Sucedânea
à criação de “pintos do dia” que tantos aviários gerou, no hábito enraizado da
economia paralela que o interior trouxe para a cidade, a criação de cães
aconteceu um pouco por toda a parte, substituindo nos quintais as tradicionais
hortas, capoeiras, coelheiras, currais, charcos e pombais. Num ápice e de modo
inesperado, fruto do tempo e por auspício do consumo exagerado, o número de
canicultores cresceu assustadoramente. Hoje decresce vertiginosamente e há quem
tudo faça para se ver livre dos cães na celebérrima política do “passar da
batata quente”, ressuscitando desse modo velhas patranhas que de novas só têm
os seus intervenientes, já que a canicultura não é auto-suficiente e sempre
dependerá doutra actividade para o seu sustento. Recentemente ouvimos uma
patranha digna de destaque que queremos dividir com os nossos leitores. Fulano
tal, que diz de si mesmo ser um adestrador reputado e com promissores contactos
internacionais, na ânsia de angariar um seguidor, mão-de-obra barata e de se ver
livre de um cão, solta para o incauto: “ Este cão está vendido para uma polícia
estrangeira por 3.400€, mas como eu gosto de ti e tenho prazer em ensinar-te,
vendo-te somente por 340!” Em tempos idos conhecemos um sujeito que esteve
prestes a vender o Convento de Mafra, apesar de não ser seu, ser de custo incalculável,
de manutenção astronómica e ter 365 portas e janelas. É preciso descaramento,
mas há sempre alguém que embarca!
terça-feira, 22 de maio de 2012
A PARAGEM DO TEMPO ÀS 10 PARA AS DUAS
Há quem
diga e nisto parece ter alguma razão, que os cães de trabalho são normalmente
feios e mal-amanhados, toscos de morfologia e de qualidade duvidosa, isto se
considerarmos que nas classes ditas laborais, pelo menos na nossa latitude,
superabundam cães com essas características. Ninguém duvida que existem por cá
excelentes exemplares de trabalho, que juntam à aptidão uma morfologia
invejável, contudo são muito poucos. Paralelamente, os canicultores de cães de
utilidade parecem não se preocupar com isso, produzindo animais com uma
biomecânica desprezível onde sobressaiem desaprumos de toda a ordem que irão
gerar animais côncavos e por isso mesmo impróprios. Dá ideia que o relógio
parou em Portugal às dez para as duas para os criadores de cães de trabalho, considerando
o número de exemplares que apresenta o peito estreito ou invertido, abatimento
de metacarpos e mãos divergentes, incapacidades responsáveis pelo selar do
dorso, pelo desprendimento de bolsas de líquido sinovial e pelo aparecimento de
higromas, dando a idéia que o cão de trabalho já nasce estoirado pelo serviço. Sabe-se que na maioria dos casos o problema não é genético e resulta
da falta de acompanhamento dos cachorros, verdadeiros sobreviventes sujeitos à
subnutrição e isentos do parecer médico-veterinário. Está mais do que na hora de dar corda ao relógio e apostar na criação de exemplares capazes, capazes de nos
surpreender e capazes para o serviço que deles esperamos.
QUE GRANDE CÃO EU LHE VENDI!
Muita
gente já fechou as portas e entre ela grande número de sensatos, um sem número
de oportunistas e outro tanto de gente imprópria, graças à actual crise
económica que inevitavelmente acabou por atingir a canicultura e os seus
apaixonados, também ela vítima e reflexo do outrora crédito fácil que teve como
consequências o aumento da procura e a supervalorização dos cães, como se o
dinheiro não tivesse fim e nunca nos viessem a pedir contas. Nunca foi tão
fácil comprar um cão, considerando que algumas raças são agora vendidas a 1/6
do preço encontrado nos finais da década de 90, altura áurea para a importação
e ocasião para grandes negociatas. Como a crise não é só falada em português e
ultrapassa largamente as nossas fronteiras, também porque alguns países de
leste fazem hoje parte da Comunidade Europeia, exportando para aqui cães a
baixo preço e nem sempre de boa qualidade, por toda a Europa o preço dos cães
baixou drasticamente e encontra-se tabelado quase ao preço dos gastos. Salvo
honrosas excepções, que são motivo de inspiração, a maioria das ninhadas
nacionais acaba também por pagar com a barriga o preço da crise, havendo por aí
muitas subnutridas e até famélicas, lembrando ratos carecas em ecossistema de
parco alimento. Por força da austeridade, ao contrário do que antes sucedia,
irá caber aos futuros proprietários a recuperação desses cachorros, façanha
alheia aos seus criadores que aproveitarão esse investimento para justificarem
a qualidade do seu produto, soltanto frases do género: “ Está ver… que grande
cão eu lhe vendi!”
