Estendida sobre a relva, debaixo de um jacarandá
florido, uma mulher agoniza imóvel num jardim público, com as moscas à volta da
boca numa manhã radiosa de Verão. Todos a julgam morta porque a sua pele
branco-mármore encontra-se gélida, não responde a qualquer apelo e não esboça
qualquer tipo de reacção. Perante isto, as ciganas não tardam em lhe atribuir o
óbito e o número de curiosos aumenta ao seu redor. O auxílio não tarda em chegar
e o pessoal do INEM arranca de imediato para o resgate, vendo-se em apuros para
lhe colocar a sonda na boca. Desapertam-lhe a roupa e ligam-na ao monitor,
ministram-lhe soro e ligam para a polícia. Trata-se duma senhora a rondar os
quarenta anos de idade, bem nutrida e sem cicatrizes visíveis, isenta de
varizes, de um metro e sessenta e poucos, a rondar os 60Kg. Não trouxe consigo
qualquer identificação e ainda conserva na mão direita um copo de plástico do
McDonalds com uma réstea de água e alguns comprimidos. Determinada no seu
propósito, vestiu-se impecável para a morte dos pés à cabeça, apresentando-se
limpa, desodorizada e ávida de partir. Porque teria agido assim? Certamente
estaria doente, porque bem não estaria por certo! Infelizmente este caso não é
nem será caso único nestes tempos atribulados, fartos em insolvências e
desemprego que originam toda a casta de desencontros, desastres e desesperos,
responsáveis directos por muitos divórcios e disensões, por muita solidão,
miséria, abandono e ostracismo, já que as baixas desta guerra económica
medem-se pelo número de desempregados de cada país. Serão as sociedades menos
adaptadas ao actual sistema vigente as mais flageladas, as que terão o maior
número de baixas e Portugal já as tem em demasia. Demoraremos a recuperar desta
guerra, que como todas as outras, é fratricida. No entanto, esta velha Nação já
passou por muitas e triunfou. Baseados na nossa história, não perdemos a
esperança e nela encontramos a razão que ainda nos faz acreditar quanto ao futuro,
pelo que importa resistir e não esmorecer.
Entretanto, com os portugueses a lutar pela
sobrevivência, a braços com a bancarrota e a perder a soberania, que destino
terão os animais de companhia diante desta austeridade galopante sem fim à
vista, particularmente os daqueles que perderam o emprego, foram despejados ou
entraram em insolvência e que não conseguem encontrar trabalho? Muitos verão os
seus dias encurtados e outros ver-se-ão abandonados e votados a sorte incerta (queira
Deus que nenhum chinês os aproveite para o “Pato à Pequim” ou para a “Vaca com
cogumelos e bambú”). A coisa está tão preta (como dizem os nossos irmãos
brasileiros), que os cães de raça mais certificados são vendidos hoje a 1/5 do
preço doutrora e os canis de abrigo estão cheios de animais “puros”, que para
cúmulo do seu infortúnio, acabam castrados e vêem assim diminuída a sua
qualidade de vida. Nunca foi tão fácil comprar um bom cão por tão pouco
dinheiro, o que levará alguns a chapar cachorros contra a parede ou a afogá-los
dentro de um balde de água tapado. È evidente que tudo isto é irrelevante
diante dos crimes domésticos e familiares que a actual crise económica
sustenta, porque na guerra raramente se contabilizam os cavalos abatidos, uma
vez que as baixas anunciadas remontam primeiro aos cavaleiros perecidos na
peleja.
Contudo,
considerando o uso terapêutico canino, para além de um hediondo crime contra os
animais, este despojar de cães é também um crime contra a humanidade, já que as
crianças não viverão mais felizes quando privadas deles à força e os mais
idosos não se sentirão melhor acompanhados quando forçados a deixá-los. O que
porão no seu lugar os mais isolados e carentes de afectividade, de parco
envolvimento social e deficitário relacionamento? Os químicos do costume (que
não são baratos) ou as fotos dos tecnocratas Sr.s Renn e Van Rumpoy?
Aos
sobreviventes da estóica classe média que entre nós hoje se esfuma, depois de
vencida a crise, pouco lhes importará as percas materiais ocorridas durante o
aperto, custar-lhes-á mais os danos emocionais resultantes da perca forçada de
afectos, tanto os relativos a pessoas quanto os ocorridos com os animais,
funcionando isso como stress pós-traumático de difícil eliminação. Alguns deles
pedirão à sua descendência para não voltar a fazer o mesmo, compromisso de que
não teremos a certeza de vir a ser cumprido. Alguns chineses matam e comem
cães, por enquanto os europeus só os matam. Tempos houve em que os germanos se
viram obrigados a comê-los, será que a Alemanha ainda vai obrigar alguns de nós
a fazê-lo? O que resta saber é se os interesses da Alemanha são os de toda a
Europa ou se mais uma vez ela apenas se importa consigo. Parece que criámos a
CEE para que isso não voltasse a repetir-se. Poderão os homens mudar? Se eles
não mudarem dificilmente mudarão as nações! No passado (Sec.XVI), o vencimento
dos juros de alguns banqueiros, foi causa primeira de muita dissensão, de
guerra e de morte, de rara heresia e de uma solução política para um problema
religioso que vigora até hoje em terras teutónicas.
Não
existem dois cães iguais e a perca de um pode ser irreparável, criar um vazio
impossível de preencher atendendo ao particular do indivíduo, do tempo, da
circunstância e diante da finidade que se abate sobre todos. Em tempos de crise
não se abatem só os cavalos - os cães vão primeiro! Em Portugal existiam 2
milhões de lares com animais domésticos, no final desta crise quantos sobrarão?
Contá-los-á quem por cá ficar!