Perante a incerteza da continuidade do actual SNS (Serviço Nacional de Saúde) como o conhecemos, parece irrisório ou mesquinho abordar aqui os problemas relativos à saúde animal, nomeadamente aqueles que afectam ou vitimam os animais domésticos, também eles de sobremaneira fustigados pela crise económica que agora vivemos, particularmente diante do fecho de algumas maternidades, da baixa taxa de natalidade e face ao aumento da mortalidadade nos mais idosos. Não obstante, alguma parte da fatia da crise acaba paga pelo sacrifício animal, o que a ninguém espanta porque sempre foi assim.
Tempos houve, no finado e nunca
esquecido Império Romano, em que algumas tribos godas trocavam filhos por cães,
entregando-os para o exército imperial e recebendo na permuta os animais
indispensáveis à sua sobrevivência, quando fustigados pela fome ou pela
escassez de alimento. Esta troca viria a revelar-se fatídica para o Império,
porque os germanos adoptados tomaram a chefia e formaram a elite de muitas das
legiões e hostes romanas, contribuindo assim para o final desse milenar
Império. Na China, mais do que uma iguaria, a carne de cão tem vindo a socorrer
várias gerações de chineses na procura de proteína animal, particularmente nas
zonas rurais, porque os cães procriam duas vezes anualmente e as suas ninhadas são
numerosas quando comparadas com as das vacas, das cabras e das ovelhas, já que
a carne de porco nem sempre esteve ao alcance de todos.
Pondo de parte a história e os hábitos
alimentares de outros, no contexto que nos toca e importa – o dos cães na
actual crise – vale a pena observar os resultados do nosso mau estado económico
sobre a canicultura que temos. A ocorrência de ninhadas diminuiu
significativamente e a qualidade do seu acompanhamento desceu drasticamente. A
diminuição da procura gerou a baixa de preços e a intrusão de cães oriundos do
estrangeiro, invariavelmente de baixo custo e de qualidade duvidosa, para isso
também tem contribuído. O abandono de cães tem vindo a aumentar a par com a
esterilização e cada vez mais se vêem mais cães “puros” abandonados. Muitos
cachorros são dados porque não há quem os compre, acabando muitas vezes
condenados à subnutrição e arredados dos mais elementares cuidados higieno-sanitários.
Não poucas escolas caninas fecharam as suas portas e as que sobrevivem assistem
ao decréscimo dos seus alunos. Muitos consultórios veterinários estão “às
moscas” e o abandono do quadro de vacinação rasa o escândalo, pois a venda
livre das vacinas nas farmácias não obriga ao preço das consultas. As pet shops
desaparecem sem deixar rasto tal qual seita promissora e prontamente
desacreditada, ao invés, as lojas dos chineses nunca venderam tantos acessórios
para cães. A procura de rações de baixa qualidade nas grandes superfícies tem
vindo a aumentar e poucas rações de marca não sentiram a crise desde que ela se
instalou aqui.
Com muitos criadores à beira da
bancarrota, não sendo poucos os que abandonaram já essa actividade, o número de
cães para abater tem vindo a aumentar, particularmente a partir dos seis anos
de idade, altura em que normalmente surgem os tumores de índole diversa e que
carecem de extracção, porque as intervenções cirúrgicas são dispendiosas,
escasso vai o dinheiro e as despesas continuam a crescer. O endividamento das famílias, mais do que outro
flagelo ou maleita, como se já não bastasse o folhetim sobre os cães perigosos,
tem sido o maior responsável pelo abandono e abate dos cães, bichos sem
perspectiva de futuro e que dificilmente acreditam nas promessas feitas prà
semana dos nove dias ou para o ano de dois mil e carqueja! Diante deste
panorama facilmente se compreende que só a recuperação económica poderá valer
aos cães. Até lá continuarão a morrer muitos mais e somente alguns sortudos
escaparão, exactamente aqueles cujos donos a crise não apanhou desprevenidos.
Antes de adquirir um cão seja previdente, faça contas, veja se tem condições
para o sustentar satisfatoriamente sem prejudicar de sobremaneira tanto a
economia como a vida dos seus familiares.
Dizemos entre nós que “entre mortos e
feridos alguém há-de escapar”, que “não há mal que sempre dure ou bem que não
se acabe”, certamente aforismos de esperança perpétuados pelos sobreviventes ou
vencedores de outras crises, o que implica em dizer que o desalento não deve
agravar o infortúnio, pois já basta que as coisas corram mal para ainda serem
agravadas pela nossa rendição. Vivemos num tempo de contenção e só o
ultrapassaremos pelo apego à razão, pois só ela nos ajudará na certeza das
opções e estratégias. Estamos certos que a canicultura sobreviverá e sustentará
todas as actividades dela advindas, ainda que de modo diverso do actual e de
acordo com outras prioridades ou prestações. Quer nos agrade ou não, qualquer
crise é também uma forma de selecção natural e quem não se adapta dificilmente
sobreviverá. Há que apostar na qualidade, na formação e na inovação, diminuir o
número de ninhadas, não aumentar os efectivos, procurar a relação
preço-qualidade nas rações, trabalhar em sistemas integrados, descobrir novos
mercados e alcançar outras mais-valias, porque o tempo que corre é
indubitavelmente de depuração. O sentimento que nos liga aos cães não nos
deverá levar ao seu extermínio, coisa fácil de acontecer quando tomamos a
emoção no lugar da razão. A inutilidade dos burros, e aqui estamos a falar dos
asnos e demais gado muar, tem vindo a provocar a sua extinção e se alguns
sobrevivem ainda, devem-no a um grupo de apaixonados certamente a braços com as
contas. Com os cães acontecerá coisa diversa, pois a sua utilidade não se
esgota nos serviços que até agora têm prestado – o cão sobreviverá!
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