QUARTO DE VOLTA: O REGRESSO DO SOLDADINHO DE CHUMBO
Lá, por onde andaram franceses e
ingleses pelo domínio da Europa no Séc.XIX, numa localidade onde os seus
moradores insistem em trocar a acentuação tónica do seu nome, num sítio remoto,
nada convidativo e mal apetrechado, assistimos ao regresso do soldadinho de
chumbo, quiçá tornado efeméride por força do seu passado histórico. Estamos a
referir-nos ao uso e abuso do “quarto de volta” na disciplina de obediência
canina, como se tal fosse premente, insubstituível ou carregasse vantagens
nunca vistas. O movimento, tornado ali em “ordem unida”, lembra as
intermináveis filas para o recebimento do “pré”, muito embora a continência
acabe substituída pelo ajustar do cão com a mão.
Ainda que o movimento requerido tenha
como objectivo a fixação do “alto, do “junto” ou a fixação exclusiva do cão na
pessoa do seu condutor, já há muito que se descobriram modos mais eficazes e
céleres para esses propósitos, tais como o recurso ao reforço positivo e a
instalação do “meia-volta”, muitas vezes codificado como “volta” ou “roda” de
acordo com o comando alemão “zurück”. O “quarto de volta”, quando
usado sistematicamente, tende ao aumento do travamento e a contribuir para uma
autonomia condicionada pouco visível e nalguns casos piegas, ficando isso a
dever-se aos diferentes perfis psicológicos presentes nos cães. A somar a isto,
porque o ensino canino é dinâmico, exige celeridade no cumprimento das ordens,
procura a minimização do esforço humano e a maximização do esforço animal, não
dispensando por isso a velocidade funcional inerente aos diferentes serviços a
prestar pelos cães, o “quarto de volta” acaba por atentar contra tudo isto, o
que de todo não é desejável.
É evidente que cada qual dentro da sua
casa é rei e isso deve ser respeitado, no entanto e porque começámos por uma
evocação histórica, interessa-nos manter o mote e usá-lo para uma melhor
compreensão da problemática ligada à insistência no “quarto de volta”, evolução
típica dos imóveis soldadinhos de chumbo que a foram beber aos exércitos
regulares no apogeu da Revolução Francesa. Por culpa dos espanhóis que
inventaram a guerrilha (do castelhano guerrilla: pequena guerra), o modo de
guerrear alterou-se e a partir daí a derrota dos Franceses consumou-se na
Península Ibérica. Exceptuando a praxis de alguns membros da histórica e
extinta escola alsaciana, não sabemos se alguma vez o “quarto de volta” fez
parte do currículo base da obediência a ministrar a um cão, mas se isso
aconteceu algum dia, foi lá para os primórdios dos cães de utilidade e muito
antes da II Guerra Mundial, porque a partir daí tal nunca foi visto, já que as
inversões do sentido de marcha sempre aconteceram de modo mais pronto pela
“meia-volta” e resolvidos os “quartos” pelo auxílio do “junto”, nomeadamente nas
evoluções de “direita e esquerda volver”, comandos militares e por isso
mesmo distantes das práticas civis.
Assim
como o “troca” (tauschen) exige nos ensinos dinâmico e nuclear modos mais
céleres que não dispensam a rotação de tronco que possibilita a condução a duas
mãos direccionais, também o “quarto-de-volta” deverá ceder lugar a outras
formas de “junto” que garantam o mesmo propósito (o “junto instantâneo” por
pirueta ou o confirmado a partir do ladear). Assim como a prontidão dos ataques
deve ser igual à sua cessação, também qualquer imobilização deverá garantir a
partida automática para a acção. O uso abusivo das figuras de imobilização,
muitas vezes usurpando o lugar da ginástica nos 1º e 2º Ciclos Infantis (dos 4
aos 6 meses e dos 6 aos 8 meses), tem funcionado como um inibidor da velocidade
e castrado muitos cães para um conjunto de acções necessárias às restantes
disciplinas cinotécnias, inutilizando assim a sua vocação, propensão natural,
mais-valia e complementaridade. Por outro lado, o abuso da toada “alto e pára”
que o “quarto-de-volta" propicia acabará por enfraquecer os impulsos herdados
que garantem a defesa do dono e dos seus bens, particularmente na sua ausência,
graças à exagerada submissão operada que obstará a qualquer autonomia pretendida.
