A paga do justo pelo pecador é uma
injustiça histórica da qual dificilmente nos livraremos, já que continuamos a
vitimar e a condenar inocentes por erros de julgamento fortemente ligados aos
medos, à ignorância e à generalização, a quem as conveniências ou convenções
não são alheias. E quando se trata de animais, nomeadamente dos cães, o mito do
“bicho papão” sempre volta à tona de água. Como tantas vezes já o dissemos,
assiste-se no mundo ocidental ao holocausto e ao sacrifício desses animais,
como se fossem feras por si mesmos ou oriundos duma savana alienígena nociva e
potencialmente criminosa. Queremos dividir convosco a história da White, uma
Pastora Alemã adulta com 22 kg
de peso, extremamente meiga e carente de afecto, submissa e ligada à
brincadeira com outros cães (ela coabita actualmente com uma cocker preta que
adora). Segundo o que nos fizeram saber, a White foi primeiro propriedade de um
emigrante brasileiro desafortunado, um indivíduo que mal tinha para comer e que
a sujeitava a igual sorte, correndo por isso sérios riscos de vir a ser
abandonada. Conhecedora da situação, uma vizinha piedosa decidiu adoptá-la, sem
mais nem menos, movida somente pela compaixão que o animal lhe provocava. A
adaptação da cadela ao novo lar aconteceu sem problemas, facilitada pelo
contributo da cocker que já lá morava e pela atenção que a nova dona lhe
dispensava, pessoa que ignorava por completo a raça, as suas necessidades e
modus operandi, para quem todos os cães eram iguais e todos sedentos em
exclusivo de mimos e afectos.
Certo dia, como já vinha sendo hábito
(não sabemos com que justiça se enraizou), a dita senhora soltou as duas
cadelas num parque para brincarem com os outros cães ali presentes e tudo
parecia correr bem. Eis que, vindo não se sabe donde, surge um casal
acompanhado por dois filhos, um mais velho e outro ainda bem tenrinho que
disputavam entre si uma bola. Espevitada pelo brinquedo e pela algazarra, num
ápice, a pastora alemã correu na sua perseguição, e no meio da confusão e do
pânico instalados, acabou por mordiscar o infante mais pequeno, causando-lhe
ferimentos superficiais, uns pequenos arranhões na pele solucionados pelo recurso
ao Betadine. A polícia e o INEM foram chamados e a cadela foi recambiada para o
Canil Municipal, identificada como potencialmente perigosa e ali enclausurada
durante 24 horas (não ficou lá mais tempo porque tanto a dona como o
veterinário do animal assumiram a responsabilidade do sequestro doméstico, num
período até 15 dias, apresentando prontamente o seguro de responsabilidade
civil e a licença camarária da cadela). Como consequência do ocorrido a White
irá ser castrada e ver-se-á obrigada a frequentar uma escola canina, onde deverá
ser aprovada na disciplina de obediência e ser alvo de aulas de sociabilização,
procedimentos correctos mas tardios diante da esterilização requerida.
Como não se podem dissociar os cães
dos seus donos, assistindo-se vezes sem conta a uma transferência física e
anímica entre ambos, decorrendo o comportamento dos animais da indução de quem
os alimenta e instrói, importa considerar aquilo que geralmente não é
considerado – a pessoa dos seus proprietários, a sua contribuição para o dolo
alheio e para vitimização dos cães. A actual dona da White é uma pessoa afável,
positiva e que busca na energia cósmica a solução para todos os seus problemas
(como ela gostaria de ter apertado a mão ao Dailai Lama, pois assim subiria mais
um nível que a colocaria mais perto da divindade), uma desempregada de
cinquenta e tal primaveras que vive só e que se preocupa com o avanço
metafísico dos demais rumo à felicidade eterna. Não obstante, distante do
império dos seus sentidos e para além da intuição que a guia, soltou a cadela
no parque e gerou o disparate, sabendo que tendencialmente ela corria atrás de
quem corresse à sua frente. As convicções e instintos da senhora levaram-na a
desconsiderar os instintos presentes no animal, necessitados de regra e
controle em prol dos demais e do bem-estar da sua protegida. Quando adquiriu a
White, do alto dos seus cento e tal quilos, a piedosa senhora nunca alvitrou da
necessidade de a treinar, confiante nos desígnios do bem e na experiência
havida com a cocker, não procurando até esse momento qualquer informação sobre
pastores alemães ou acerca do comportamento canino, omissões que se revelaram
fatais para o funesto desenlace e para o dolo de outrem. Apraz-nos perguntar:
quando exigiremos aos donos um atestado de robustez física e psicológica?
Outros já não o fizeram? Para quando obrigar todos proprietários caninos à
aprovação num curso de obediência básica onde se fariam presentes com os seus
cães? O licenciamento não deveria depender disso? Será mais civilizado
continuar a castrar e a matar cães?
A White depois de testada não revelou
qualquer evidência de impulso à luta, somente excelentes impulsos ao movimento
e à defesa, mostrando assim quanto gosta da dona e o quanto lhe está grata.
Quando provocada não agride e fica-se pelo aviso, ladrando invariavelmente e
nunca se valendo da ameaça que o rosnar gutural indicia. Não avança para as
pessoas e receia o castigo, sociabiliza-se sem dificuldade com estranhos e
facilmente se incorpora numa matilha animal espontânea e heterogénea. Deixa-se
conduzir por crianças e apenas reage à presença das aves, dificuldade que
rapidamente ultrapassará. Estaremos na presença de um cão potencialmente
perigoso? Será ela a responsável pela violação das regras que jamais alguém lhe
houvera ensinado? Certamente que não, mas será ela que pagará a ausência de uma
liderança séria e eficaz! Lamentamos que os cães não possam cantar, porque
atendendo ao número de castrados que virá, certamente envergonhariam, enquanto
eunucos, o mais excelso coro alguma vez presente na Capela Sistina. Resta o
silêncio dos inocentes!