque não promovem o conhecimento biomecânico, o seu aproveitamento e potenciação, subsidiando ao invés o show e gozo efémero dos donos.

Para além destes aspectos, as pistas tácticas foram e devem ser concebidas para dar combate e levar de vencida os medos mais comuns presentes nos cães, geralmente transformados em traumas que inibem de sobremaneira a prestação canina e a sua saúde como um todo. Como a lista desses medos é interminável adiantaremos apenas alguns: acrofobia, acustofobia, batofobia, cainofobia, cimofobia, claustrofobia, cleitrofobia, escotofobia, ligirofobia e mictofobia, o rol é deveras extenso! As mais-valias das pistas tácticas não se esgotam nos benefícios psicológicos e na melhoria dos índices atléticos, no aumento da prontidão e na preparação específica dos cães, estendendo-se também à correcção morfológica e à melhoria dos aprumos, isto se convidarmos os cachorros para a sua prática aquando da face plástica que os ciclos infantis oferecem.

Os inimigos das pistas tácticas e que delas dizem horrores são na sua maioria gente que na década de 80 ainda não tinha atingido a maioridade e que assustada com os relatos que foi ouvindo, não raramente exagerados, as tem conotado como hediondas e desprezíveis quando comparadas com as actuais, de índole desportiva, de técnica rudimentar e de fácil resolução, o que compromete de sobremaneira o seu parecer, por não ser tangencial e não resultar da experiência objectiva que induz à comprovação. Assim também nasceu a história do lobo mau e o mito da avestruz com a cabeça debaixo da terra! Há quem também diga que a pista táctica é uma fomentadora de lesões e que por causa disso entrou em desuso, o que é falso, uma vez que o seu objectivo aponta claramente na direcção contrária e tem como prioridade a salvaguarda da integridade global dos cães, preparando-os para os perigos e desafios que encontrarão no seu quotidiano, valendo-se para isso de obstáculos idênticos àqueles com que irão ser confrontados.

O adestramento perderia o seu significado se em cada cão houvesse um gato, pelo menos na sua vertente atlética, porque o felino dispensa nesta matéria de qualquer tipo de aprendizado mercê das suas características inatas. Ao invés, o cão necessita de aprender a saltar correctamente, a distribuir prontamente o seu peso corporal pelos dois pares de membros nas recepções ao solo, o que lhe permitirá impactos menos violentos e garantirá a progressão por mais tempo e sem delongas. Ele irá necessitar de aprender a escalar, quer para prestar socorro quer para se libertar ou salvar, terá que aprender a nadar com os dois pares de membros abaixo da linha de água, caso contrário entrará em colapso e virá a morrer afogado. Terá que aprender a escapar-se do fogo e a evoluir em diferentes superfícies, pisos e acidentes (naturais ou artificiais), e ser condicionado na resolução de todo e qualquer obstáculo que encontrará pela frente.

Também terá de acostumar-se à vida urbana, à novidade de materiais e a evitar os danos que estes lhe possam causar, a vários tipos de transporte e a toda a casta de gente na progressão alinhada que lhe será exigida. Ser experimentado e aprovado nas situações em que importa socorrer-se e socorrer o seu dono, necessitando para isso de usar toda a ferramenta morfológica ao seu dispor, meta que a pista táctica não dispensa e que abraça como objectivo, resultando daí a sua actualidade e utilidade. Cortar, escalar, escavar, nadar, rasgar, rastejar, saltar, subir escadas, transportar e aprender a ocultar-se, são algumas das acções que a pista táctica lhe oferecerá e que irão capacitá-lo para a sua sobrevivência e mais-valia. A somar a isto, pelo peso do trabalho binomial que não dispensa a cumplicidade, a sua condução em liberdade e autonomia acontecerão mais cedo e tornar-se-ão mais eficazes. 

A natureza dos obstáculos propostos pelas pistas tácticas, para além de fomentar a escolha correcta dos andamentos naturais presentes nos cães pràs tarefas, tende e normalmente consegue, dotar determinadas raças de características funcionais que a sua selecção desprezou ou omitiu, algo a que a diferenciação estética não é alheia e que tem sido responsável por várias afecções e não raras aberrações. Os milagres operados pelas pistas tácticas ficam a dever-se à diversidade dos seus obstáculos e propósitos, ao respeito salutar pelos mais elementares princípios pedagógicos de ensino e à qualidade dos mestres de campo, gente experimentada na arte de ensinar cães e que disso faz uma verdadeira paixão, indivíduos que vieram para servir e que nisso se sentem bem, ainda que por vezes não sejam compreendidos, porque não esperam retribuição e sempre procuram o aprimoramento.

Uma pista táctica digna desse nome deve estar equipada com obstáculos típicos para os cachorros, ter um perímetro exterior de aquecimento, um conjunto de aparelhos para a correcção morfológica, obstáculos de diferente índole e outros específicos para o desenvolvimento interdisciplinar, ser um simulacro das acções reais que o cão terá pela frente e que exigem a sua pronta resolução. Pensar e agir ao contrário, é desejar que o cataclismo surja para que o treino aconteça. Situações destas fazem lembrar aquele crente pouco crédulo que só se lembrava de Santa Bárbara quando a borrasca estoirava.
Apesar das múltiplas vantagens que as pistas tácticas oferecem, o seu número é diminuto quando comparado com as de competição, facto que se fica a dever ao seu custo, à escassez de técnicos capazes e à ignorância de grande parte dos proprietários caninos, mais interessados naquilo que os cães têm para lhes dar do que em dar-lhes subsídios de longevidade. 

Sem comentários:

Enviar um comentário