E como importa dar a cada um o que é seu e a César o que é de Cesar, os adeptos
do “quarto-de-volta” deveriam uniformizar os seus alunos com fardas de cotim ao
invés dos comuns fatos de treino.
terça-feira, 1 de maio de 2012
GINÁSTICA CINOTÉCNICA: A FORMAÇÃO DO CÃO-GATO
Desde cedo se percebeu, quando se
pretendeu usar o cão como guerreiro nos tempos modernos e treiná-lo como
militar, da necessidade de um adestramento específico visando a supressão de
algumas dificuldades e a potenciação das suas capacidades ou complementaridades,
da emergência de pistas tácticas com obstáculos próprios e capazes para o
simulacro do teatro operacional, nascendo assim, um pouco por toda a parte, o
conceito e elaboração da pista táctica (nalguns casos tratada como pista de
fogo), requisito que viria a revelar-se fundamental para o treino do cão de
guerra. O modo diverso de fazer a guerra e a perca galopante de atribuições
militares por parte dos cães, levaram ao desuso e desaparecimento das outrora
famosas pistas tácticas, que subsistiriam ainda até aos alvores do cão-polícia,
transição natural que tanto creditou algumas raças e uma ou duas em particular.
E como não estamos aqui a tratar do
fenómeno de Tunguska e tudo tem o seu início, todas as pistas que hoje vemos
tiveram a sua origem comum nas pistas militares, a menos que consideremos a
actividade circense como madre de algumas modalidades ou disciplinas caninas, o
que nos parece pouco provável. Apesar da novidade de propósitos ter levado a
diferentes filosofias e outros tantos objectivos, o hábito sistemático de treinar cães é um legado militar sobre os cães ditos de utilidade ou de
trabalho, mesmo que eles se tenham vindo a transformar em simples guardiões, caçadores
ou companheiros, porque ainda definimos o treino como rigor, apostamos na
constância das acções, buscamos o condicionamento, procuramos a uniformidade, o apego aos procedimentos e temos como base de todo e qualquer adestramento a
disciplina de obediência, ainda que os meios para o seu alcance tenham mudado,
diga-se que felizmente, em abono dos cães, na defesa da sua integridade e
individualidade, defesa operada pelo reforço positivo e pelo uso requerente à
memória afectiva presente nestes animais.
A passarelle já existia e dela se
fazia uso antes de um “sonhador” ter inventado o agility pela observação das
provas equestres, o mesmo aconteceu com os esconderijos hoje usados para o
treino do cão de guarda e os retrievers são anteriores aos novos métodos de
ensino. Valerão as pistas tácticas somente como referência para os actuais cães
paisanos ou serão também importantes para a sua formação e capacitação? Estamos
em crer que elas não perderam a sua actualidade e que muito podem subsidiar os
actuais cães de trabalho, considerando o alcance dos seus indices atléticos,
superior capacitação, bem-estar e longevidade, enquanto preparação específica
para o trabalhado vindouro, alvos muitas vezes aquém das pistas em voga e que
se transformaram no melhor dos marketings para quem tem rações ou acessórios para
vender, porque não promovem o conhecimento biomecânico, o seu aproveitamento e
potenciação, subsidiando ao invés o show e gozo efémero dos donos.
Para além destes aspectos, as pistas
tácticas foram e devem ser concebidas para dar combate e levar de vencida os
medos mais comuns presentes nos cães, geralmente transformados em traumas que
inibem de sobremaneira a prestação canina e a sua saúde como um todo. Como a
lista desses medos é interminável adiantaremos apenas alguns: acrofobia,
acustofobia, batofobia, cainofobia, cimofobia, claustrofobia, cleitrofobia,
escotofobia, ligirofobia e mictofobia, o rol é deveras extenso! As mais-valias
das pistas tácticas não se esgotam nos benefícios psicológicos e na melhoria
dos índices atléticos, no aumento da prontidão e na preparação específica dos
cães, estendendo-se também à correcção morfológica e à melhoria dos aprumos, isto
se convidarmos os cachorros para a sua prática aquando da face plástica que os
ciclos infantis oferecem.
Os inimigos das pistas tácticas e que
delas dizem horrores são na sua maioria gente que na década de 80 ainda não
tinha atingido a maioridade e que assustada com os relatos que foi ouvindo, não
raramente exagerados, as tem conotado como hediondas e desprezíveis quando
comparadas com as actuais, de índole desportiva, de técnica rudimentar e de fácil
resolução, o que compromete de sobremaneira o seu parecer, por não ser
tangencial e não resultar da experiência objectiva que induz à comprovação.
