segunda-feira, 23 de março de 2009

::: O conflito entre os interesses e os sentimentos do adestramento :::

A nossa passagem por aqui é atribulada pelo conflito interno entre a razão e a emoção, graças à confusão dos interesses e sentimentos, dentro de cada um de nós. E tudo à nossa volta reflecte essa escaramuça interna e depende do resultado dessa guerra. Os animais domésticos não são excepção, porque dependem de nós e estão ao nossos lado, acabando por experimentar as mesmas dificuldades, e sofrer os mesmos horrores. O desequilíbrio canino é, na maioria dos casos, um acto reflexo do exercício da liderança, transubstanciado pela sua experiência directa. Não raramente, e ao contrário do que se esperaria, os cães traduzem melhor os seus donos, o seu quadro de expectativas e os seus sentimentos mais ocultos.

Normalmente, quando alguém decide ensinar o seu cão, procura a obediência animal pela justeza do seu sustento. A permuta parece-nos lógica, perceptível e justificada. Mas o que dirão os cães acerca disso, eles que não nascem com um kit de obediência e teimam pela sua individualidade? Que ninguém se iluda: o adestramento é um mal necessário, um sucedâneo do enclausuramento, que antecedeu a vantagem, algo acontecido há milénios e que impede a auto-sobrevivência canina. No entanto, o cão continua um lobo, lobos e cães pertencem ainda à mesma espécie, têm o mesmo número de cromossomas, e por causa disso, os seus híbridos são fecundos.

Tutelar cães, é reconhecer o particular de cada um deles, para a operação do seu bem-estar físico e psicológico, de acordo com as suas necessidades, morfologia, instintos, impulsos e tendências sociais. Não existem dois cães iguais, e nesta matéria, nenhuma raça é soberana sobre o indivíduo, porque em todas elas proliferam valentes e cobardes, aptos e menos aptos, belicosos e tolerantes. Assim, a impropriedade de um cão, visível nos problemas que causa, nas mais variadas finalidades, é da responsabilidade do instalador, o mesmo que adoptou o animal e que depois reclama pela sua má sorte, alvitrando à posteriori, o abandono, o descarte ou o abate do cão. A aquisição de um cachorro é um assunto sério, há que saber escolher e ter condições para tal, porque não o podemos remeter para o sótão, tal qual tareco em desuso, quando estamos fartos dele. Aos mais impulsivos, vitimas dos seus próprios sentimentos, aconselhamos calma e apelamos à escolha consciente. Somos contra o descarte de cães adultos, porque sabemos ao que leva a quebra dos vínculos afectivos, a novidade territorial e todo o processo de reinserção canina. Ao menor problema, o cão irá parar "ao olho da rua", ou terá como destino o canil terminal municipal: "há para aí tanto cão; a serventia da casa é a porta da rua!"

A opção por um cachorro é, em média, um encargo para uma década. Importa não esquecer este pormenor, o trabalho e a responsabilidade que acarreta. Ainda que a maioria dos cães "entre com o pé direito" no lar de adopção, grande número deles, acabará desterrado num quintal ou pendurado numa varanda, para o resto das suas vidas, independentemente da sua idade, vigor ou mais-valia. Isto é criminoso, é confundir identidades, a menos que a evolução das espécies, de modo apressado e miraculoso, tenha elevado o cão a suíno.

Gostar de cães não pode ser um acto inconsequente, o sentimento deve ser sustentado pela razão, para que o gostar não se torne efémero e cause vítimas. A primeira coisa a considerar é o lar de adopção, o seu agregado familiar, as características dos seus membros, a sua disponibilidade e expectativas. Sabendo o que temos para oferecer, torna-se mais fácil escolher o cão. Apesar disso, convém procurar conselho junto de quem sabe. Estamos a falar dos adestradores, porque os criadores das diferentes raças caninas, na ânsia de melhor venderem o seu produto, omitem os problemas dos seus pupilos e exageram as suas virtudes, como se todos eles fossem anjinhos de quatro patas. O que acontecerá a um cão galopador, se não tiver por onde correr? A um cão de caça, se não tiver terreno a bater? A um trotador privado da marcha? Iremos dar um cão hiperactivo a um deficiente ou idoso? Um fortemente territorial, a quem não tem pulso firme? Estes são apenas alguns dos maus exemplos.

O perfil psicológico do cachorro deve ser considerado, para que a harmonia impere e a liderança humana se torne um facto. A usurpação canina da liderança, quando constatada, infelizmente, leva à procura dos centros de treino caninos, face à impotência e à necessidade de ajuda. E dizemos infelizmente, porque o cão deve ser conquistado em casa, e a equipa constituir-se no lar, porque deve subsistir uma relação óptima entre tratamento e treino. O adestramento começa com o primeiro comando de obediência: o chamamento do cão pelo nome.

Nenhum condicionamento é natural, porque as respostas denunciam o artificialismo, a filosofia e a finalidade do treino. Se omitirmos a sobrevivência animal do adestramento, ainda que isso nos faça felizes, outra coisa não seremos, que amadores de ancestrais práticas circenses. Não compensamos os cães como prémio pela resposta? Já sabemos há muito, que o dono da comida é o patrão do cão! E nos pratos da balança, o que deve pesar mais: aquilo que esperamos ou o que temos para dar? A ambição humana não deve lograr a felicidade canina. Mais importante que ter um cão de competição, um excelente guardião ou um companheiro muito babado, é ter um amigo feliz ao nosso lado.

Ignorar o parecer alheio é uma forma descarada de desrespeito, ainda que esse alguém abane a cauda e ladre por biscoitos. Há que arrancar os cães da Idade Média, libertá-los do feudalismo, rebentar com as correntes do especicismo e lutar pela sua condição. Cientes disto, procuraremos a coabitação harmoniosa entre homens e cães, evitando o endeusamento canino e a saga do antropomorfismo.

Seleccionar cães não é um acto inconsequente e carece de equilíbrio, porque se referem os Decretos aos cães de raças perigosas? A quem cabe a justiça? Quem produziu o fenómeno: o legislador ou os criadores? A haver selecção, a preferência deveria recair sobre o impulso ao conhecimento, uma vez salvaguardada a harmonia dos demais, face à integração desejada e à sobrevivência canina.

Muitos rafeiros, senão a sua esmagadora maioria, são excelentes cães de companhia, constituem binómios facilmente e singram no adestramento. O que têm de particular os SRD (cães sem raça definida)? Apenas a selecção natural a seu favor, sem os berloques estéticos e a cegueira selectiva, responsáveis por um sem número de incapacidades físicas, psicológicas e sociais. O desaparecimento dos rafeiros, assim como a sua castração sistemática, condenará a biodiversidade canina, pelo aumento da consanguinidade e redução do número de indivíduos. Só se abandonam cães rafeiros? Quem tiver dúvidas, faça o favor de visitar os canis municipais. A que preço andam os cães ditos puros? Vendem-se com facilidade, a procura é superior à oferta? Gostar de cães é gostar deles todos, puros, mestiços, grandes e pequenos, é reconhecer em cada um deles o direito à diferença. A xenofobia não invadiu a canicultura? O que sustenta a selecção: a mais-valia ou a diferença? Donde vieram as actuais raças caninas, onde tiveram a sua origem?

O cão ideal está ainda por nascer, talvez venha com o dono ideal ou habite nos sonhos de uma criança.

Eunice Fuhrmann

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