Assim também nasceu a história do lobo mau e o mito da avestruz com a cabeça
debaixo da terra! Há quem também diga que a pista táctica é uma fomentadora de
lesões e que por causa disso entrou em desuso, o que é falso, uma vez que o seu
objectivo aponta claramente na direcção contrária e tem como prioridade a
salvaguarda da integridade global dos cães, preparando-os para os perigos e desafios
que encontrarão no seu quotidiano, valendo-se para isso de obstáculos idênticos
àqueles com que irão ser confrontados.
O adestramento perderia o seu
significado se em cada cão houvesse um gato, pelo menos na sua vertente atlética,
porque o felino dispensa nesta matéria de qualquer tipo de aprendizado mercê
das suas características inatas. Ao invés, o cão necessita de aprender a saltar
correctamente, a distribuir prontamente o seu peso corporal pelos dois pares de
membros nas recepções ao solo, o que lhe permitirá impactos menos violentos e
garantirá a progressão por mais tempo e sem delongas. Ele irá necessitar de
aprender a escalar, quer para prestar socorro quer para se libertar ou salvar,
terá que aprender a nadar com os dois pares de membros abaixo da linha de água,
caso contrário entrará em colapso e virá a morrer afogado. Terá que aprender a
escapar-se do fogo e a evoluir em diferentes superfícies, pisos e acidentes
(naturais ou artificiais), e ser condicionado na resolução de todo e qualquer
obstáculo que encontrará pela frente.
Também terá de acostumar-se à vida
urbana, à novidade de materiais e a evitar os danos que estes lhe possam
causar, a vários tipos de transporte e a toda a casta de gente na progressão alinhada
que lhe será exigida. Ser experimentado e aprovado nas situações em que importa
socorrer-se e socorrer o seu dono, necessitando para isso de usar toda a
ferramenta morfológica ao seu dispor, meta que a pista táctica não dispensa e
que abraça como objectivo, resultando daí a sua actualidade e utilidade.
Cortar, escalar, escavar, nadar, rasgar, rastejar, saltar, subir escadas,
transportar e aprender a ocultar-se, são algumas das acções que a pista táctica
lhe oferecerá e que irão capacitá-lo para a sua sobrevivência e mais-valia. A
somar a isto, pelo peso do trabalho binomial que não dispensa a cumplicidade, a
sua condução em liberdade e autonomia acontecerão mais cedo e tornar-se-ão mais
eficazes.
A natureza dos obstáculos propostos pelas
pistas tácticas, para além de fomentar a escolha correcta dos andamentos
naturais presentes nos cães pràs tarefas, tende e normalmente consegue, dotar
determinadas raças de características funcionais que a sua selecção desprezou
ou omitiu, algo a que a diferenciação estética não é alheia e que tem sido
responsável por várias afecções e não raras aberrações. Os milagres operados
pelas pistas tácticas ficam a dever-se à diversidade dos seus obstáculos e propósitos,
ao respeito salutar pelos mais elementares princípios pedagógicos de ensino e à
qualidade dos mestres de campo, gente experimentada na arte de ensinar cães e
que disso faz uma verdadeira paixão, indivíduos que vieram para servir e que
nisso se sentem bem, ainda que por vezes não sejam compreendidos, porque não
esperam retribuição e sempre procuram o aprimoramento.
Uma pista táctica digna desse nome
deve estar equipada com obstáculos típicos para os cachorros, ter um perímetro
exterior de aquecimento, um conjunto de aparelhos para a correcção morfológica,
obstáculos de diferente índole e outros específicos para o desenvolvimento
interdisciplinar, ser um simulacro das acções reais que o cão terá pela frente
e que exigem a sua pronta resolução. Pensar e agir ao contrário, é desejar que
o cataclismo surja para que o treino aconteça. Situações destas fazem lembrar
aquele crente pouco crédulo que só se lembrava de Santa Bárbara quando a
borrasca estoirava.
Apesar das múltiplas vantagens que as
pistas tácticas oferecem, o seu número é diminuto quando comparado com as de
competição, facto que se fica a dever ao seu custo, à escassez de técnicos
capazes e à ignorância de grande parte dos proprietários caninos, mais
interessados naquilo que os cães têm para lhes dar do que em dar-lhes subsídios
de longevidade.
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